O discurso compartilhado entre bancos centrais pelo mundo de que a desinflação, após o choque da pandemia, acontece em dois estágios — um primeiro, que ocorreu de forma mais rápida, e um segundo, que tem sido muito mais difícil — não parece se aplicar exatamente ao Brasil, apontam economistas do Bradesco. Com métricas variadas, outros analistas também indicam que o processo de desinflação no Brasil é consistente.
O IPCA encerrou 2022 em 5,8% e, em 12 meses até outubro, estava em 4,8%, o que pode dar a impressão de que a desinflação entre os anos não tem sido significativa, diz o economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato Barbosa. Em um exercício, porém, ele e a economista Ana Beatriz Moreira dos Santos estimaram qual teria sido a trajetória da inflação brasileira sem os efeitos tributários excepcionais de 2022 e seu rebote em 2023.
Eles observaram que, nesse caso, a inflação sairia de 8,5% em 2022 para 4,04% em 12 meses até outubro, em uma trajetória mais consistente e contínua de declínio. “Parece que a desinflação foi pequena do ano passado para cá, mas ela foi grande”, diz Honorato.
Os números, explica Santos, consideram apenas os efeitos primários das medidas tributárias adotadas — elas ainda podem ter gerado impactos secundários.
Em julho, agosto e setembro do ano passado, o IPCA mensal registrou deflação, após o governo introduzir medidas de redução de impostos para combustíveis, energia e telecomunicações, lembra Santos. E, antes mesmo, ela recorda, houve redução do IPI, imposto sobre produtos industrializados.
“Teríamos uma inflação significativamente mais alta no ano passado sem as medidas tributárias”, diz a economista. Honorato observa que havia contexto para algumas dessas decisões, como a alta importante dos preços do petróleo no mercado internacional.
Com as medidas, o IPCA acumulado em 12 meses passou de 11,9% em junho de 2022 para 7,2% em setembro do mesmo ano e seguiu desacelerando até junho deste ano, quando chegou a 3,2%. A partir de então, conforme os meses de deflação de 2022 foram saindo da conta acumulada, o IPCA em
12 meses voltou a subir, chegando a 5,2% em setembro. “Além disso, neste ano, tivemos reversão parcial [do corte de impostos federais] e os Estados fizeram recomposição gradual do ICMS”, diz Santos.
A impressão que pode dar, segundo Honorato, é que o IPCA está caindo mais devagar do que na prática está. “Tem uma discussão no mundo todo que é a desinflação em duas etapas: a desinflação de bens e pouca ou nenhuma nos serviços. Isso faz os bancos centrais falarem que o estágio mais fácil já foi e agora é o mais difícil”, afirma.
“No Brasil, essa discussão não parece tão presente como em outros países”, diz Honorato, a partir do exercício realizado. “É um reforço de que a política monetária está funcionando quando a gente ‘limpa’ a volatilidade dos dados, tanto no que é mais global, quanto nos itens mais sensíveis ao ciclo.”
Medidas de núcleo, que tentam suavizar o efeito de itens voláteis, contam história parecida, reforça o economista-chefe do Bradesco.
O economista-chefe da Novus Capital, Tomás Goulart, diz olhar para o comportamento médio dos núcleos mensais ao longo do tempo. “Isso me diz como é sazonalmente. Essa análise já nos mostra que, no mês a mês, alguns núcleos estão rodando abaixo do que seria condizente com o objetivo de 3%”, diz, em referência ao centro da meta de inflação a partir de 2024. Para este ano, a meta é de 3,25%.
Por outra métrica, a média móvel trimestral, anualizada e com ajuste sazonal, Goulart diz que “diversos núcleos estão se mostrando abaixo de 3,25%, 3%, e mesmo serviços estão voltando para perto de 3,25%”. Essa medida é uma forma de suavizar movimentos mensais, mas ainda captar a tendência “na ponta” de modo mais dinâmico do que a variação em 12 meses.
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— Foto: Divulgação | IBGE
Ainda assim, alguns núcleos podem acabar sujeitos a certa volatilidade, observa o economista-chefe da Constância Investimentos, Alexandre Lohmann. O núcleo
IPCA-EX0, por exemplo, que exclui alimentos e preços administrados, inclui passagens aéreas — e só em outubro, elas subiram quase 24%.
Por isso, Lohmann construiu uma medida de núcleo que simula técnica adotada, por exemplo, pelo Banco Central Europeu (BCE), chamada “análise de componente principal”. Em vez de excluir “arbitrariamente” alguns itens, como fazem medidas de núcleo tradicionais, Lohmann considera todos os mais de 300 produtos do IPCA, isola o componente de inflação comum a todos e chega a um núcleo único. “Eu reduzo 300 variáveis a uma que pegue exatamente a tendência de todos os preços, eliminando ruídos e sazonalidade.”
Por essa medida, a média móvel anualizada e dessazonalizada de outubro deste ano está em 2,3%; a média dos núcleos está em 3%. “Mostra que o cenário local é muito bom”, diz Lohmann, indicando que o BC pode cortar a Selic para além do que o mercado precifica.
No comunicado do último Comitê de Política Monetária (Copom), chamou a atenção de economistas o BC ter destacado apenas que as medidas de inflação subjacente seguem acima do intervalo compatível com a meta. Na ata, ele reconheceu que, apesar disso, indicadores que agregam os componentes mais sensíveis ao ciclo econômico e à política monetária apresentaram menor inflação.
“É supergenuína a discussão de que ainda estão acima do centro da meta. Se é isso que chamamos de dificuldade, ainda tem espaço grande para ceder. Mas, até este momento, não dá para dizer que a desinflação parou”, diz Honorato.
O exercício do Bradesco reafirma o cenário, para o BC, de continuar com os cortes de juros, indica Honorato. Ele reconhece que sua projeção de Selic a 9,25% no fim do ciclo é desafiada pelo ambiente global. “Mas a inflação vai acelerar? Não parece. Isso dá certo conforto para dizer que uma Selic na casa de 9% é viável”, afirma.
“A cara da inflação hoje é de uma inflação que foi reconquistada. A grande discussão é sobre daqui para frente”, diz Goulart, que mantém uma perspectiva benigna para o IPCA em 2024, de 3,2%.
Fonte: Valor Econômico

