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A perda da maioria absoluta no parlamento nas eleições encerradas semanas atrás lançou uma sombra sobre o terceiro mandato de Narendra Modi, em especial pela necessidade de formar alianças e negociar com partidos menores. Contudo, o Bharatiya Janata Party (BJP), seu partido, manteve os mesmos 37% dos votos de 2019. A perda de cadeiras decorreu da estratégia da oposição de concorrer em lista única, vencendo em um número significativamente maior de distritos. O sentimento de derrota também resultou da expectativa de que o BJP aumentaria muito seu eleitorado e o número de parlamentares eleitos, como indicavam as pesquisas, e diante do índice de aprovação de Modi, acima de 70%.
A promessa de colocar a Índia como a terceira maior economia do mundo em 2030 era um dos grandes trunfos eleitorais de Modi e do BJP e elemento importante para o nacionalismo chauvinista de seu governo.
O crescimento deve alcançar 8,2% no ano fiscal de 2024-2025, bem acima dos 6,4 % da China. A sonda robótica na Lua e as vacinas contra a covid-19 fortaleceram a posição da Índia no Sul Global, objetivo geopolítico do país desde a Guerra Fria e a política externa terceiro-mundista. O manifesto partidário do BJP enfatizava o nacionalismo e a retomada do status de grande potência, desejo histórico das elites políticas indianas, que buscam superar a exploração colonial britânica.
As urnas, contudo, mostraram a insatisfação dos mais pobres com as más condições de vida e a baixa criação de empregos, apesar das promessas de Modi, em seu segundo governo. Programas como o “Make in India” não obtiveram o sucesso esperado na atração de investimentos externos e promoção de substituição de importações. Em 2024, o desemprego no país foi de 8,1%, segundo agências indianas, com 45,5% dos jovens entre 20 e 24 anos desempregados. Um relatório da OIT de 2024 indicou que na população até 35 anos, 83% dos desempregados são jovens, em um país cuja população continuará crescendo até 2050.
A inflação oficial do país ficou em 4,85% em 2023, pouco acima do esperado 4,5%, mas com grande peso da alta de 8,5% nos preços dos alimentos. As safras de produtos básicos, como arroz e tomate, foram prejudicadas por crises climáticas, com o forte calor que afeta em especial os 65% da população que ainda é rural, com muitos vivendo em pequenos sítios. A perda de colheitas leva ao endividamento e a protestos de agricultores, que impedem o avanço de medidas liberalizantes no setor e pressionam por mais subsídios e pela formalização de preços mínimos para colheitas.
Embora a Índia seja um dos maiores produtores de alimentos do mundo, as perdas pós-safra podem chegar a até 40% devido a problemas de infraestrutura e burocracia. O governo Modi prometeu melhorar essa situação com maiores investimentos públicos no sistema ferroviário e de estradas. Em 2023, para controlar o preço dos alimentos, o governo restringiu a exportação de arroz.
A falta de empregos é um problema significativo, num país onde 60% da população ainda necessita de algum auxílio governamental para alimentação. A Índia concentra um quarto da população mundial subnutrida, com mais de 190 milhões de pessoas nesta triste situação. A incidência de pobreza é estimada em quase 30%, com anemia afetando 50% das mulheres, incluindo grávidas, e 60% das crianças. O governo desenvolveu diversos programas sociais, como expansão do saneamento básico, construção de banheiros, e ampliação do fornecimento de energia elétrica para populações rurais, melhorando as condições de vida e impulsionando o desenvolvimento econômico.
Apesar de relevantes, estes programas não foram suficientes para evitar o avanço dos partidos de oposição. A questão econômica foi crucial para que o Partido do Congresso, o principal opositor, conseguisse se reaproximar do eleitor mais pobre e rural. A legenda conseguiu reconquistar presença em Estados do norte do país, mais rurais e pobres, além de manter sua força no sul, que é mais desenvolvido.
Governos de coalizão e negociações prolongadas não são novidade na Índia. As preocupações podem se revelar excessivas, inclusive pela habilidade e a resiliência de um político experiente como Modi. Podem ser procedentes, contudo, diante das limitações do modelo econômico delineado nestes anos.
Apontado por vezes como neoliberal, o governo Modi incluiu iniciativas que fortaleceram o poder do Estado nacional sobre a economia e sobre um federalismo complexo. Um exemplo marcante foi a reforma monetária de 2016, quando o governo invalidou de surpresa as cédulas de 500 e 1000 rúpias (algo entre US$ 6 e US$ 12). O objetivo era combater a corrupção e a economia informal. A reforma foi apontada por críticos ocidentais liberais como autoritária e aventureira, mas funcionou e foi seguida por medidas para a bancarização e a digitalização da economia.
No ano seguinte, a implementação do Imposto sobre Bens e Serviços (GST) eliminou barreiras tributárias entre Estados, simplificou o sistema fiscal indiano e reduziu custos na economia. Houve críticas pelo leque de exceções para contemplar interesses estaduais e regionais, resultado de negociação ampla que assegurou aprovação e implantação rápida. Nos dois casos, poderia ser vista uma aproximação da Índia ao modelo de Estado forte de países do Leste Asiático, da mesma forma que medidas autoritárias poderiam ser associadas aos primeiros estágios do crescimento acelerado destes países.
Em outros casos relevantes, porém, os resultados não foram bons. A reforma na agricultura, removendo subsídios e interferências estatais nos preços das safras, conheceu reveses sucessivos, com protestos massivos que fizeram o governo recuar em 2021. A reforma da legislação trabalhista também empacou em 2015, sob pressão das centrais sindicais, que a classificavam como favorável aos empresários em detrimento dos trabalhadores. E a política de acelerar a industrialização não mostra resultados animadores.
Críticos liberais ocidentais defendem que a Índia deveria concentrar o crescimento nos setores de serviços de alta tecnologia, em que o país detém resultados consideráveis. As evidências, contudo, sugerem que estes segmentos não têm capacidade de difundir produtividade e crescimento e não conseguem dinamizar setores amplos que sobrevivem com transferências de renda e subsídios. Neste enfoque, a Índia parece mais a América Latina: modernização localizada, inclusive na indústria, em meio a estruturas atrasadas que têm dificuldades para absorver ganhos de produtividade. E no Leste Asiático, vale lembrar, a industrialização acelerada foi precedida por processos radicais de distribuição de riqueza.
João Paulo Nicolini Gabriel é doutor em Ciência Política pela UFMG e pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Twitter: @jpnicogabriel.
Carlos Eduardo Carvalho é professor do Departamento de Economia da PUC-SP.
Fonte: Valor Econômico

