Por Humberto Saccomandi — Para o Valor, de São Paulo
29/04/2024 08h58 Atualizado há 46 minutos
A persistência da inflação americana coloca em evidência um problema que assombra não apenas os EUA, mas boa parte do mundo: o déficit público exageradamente alto. Muitos países estão gastando como nunca, num momento em que não há uma crise global. Essa tendência é puxada pelas duas maiores economias, EUA e China, e pode levar anos ainda para que seja revertida.
Os países pelo mundo elevaram fortemente o gasto público durante a pandemia, para fazer frente às necessidades médicas, econômicas e sociais geradas pela covid-19, e estão agora com dificuldade para reduzir essas despesas. Além disso, surgiram outros gastos, com juros, defesa e política industrial. O resultado são déficits públicos muito acima das médias históricas, o que faz disparar a dívida pública pelo mundo.
Segundo o último relatório Monitor Fiscal, do Fundo Monetário Internacional (FMI), deste mês, o déficit público mundial ficou em 5,5% do PIB global em 2023, contra 3,5% antes da pandemia. O PIB global, estimado pelo FMI, foi de US$ 185 trilhões no ano passado. Ou seja, o déficit público mundial superou US$ 10 trilhões.
EUA e China lideram essa gastança global. Segundo o FMI, o déficit público consolidado dos EUA em 2023 foi de 8,8% do PIB, contra 5,8% de 2019, que já era um nível historicamente alto. Por uma questão de metodologia, o dado do déficit público dos EUA elaborado pelo FMI difere do dado oficial do Fed (o banco central americano), que ficou em 6,1% em 2023 e em 4,5% em 2019.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, apenas duas vezes os EUA tiveram déficit num patamar superior. A primeira foi na esteira da crise financeira global de 2008 — o déficit chegou a 9,7% em 2009, pelo dado do Fed. A segunda foi na crise da covid-19, quando chegou a 14,6% (ou 13,9%, segundo o FMI). Ou seja, o déficit público americano está num patamar inédito nos últimos cem anos para um período sem uma crise global. Para este ano, o FMI prevê déficit de 6,5%.
Esse gasto elevado dificulta o combate à inflação nos EUA. O Fed vem mantendo as taxas de juros altas para tentar desacelerar a atividade econômica no país e, assim, reduzir a inflação. Mas a política fiscal joga no sentido oposto, já que o gasto público estimula a atividade econômica. É como se o Fed estivesse pisando no freio da economia, enquanto o governo americano pisa no acelerador. O resultado é que a inflação resiste em cair. Em março, o núcleo do IPC subiu para 3,8% (dado anual), ante meta de inflação de 2% do Fed.
O déficit americano se deve ao nível elevado de gasto público associado ao corte de impostos aprovado no governo de Donald Trump, que resultou numa perda de arrecadação fiscal.
Há várias explicações para esse nível elevado de gasto. A principal são os pacotes trilionários de ajuda contra a covid-19 e estímulo à economia aprovados no início do governo Joe Biden. Esses pacotes incluírem um pouco de tudo: ajuda às famílias, aos trabalhadores, aos municípios, aos Estados, e medidas de política industrial, como subsídios para vários setores da economia, benefícios fiscais para economia verde e transição energética etc.
Há ainda fatores em comum com outros países. Um deles é que a alta de juros obriga o governo a gastar mais com o serviço da dívida pública. Além disso, o fato de este ser um ano eleitoral nos EUA dificulta reduzir o déficit. Biden precisa manter a economia crescendo para ter alguma chance de reeleição contra Trump em novembro. E existe ainda uma forte pressão por mais gastos com defesa, para fazer frente à crescente ameaça da China, além da ajuda à Ucrânia na guerra contra a Rússia. Neste mês, o Congresso dos EUA aprovou um pacote de ajuda militar a Ucrânia, Israel e Taiwan no valor de US$ 95 bilhões.
O déficit público chinês atingiu o 9,7% do PIB em 2020, por conta da pandemia, e fechou 2023 em 7,1%, segundo o FMI. A previsão do Fundo é de déficit ainda maior neste ano, de 7,4%. São níveis inéditos desde que o país abriu a sua economia e começou a crescer fortemente, nos anos 1990.
No caso da China, o principal motivo desse gasto é manter a economia crescendo no patamar de 5% determinado pelo governo e considerado alto demais por economistas, diante do momento de incertezas econômicas no país. Para conseguir esse crescimento, estimula-se o investimento, tanto público como privado (mas em parte financiado por bancos estatais). O gasto com defesa também está aumentando (7,4% neste ano).
O FMI alertou recentemente sobre os riscos para o mundo dessa enorme expansão fiscal conjunta de EUA e China. “O modo como essas duas economias vão administrar suas políticas fiscais poderá ter efeitos profundos na economia global e trazer riscos significativos para as projeções fiscais das outras economias”, afirmou o Monitor Fiscal.
Mas não são apenas as duas superpotências que estão com níveis de déficit historicamente altos. Segundo o FMI, entre as maiores economias desenvolvidas, apenas o Canadá conseguiu voltar ao nível de déficit de antes da pandemia. A Alemanha está com déficit baixo (2,1%) se comparado ao dos demais países, mas tinha superávit fiscal antes da covid-19. Grandes emergentes, como Brasil e Índia, também estão com déficit público muito alto.
Vários fatores devem dificultar a redução desses déficits fiscais neste ano. O primeiro deles é político: 2024 é excepcionalmente repleto de eleições pelo mundo. Mais da metade da população mundial foi ou ainda irá às urnas neste ano, num número recorde de países, o que significa uma contínua pressão política por gasto público.
Além disso, a expectativa de redução menor das taxas de juros nos EUA deve afetar os juros em toda a economia mundial, o que manterá o gasto com o serviço da dívida maior do que se previa. E a crescente tensão geopolítica está elevando os gastos militares pelo mundo. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri), o gasto global com defesa subiu 6,8% em termos reais em 2023, em relação a 2022. E deve continuar subindo neste ano.
Por fim, há ainda uma série de incertezas relacionadas à possibilidade de Trump ser novamente eleito presidente dos EUA. Ele já disse que pretende tornar permanentes os cortes de impostos aprovados no seu governo, o que tornará muito mais difícil reduzir o déficit fiscal americano.
Esses fatores podem fazer com que o nível de déficit público global não retorne ao patamar pré-pandemia nesta década. Isso implica que o mundo viveria quase dez anos com um nível de déficit fiscal sem precedente na história recente. Não estão claros ainda as implicações e os riscos dessa gastança para a economia global e para os mercados financeiros.
Fonte: Valor Econômico

