A explosão na oferta de produtos de crédito privado, como certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) e do agronegócio (CRAs) e debêntures, e a popularização dessa classe de ativos guardam um risco oculto para os investidores: é possível que quem poupa recursos tenha menos dinheiro do que imagina ao olhar o extrato da sua instituição financeira. Isso porque a marcação de alguns desses papéis nas plataformas e carteiras dos fundos não acompanha os preços de mercado de maneira fiel nem traduz adequadamente o risco de crédito das empresas emissoras.
Como muitos dos ativos de crédito são ilíquidos, ou seja, pouco negociados no mercado secundário, o valor que aparece das carteiras pode ser bastante diferente do preço que será obtido ao se tentar vender o ativo no mercado.
Quando o universo dos ativos de crédito é atualizado para refletir as condições de mercado, o valor equivale a 95% do preço de face dos títulos, na média, segundo estimativa da POP BR, precificadora de ativos ilíquidos da Luz Soluções Financeiras. À primeira vista, a diferença pode parecer pequena. Porém, justamente por se tratar de uma média, acaba ocultando os desvios maiores, que ocorrem justamente em empresas mais alavancadas e menos líquidas.
“Apesar de, na média, a marcação a mercado mostrar uma perda de cerca de 5%, os casos pontuais que apresentam problema podem trazer perdas expressivas. Além disso, se considerarmos o volume crescente de negociações, a quantidade de pessoas impactadas amplifica ainda mais a importância da marcação a mercado”, afirma Aruã Torigoe, analista da POP.
Há, tradicionalmente, dois modos de indicar quanto vale um ativo de renda fixa em um dado momento. A “marcação na curva” é o método de avaliar um título usando a taxa de juros contratada na emissão do papel, o que faz com que o valor do título cresça de forma previsível e constante. É um modo de estimar quanto o investidor terá se carregar o ativo até o vencimento. Caso não ocorra um evento de crédito — um default ou um pedido de recuperação judicial, por exemplo —, o alocador receberá o valor contratado.
Porém, caso precise ou queira se desfazer do ativo antes do prazo, o investidor estará sujeito às condições de mercado. Quando um ativo é “marcado a mercado” (“mark-to-market” ou MTM), são incorporadas ao preço informações como o risco de mercado — como a oscilação da taxa de juros de referência desde o momento da emissão — e o risco de crédito daquele emissor, além de outras variáveis.
Um exemplo dessa dinâmica fica evidente ao acompanhar o preço no mercado secundário dos CRAs da distribuidora de insumos Belagrícola. Em outubro, a companhia suspendeu o pagamento a credores por 60 dias após uma decisão favorável na Justiça. Segundo levantamento feito pela consultoria Uqbar, os papéis tinham baixa liquidez e, mesmo depois disso, a oscilação dos preços no mercado secundário foi insignificante.
A questão é que o investidor que tentar se desfazer do papel dificilmente receberá um valor próximo ao contratado no momento da emissão do título. No início de dezembro, a pedido do Valor, um gestor procurou bancos e distribuidoras para fazer uma cotação atual do papel. Na única plataforma de negociação de renda fixa em que foram encontradas ofertas ativas no mercado secundário, só havia propostas de compra (“bid”) para um dos 18 CRAs emitidos pela Belagrícola e acompanhados pela reportagem. Só que, mesmo nessa plataforma, o mercado era virtualmente inexistente. Enquanto o preço de compra estava em 4% do valor cheio do título (“par”), o preço de venda (“ask”) estava a 63% do valor do papel — uma distância muito grande e que sinaliza a ausência de negócios.
Episódios semelhantes são notados por uma gama ampla de profissionais de mercado que lidam com gestão de recursos. João Henrique da Fonseca, economista e sócio fundador da Azul Wealth Management, revela que ao tentar se desfazer de alguns CRIs que um cliente novo tinha na carteira, não teve sucesso mesmo ao oferecer um deságio de 60% pelos títulos.
“Felizmente temos pouquíssimos ativos desse tipo, a maioria herdado de gestões anteriores das famílias. Mas, se a gente tenta se desfazer, não consegue. Por mais que os marcadores digam que a marcação equivale a 99% do par, não tem demanda nesse preço. Se tem demanda, é a 30% do valor. Essas assimetrias me preocupam no mercado brasileiro”, afirma.
Ele nota que o problema vem se tornando mais frequente, e a dificuldade na marcação dos ativos acaba reforçando comportamentos adversos. “De uns tempos para cá, comecei a perceber uma assimetria no que de fato está acontecendo no crédito das empresas e nos preços dos ativos dessas mesmas empresas. Essa correlação não existe hoje no mercado brasileiro. Isso tem criado, na cabeça dos investidores, a percepção de que alguns ativos mais arriscados, por serem ilíquidos, podem ser melhores ou menos arriscados que outros que são mais líquidos e, portanto, sujeitos à marcação de mercado. Está sendo criada uma seleção adversa”, afirma.
“Quem entende de crédito começa a ficar assustado com o fato de que existem empresas com balanços muito ruins, com alavancagem de 5 ou 10 vezes o Ebitda e notícias de atrasos em jornais, mas com o preço dos ativos marcado pelos distribuidores ao par. Simplesmente não corresponde à realidade.”
Fonseca aponta, assim, para a possibilidade de um ciclo vicioso de incentivos. “Como os produtos ilíquidos são marcados de modo mais benigno do que a realidade, investidores acreditam erroneamente que são produtos mais seguros e rentáveis e tendem a preferir esses ativos. Com isso, os distribuidores percebem uma demanda maior e acabam sendo criados produtos mais ilíquidos. Houve uma explosão de fundos imobiliários cetipados [que não são negociados em bolsa e têm baixa liquidez]. Cria-se um ciclo vicioso de autoengano. O investidor tem uma propensão a não lidar bem com a verdade e o mercado opta por criar uma oferta de produtos e serviços que são ilíquidos para atender essa demanda”, afirma.
O sócio da Journey Capital Rogê Rosolini também relata que se depara com a situação com alguma frequência. Ainda que pela regulação da Anbima, desde janeiro de 2023, exista a obrigatoriedade de as instituições financeiras marcarem os títulos a mercado, algumas brechas regulatórias permitiram que investidores pudessem restringir as próprias opções de acesso à precificação mais próxima da atual dos ativos.
“A força do lobby deixou o investidor qualificado marcar na curva. O que vimos em seguida? Um movimento comercial forte de convencer clientes a deixarem a marcação na curva. E também há a outra prática bem disseminada de fazer vista grossa para quem se declara qualificado mesmo sem atender aos requisitos”, diz.
A opção pela marcação na curva, na sua visão, é como o paciente quebrar um termômetro para não ver que está com febre. “Se a qualidade do crédito vai piorando, o ‘yield’ [rendimento] vai subindo e isso é um indicador de que as coisas não vão bem. Mas há uma série de razões para que a indústria busque evitar isso ao máximo. Imagine uma debênture com prazo médio de 10 anos e que é negociada com um spread de 0,5% ao ano entre o preço de compra e o preço de venda. Seria um impacto de 5% no preço. O cliente investe e, no dia seguinte, ele veria o ativo 5% abaixo do valor investido. Então há uma força grande para evitar que se marque tudo a mercado. Mas é do melhor interesse do cliente”, diz.
Sobre CRIs e CRAs, Alfredo Marrucho, diretor de conteúdo da Uqbar, diz haver uma distorção provocada pelos incentivos tributários. “O investidor pessoa física é um dos principais no mercado de CRI e CRA. É desnecessário dizer que a maioria não tem conhecimento nem tempo para analisar esses títulos. Por outro lado, grandes empresas veem no veículo uma forma de se financiar a custos mais baixos. Na prática, temos títulos de securitização de tipo concentrado/corporativo de médio prazo na mão de investidores pessoa física”, afirma.
O cenário, segundo ele, é agravado por uma cultura precária de dados. “O regime informacional exigido pelo regulador é básico e os participantes se esquivam de, voluntariamente, disponibilizar dados granulares do lastro. Se não se sabe o desempenho do lastro, a precificação fica muito prejudicada. Mesmo quando há um fundo de investimento imobiliário de CRI na ponta investidora, os gestores nem sempre demonstram a maturidade necessária para precificar, e acabam fazendo algo muito próximo do valor da curva. Um investidor institucional de alto nível não deveria depender unicamente de secundário para precificar um CRI.”
Outro problema é a dificuldade de negociar valores menores no mercado secundário. “Quem vai gastar tempo analisando um título sem os dados granulares e para comprar R$ 500 mil reais? Um institucional que não vai ser. E mais: como o investidor pessoa física que está vendendo sabe se o preço pedido está bem fundamentado? Me parece claro que essa assimetria gera distorção na formação de preços”, afirma.
Rafael Paschoarelli, professor de finanças da Universidade de São Paulo (USP), avalia que o debate é complexo. “Às vezes, não tem mágica. Se o ativo não tem liquidez, como você vai dar o preço a mercado? O segundo aspecto é que, no extrato, a instituição tem que colocar um preço e não há o preço de mercado. Você poderia criar algum modelo e seria uma precificação por métodos matemáticos, que vai estimar o preço a partir de outros papéis parecidos. A outra possibilidade é colocar na curva que o cliente comprou. Mas isso não é um preço, é um exercício teórico, uma ficção. Não tem solução fácil”, diz.
“O problema é quando você tem um preço de mercado, ele é desfavorável ao cliente e o ativo continua marcado na curva de compra. Aí sim há um problema seriíssimo. Entra um desalinhamento, ou conflito, de interesses.”
A dificuldade também é extrapolada para o universo dos fundos de investimento. É obrigação dos administradores atualizar os preços dos ativos das carteiras e utilizar modelos para a precificação dos papéis com baixa liquidez. Na avaliação de Guilherme Cook, sócio da Lobo de Rizzo Advogados, a atribuição é uma tarefa complexa.
“Essa é uma obrigação atribuída ao administrador, parte que cobra 0,1% ao ano. É uma discussão superdifícil. Hoje o papel da marcação está na mão de alguém que não tem acesso às informações e, quando estamos olhando para um ativo ilíquido e incerto, estamos falando, basicamente, de um serviço de ‘valuation’ [avaliação], que é um conhecimento mais próximo do da gestora. A responsabilidade de fazer o ‘fair value’ [valor justo] está alocada de forma desproporcional a quem não deveria ser cobrado em ter a expertise de fazer isso”, diz. “Isso cria uma relação grande entre o administrador e o gestor para precificar o ativo, o que aumenta o risco de conflito de interesses. Ainda mais para esses ativos que são mais complicados.”
De um lado, a marcação na curva traz o risco da transferência de riqueza entre cotistas de um fundo aberto, segundo Cooke. De outro, não há maturidade suficiente no mercado secundário de crédito. “O que a regra espera que se faça não está errado, mas é difícil de fazer. O que acaba sendo necessário é o gerenciamento do risco de liquidez.”
Para ele, se um fundo tem ativos cuja marcação de preços “não é simples ou certeira”, resgate dos investimentos não pode acontecer em D+1, ou seja, no dia seguinte ao pedido feito pelo investidor. “Tudo junto é muito incentivo para as coisas darem errado.”
Fonte: Valor Econômico