O impacto da perda de receita de empresas do setor elétrico causada pelos cortes de geração de energia, impostos pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e conhecidos pelo termo “curtailment”, já chegou aos bancos. Algumas empresas estão quebrando cláusulas financeiras de contratos de financiamento (“covenants”) e provocando uma onda de “waivers”, pedidos de dispensa formal às instituições financeiras para evitar penalidades e vencimento antecipado de dívidas.
Segundo uma fonte de um grande banco, as empresas estão negociando uma flexibilidade dos contratos e os casos estão sendo analisados de forma individualizada. Para aquelas em que o problema financeiro está concentrado nos cortes de geração de energia elétrica, as instituições financeiras estão concedendo o “perdão” na quebra de cláusulas de alavancagem máxima. No entanto, explicou a fonte, estão chegando companhias com problemas adicionais. Nesses casos, os bancos têm pedido mais garantias nesse processo de renegociação.
O diretor da prática de finanças corporativas da FTI Consulting, Luciano Lindemann, diz que além dos “waivers”, as negociações dos credores estão envolvendo cortes dos valores devidos, os chamados “haircuts”, em processos de reestruturação. “Também estamos observando muitos projetos mudando de mãos”, diz o executivo.
Os cortes de geração determinados pelo ONS ocorrem por três motivos: a falta de infraestrutura de transmissão, como linhas danificadas ou atrasadas, em que a empresa geradora pode ser ressarcida por não ser responsável pelo problema; quando as linhas de transmissão atingem o limite de capacidade e a energia não pode ser escoada; e o excesso de oferta de energia em relação à demanda. Nos dois últimos casos, não há direito a compensação.
Segundo estimativa da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), empresas do setor eólico e solar tiveram perdas que somam R$ 5,2 bilhões de outubro de 2021 a julho deste ano. Quase metade dos cortes aconteceu de janeiro a julho deste ano, com prejuízo estimado em R$ 2,5 bilhões.
Companhias como Renova, Auren, Equatorial, Serena, Engie, Alupar, entre outras, têm registrado cortes significativos na geração de energia. Em alguns casos, ultrapassam 50% da produção.
Empresas que não vão precisar de renegociação de dívida serão exceções”
“As empresas estão perdendo a capacidade de cumprir seus compromissos. É uma crise absurda na indústria de energia eólica, e solar também, que vai chegar a patamares nunca vistos”, disse Elbia Gannoum, presidente da entidade, ao Valor. Segundo a Abeeólica, menos de 2% dos cortes atualmente dão direito a ressarcimentos às empresas.
O ONS, por sua vez, afirma que parte das restrições não está relacionada apenas às falhas de infraestrutura, mas principalmente ao excesso de oferta. Em nota, o operador informou que, até agosto, 54% das reduções de geração ocorreram por falta de demanda da sociedade.
Apesar das queixas, ainda não existe uma definição de como e se as companhias serão ressarcidas. Só a CPFL Energia acumulou, no ano, um impacto financeiro de R$ 131 milhões.
Chefe de project finance do Itaú BBA, Marcelo Girão confirma os pedidos de “waiver” e prevê que este nível de perdas de geração vai levar a negociações de reperfilamento, alongamento de dívidas ou carência de pagamento até uma solução para os cortes. Segundo Girão, na época em que os investimentos foram decididos e os projetos receberam financiamento dos bancos, não se cogitava que o “curtailment” pudesse reduzir a receita em até metade.
“Se nada for feito, empresas independentes, que não fazem parte de um grande grupo e não têm outras fontes de recursos, vão passar por dificuldades. Essas dificuldades podem se manifestar de diferentes formas, como venda, reestruturação ou até mesmo recuperação judicial.”
O responsável pelo setor de energia na área de project finance do Santander, Igor Fonseca, diz que há uma grande apreensão para este segundo semestre, com a entrada da chamada “safra dos ventos”, que é quando a geração de energia eólica aumenta.
“Os casos de empresas do setor que não vão precisar de renegociação de dívida, seja uma postergação ou reperfilamento de dívida, serão exceções. São projetos que foram modelados para suportar uma geração de energia entre 20% e 30% abaixo e, mesmo assim, pagar o serviço da dívida. Ocorre que alguns grupos mais capitalizados estão realizando aportes extraordinários para evitar um colapso”, afirma Fonseca.
No grupo de empresas de capital fechado que sofre com os cortes estão Voltalia, Essentia (Pátria), Spic e Elera. A lista reúne grupos de diferentes origens (americano, francês, brasileiro, chinês e canadense) e todos impactados. Karin Luchesi, CEO da Elera, investida pela Brookfield, diz que o setor subestimou o problema. Segundo ela, tratam-se de ativos recém-inaugurados, com cerca de 70% de financiamento e perda de receita.
Em fevereiro, o complexo eólico Alto Sertão, da Elera, teve 72% da produção interrompida. Para a executiva, ser impedida de gerar energia representa quebra de contrato, já que há autorizações de geração. Ela diz que um pedido formal de “standstill” (suspensão temporária do pagamento de dívidas) setorial foi feito ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
“Fizemos o pedido de ‘standstill’ via associação [Absolar] para o BNDES e está sendo avaliado pelo banco, que aguarda uma sinalização do Ministério [de Minas e Energia] e da Aneel de um endereçamento do problema”, disse.
Em nota, o BNDES informou que ainda não há demandas de empresas do setor elétrico para a suspensão temporária de pagamentos de dívidas. Mas disse que o cenário do setor é acompanhado e avaliado, “inclusive no âmbito da Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] e Ministério de Minas e Energia”, para definição e adoção de possíveis medidas.
Já o BNB disse que situações envolvendo empresas afetadas por ajustes na produção estão sendo tratadas individualmente, e negociações conduzidas caso a caso. Informou também que sua carteira de crédito permanece “saudável”, com garantias compatíveis com os tipos de projeto financiados.
A percepção de que o problema pode se estender para além da operação das empresas também preocupa investidores. Fabio Bortoluzo, CEO da Atlas, empresa que tem como investidora a Global Infrastructure Partners (GIP), fundo ligado ao BlackRock, diz que a questão não se limita às dificuldades de caixa imediato. “Temos preocupação com os projetos operacionais, estamos em atenção para cumprir todas as obrigações financeiras e contratuais e com a preocupação de que isso inviabilize novos projetos”.
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, prometeu resolver a situação por meio de uma portaria ou resolução. Contudo, em entrevista recente ao Valor, o diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa, criticou o que ele considera “prática recorrente” de agentes do setor de transferir aos consumidores aos consumidores os riscos associados à geração de energia elétrica no Brasil.
Nos bastidores, fala-se que os bancos privados podem arcar com os riscos, já que parte das operações envolve fianças bancárias em que essas instituições dão garantias. O problema já fez as primeiras vítimas. A Rio Alto alegou, em sua recuperação extrajudicial, o problema do “curtailment”.
Rômulo Greff Mariani, advogado da RGMA Resolução de Disputas, lembra que não é de hoje que se prevê o colapso financeiro de alguns agentes em função de disfuncionalidades. Ele acredita que, com mais entrada geração distribuída, o problema deve piorar em 2026 e 2027, “e poderemos ver mais gente pedindo recuperação judicial”.
No setor elétrico, no entanto, é usual que todas as pendências econômicas acabem sendo pagas pelo consumidor final na conta de luz. Cálculos da consultoria PSR apontam que o repasse de cada bilhão de reais para o setor, significa um aumento de 0,4% nas tarifas.
Procurado, o Ministério de Minas e Energia (MME) disse que o tema está em avaliação na pasta.
Fonte: Valor Econômico

