Anurag costuma dizer que já se acostumou com as dezenas de ligações e as várias visitas diárias de cobradores à sua casa, localizada em um subúrbio de classe média ascendente em Mumbai.
Mas essa pressão atingiu um novo ápice há cerca de um mês, quando, segundo ele, um agente de um banco indiano ligou para o chefe de sua esposa para reclamar sobre as dívidas em atraso, colocando sua família sob forte tensão e os expondo a vergonha e exclusão social.
“Essa luta financeira causou uma depressão profunda, da qual não falo com ninguém”, diz Anurag, na casa dos 50 anos, que pediu para ter sua identidade preservada. Desde que perdeu o emprego em uma agência de viagens no final do ano passado, ele acumulou cerca de US$ 13 mil em dívidas e consumiu todas as suas economias.
“Você começa a questionar seu próprio valor pessoal”, afirma. “Se pergunta se sua existência faz algum sentido. Sente que decepcionou as pessoas e, às vezes, pensa em coisas extremas — como não querer continuar vivendo.”
A história de Anurag, de endividamento crescente, tem se tornado cada vez mais comum entre a classe média indiana — um segmento supostamente em ascensão que é constantemente exaltado por banqueiros e consultores como prova do potencial de investimento do país mais populoso do mundo. Multinacionais como Amazon, Samsung e Walmart apostaram alto acreditando que, com o aumento da renda na Índia, o consumo também dispararia.
“Todo mundo quer um notebook, todo mundo quer uma TV, todo mundo quer um smartphone”, diz Anil Agarwal, bilionário e presidente do conglomerado indiano de energia e recursos naturais Vedanta. “Eles querem um carro, uma moto, e que seus filhos estudem em boas escolas — a demanda é enorme.”

Esse desejo impulsionou um boom no crédito ao consumidor, que cresceu mais de 30% ao ano em 2023. Parte desse crédito foi usada para ostentar um estilo de vida exibido nas redes sociais. Outra parte foi tomada para cobrir despesas básicas do dia a dia, à medida que o custo de vida disparou após a pandemia de Covid-19.
Mas um momento de ajuste está se aproximando rapidamente. A dívida das famílias cresceu para cerca de 43% do PIB em junho, contra pouco mais de 35% em março de 2020, segundo dados recentes do Banco Central da Índia (RBI). Uma ação de contenção lançada pelo RBI em 2023, após alertas de que o crédito ao consumo estava saindo do controle, afetou os lucros do setor financeiro — justamente quando muitos indianos enfrentam dificuldades para quitar suas dívidas.
Mais amplamente, a crise do crédito sem garantias ameaça romper com a narrativa de que a Índia é uma potência emergente movida por uma classe média em expansão. O primeiro-ministro Narendra Modi deseja que o país escape da chamada “armadilha da renda média” — período de estagnação que segue uma fase de crescimento acelerado — e atinja o status de país desenvolvido até 2047, ano do centenário da independência da Grã-Bretanha.
Esse estresse está “alimentando o tipo de desigualdade que estamos vendo”, afirma Kunal Kundu, economista do banco Société Générale. “Embora a Índia ainda seja a economia de grande porte que mais cresce, o que as pessoas não percebem é que apenas uma pequena parte da população está impulsionando esse crescimento.”
Os gastos da frágil classe média urbana da Índia — um grupo fluido, de definição imprecisa, mas estimado em dezenas de milhões de pessoas — diminuíram, contribuindo para um cenário de desaceleração econômica mais ampla.
O governo indiano estima que o crescimento do PIB caiu para 6,5% no ano fiscal encerrado em março, comparado a 9,2% no ano anterior — bem abaixo da taxa de 8% considerada necessária para alcançar os objetivos de desenvolvimento do país.
A bonança do crédito fácil, acessível com poucos cliques, representou uma grande ruptura com a atitude tradicionalmente conservadora dos indianos em relação às finanças familiares.
Mesmo com uma economia menos dependente de exportações do que outros países asiáticos, analistas dizem que a Índia ainda será afetada pela guerra comercial global iniciada pelo então presidente dos EUA, Donald Trump.
O consumo está caindo justamente no momento em que cerca de 10% dos indianos assalariados de renda média estão presos em uma armadilha de dívidas, segundo estudo da gestora Marcellus Investment Managers, de Mumbai. A empresa destacou que a poupança das famílias como percentual do PIB está em seu menor nível em 50 anos, enquanto os rendimentos estão estagnados há uma década. Enquanto isso, os preços dos alimentos praticamente dobraram.
“O acúmulo de dívidas familiares foi frenético nos últimos cinco anos”, diz Saurabh Mukherjea, diretor de investimentos da Marcellus.
Mesmo quando estava empregado, Anurag havia contraído vários empréstimos e cartões de crédito para se manter, mas conseguia pagar as parcelas graças à renda familiar combinada de cerca de US$ 23 mil por ano.
Sua situação, no entanto, tornou-se cada vez mais frágil. Nos dois últimos empregos, passou a ganhar menos, enquanto despesas como mensalidades escolares aumentaram, o que o empurrou ainda mais para o endividamento. “Não acho que vivíamos de forma luxuosa”, relembra. “Tentávamos nos sentir confortáveis em casa, comíamos fora de vez em quando e fazíamos algumas viagens antes de eu perder o emprego.”
Ritesh Srivastava, CEO da empresa indiana de resolução de dívidas Freed, que ajudou Anurag a reorganizar suas finanças, relata um aumento anual de 15% no número de clientes, que normalmente acumulam cerca de seis empréstimos totalizando US$ 6 mil, com uma renda mensal entre US$ 460 e US$ 580. “É como tirar de um santo para pagar outro”, resume Srivastava.
Após um revés eleitoral no ano passado, visto como um protesto contra a falta de empregos bem remunerados, o governo Modi reconheceu, ainda que tardiamente, o quadro de sofrimento financeiro. Em fevereiro, a ministra das Finanças, Nirmala Sitharaman, declarou que “a classe média é a força motriz do crescimento da Índia” e anunciou uma série de isenções fiscais para “colocar mais dinheiro no bolso dos cidadãos”.
Essas medidas foram um reconhecimento tácito da pressão sobre os assalariados indianos, mesmo que os níveis de endividamento das famílias ainda sejam mais baixos que os observados em países desenvolvidos.

Alguns economistas argumentam que o acúmulo de crédito atingiu de forma desproporcional os estratos médios e inferiores da pirâmide de riqueza altamente estratificada da Índia, onde uma elite bilionária — os chamados “Bollygarchs” — ocupa o topo de uma sociedade cujo PIB per capita está abaixo de US$ 3 mil.
“Não fizemos o suficiente para elevar os níveis de prosperidade de forma mais equitativa”, afirma Dhiraj Nim, economista do grupo ANZ. “Existe uma divisão que só aumentou nos últimos anos, e isso é um grande obstáculo para concretizar os sonhos de 2047.”
Há uma década, o então presidente do Banco Central da Índia, Raghuram Rajan, criticou o capitalismo de compadrio profundamente enraizado que levou os bancos a acumularem empréstimos inadimplentes, e exigiu que os credores começassem a “eliminar as maçãs podres”.
Ele obrigou os bancos a revisar a qualidade de seus ativos e a fazer grandes provisões para cobrir dívidas corporativas deterioradas, ao restringir a liberação de capital. Mas essa limpeza teve efeitos colaterais: temendo sanções regulatórias, os bancos indianos reduziram drasticamente o crédito às empresas — que cresceu apenas 4% ao ano desde 2014, contra mais de 20% na década anterior.
Em vez disso, os bancos passaram a oferecer cartões de crédito e empréstimos pessoais — muitos promovidos por estrelas de Bollywood como Shah Rukh Khan e Ranbir Kapoor — a milhões de indianos, com juros mais altos do que os cobrados das empresas.
O crédito fácil estava disponível com um toque no celular, graças a pacotes de dados baratos, aplicativos de empréstimo e ao modelo “compre agora, pague depois” (EMIs – parcelas mensais fixas), que possibilitou a compra de produtos como TVs e máquinas de lavar, antes inacessíveis.
Isso também representou uma ruptura com a mentalidade tradicional indiana, onde ostentar gastos era malvisto. Uma pesquisa recente da PwC com a empresa Perfios mostra que os indianos mais conectados com tecnologia agora gastam 33% de sua renda apenas com o pagamento de parcelas. Os gastos com cartão de crédito cresceram 28% ao ano desde 2013, com os empréstimos não garantidos acelerando após a pandemia.
“O impulso de sair gastando logo após a reabertura da economia, somado à facilidade de acesso ao crédito bancário graças à tecnologia, levou a esse boom dos empréstimos pessoais”, explica Nim, do ANZ.
“Tudo isso estimulou a ‘financeirização’ das economias familiares de maneira muito rápida — mesmo com um nível de renda per capita e de educação financeira muito abaixo do que se viu em outras economias”, acrescenta. “Essa é a parte arriscada, e que agora todos estão começando a perceber.”
Com o aumento desenfreado do endividamento no final de 2023, o RBI reagiu com firmeza ao que o então presidente Shaktikanta Das chamou de “exuberância”. O banco elevou o peso de risco — a quantidade mínima de capital que a instituição deve manter em relação ao ativo — dos empréstimos pessoais, de 100% para 125%. Isso provocou uma queda acentuada no crédito ao consumo, que hoje está menos da metade do seu pico.
“As pessoas altamente endividadas viram suas linhas de crédito sendo cortadas”, diz Amitabh Chaudhry, CEO do Axis Bank, um dos maiores bancos privados da Índia. “Aquelas que já estavam no limite foram empurradas para além dele, porque à medida que o mercado passou a registrar mais perdas, os bancos começaram a ser mais rigorosos nas concessões.”
Nesse ínterim, muitos investidores de varejo também usaram crédito não garantido para investir na bolsa de valores, motivados pela alta das ações, impulsionadas pelo dinheiro doméstico. Muitos jovens indianos também apostaram em derivativos de alto risco.
A seguir, algumas empresas indianas começaram a reportar lucros mais fracos no ano passado, com a queda na demanda e a saída de investidores estrangeiros. O índice Nifty 100, que acompanha as principais ações indianas, caiu 14% após atingir recordes em setembro.
Os atrasos superiores a 90 dias no pagamento de empréstimos pessoais chegaram a 5,2% em setembro, contra 2% em 2019, segundo a Nomura.
Grande parte desses empréstimos sem garantia foi viabilizada por instituições financeiras não bancárias e pelo setor de microcrédito, que cresceu 37% ao ano no exercício encerrado em março de 2023. A agência de classificação CareEdge da Índia espera que esse crescimento tenha despencado para 4% neste ano.
Em especial, as instituições de microfinanças da Índia — que normalmente concedem empréstimos sem garantias para quem ganha até cerca de US$ 3.400 por ano — registraram um salto na inadimplência (atrasos acima de 90 dias), de 7,9% para 13% em dois anos, após a desregulamentação das taxas do setor em 2022, segundo a S&P Global Ratings.

“Vai levar um tempo até que o sistema consiga expurgar isso”, diz Chaudhry, do Axis Bank, que no último trimestre de 2023 dobrou suas provisões para calotes, chegando a cerca de US$ 250 milhões. “Estamos preocupados com a possibilidade de que parte desses calotes possa migrar para o crédito com garantias.”
No entanto, Gopal Jain, sócio-gerente da Gaja Capital — uma gestora de private equity com sede em Mumbai que investe no setor financeiro — minimiza essas preocupações. Segundo ele, o crédito sem garantias ainda representa “uma fatia pequena”, equivalente a menos de 10% do crédito total do sistema bancário, e é “uma necessidade social na Índia”, dado o número reduzido de cidadãos que possuem bens para oferecer como garantia.
“O gênio já saiu da garrafa… correções foram feitas e a tendência deve continuar com bases mais saudáveis e lições aprendidas”, argumenta Jain. “Os clientes da Índia, que têm poucos ativos, estão sedentos por crédito — mas no próximo ciclo teremos que fazer um trabalho melhor para controlar o custo desse crédito.”
As práticas mais obscuras do setor de crédito ainda não foram totalmente controladas. Ranganathan Iyer, ex-vendedor de 59 anos, perdeu o emprego durante a pandemia e acabou com uma dívida superior a US$ 70 mil — aproximadamente o dobro da renda anual de sua família, estimada em US$ 35 mil.
À medida que os bancos continuavam oferecendo facilidades de “empréstimos adicionais”, ele e sua esposa aceitaram — no total, foram 20 empréstimos de 11 instituições diferentes. Então, cobradores musculosos começaram a aparecer em seu prédio, em Mumbai, causando “escândalos” diante dos vizinhos. Aproveitando-se das leis frouxas de proteção de dados na Índia, os credores passaram a contatar parentes e amigos dos devedores, lançando uma rede de intimidação para forçar o pagamento.
“Eles ligam para familiares e amigos, tornando ainda mais difícil conseguir ajuda financeira de alguém”, diz ele.
A prática desenfreada — e muitas vezes ilegal — de intimidação por cobradores agora começou a chamar a atenção da política. Neste ano, Karnataka, estado no sul da Índia governado pelo partido de oposição Congresso, aprovou uma legislação para coibir práticas de cobrança “desumanas” e coercitivas, após uma série de suicídios em comunidades agrícolas e vilarejos.
“Esses são segmentos vulneráveis da sociedade”, diz Krishna Byre Gowda, ministro da Receita de Karnataka. “Eles não têm capacidade para arcar com as dívidas, mas muitas instituições de microfinanças estão emprestando além do que é recomendado — isso está levando a dívidas insustentáveis.”
Byre Gowda criticou o governo Modi por “ficar em silêncio diante da situação — isso é um sintoma claro de sofrimento social nos níveis mais baixos da população, que o governo central provavelmente não quer reconhecer”.
Anirban Bhattacharya, líder da equipe nacional de finanças do Centre for Financial Accountability, com sede em Nova Délhi e atualmente conduzindo um estudo sobre o endividamento nas zonas rurais da Índia, diz: “Não há qualquer reconhecimento de que estamos diante de uma crise.”
O Ministério das Finanças da Índia não respondeu aos pedidos de comentário da reportagem.
Em alguns casos, o RBI interveio, impondo, em outubro de 2024, uma ordem de “cessar e desistir” a quatro instituições financeiras não bancárias e empresas de microfinanças, por práticas de preços abusivos, falta de transparência nas informações ou falhas na avaliação da renda familiar e dos compromissos mensais fixos.
Ainda assim, o atual presidente do RBI, Sanjay Malhotra, que assumiu o cargo em dezembro, afirmou recentemente que as medidas do banco central “funcionaram como planejado”. Em fevereiro deste ano, o RBI chegou a suspender parcialmente algumas das medidas relacionadas ao peso de risco.
Kunal Kundu, do Société Générale, acredita que a pressão sobre as famílias de baixa renda ainda está longe de terminar. O número de pessoas que penhoraram ouro e joias subiu 77% em janeiro, na comparação com o ano anterior — possivelmente depois que outras linhas de crédito foram cortadas. “A base da pirâmide está realmente sofrendo”, afirma. “É um claro sinal de estresse financeiro doméstico.”
Enquanto isso, uma nascente indústria de gestão de dívidas surgiu como um salva-vidas para pessoas como Iyer, e cresce no mesmo ritmo da sede da Índia por crédito.
Mas representantes do setor alertam que pouco está sendo feito em termos de políticas públicas para conter o avanço do endividamento. “É uma bomba-relógio prestes a explodir”, diz Harish Parmar, fundador da agência de negociação de dívidas SingleDebt, que ajudou a proteger Iyer contra os cobradores agressivos ao assumir as tratativas com os bancos. “Não parece haver nenhuma solução concreta na mesa.”
Apesar da ajuda profissional que recebeu para reorganizar suas finanças, Iyer, que ainda busca uma recolocação no mercado de trabalho, sente os efeitos emocionais da situação.
“Todo o respeito que eu ainda tinha, eles destruíram”, diz ele, sobre o que aconteceu com sua reputação. “Depois que você cai nesse ciclo, não consegue mais sair.”
Fonte: Financial Times
Traduzido via ChatGPT

