Proposta que divide especialistas será agora analisada pelos senadores em plenário e foi aprovada sem a previsão de remunerar os doadores de sangue
Por Caetano Tonet, Julia Lindner, Beth Koike e Lucas Ferraz, Valor — Brasília e São Paulo
04/10/2023 15h59 Atualizado há 14 horas
Em uma votação em que parte da base aliada ignorou a orientação do governo de votar contra a matéria, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou nessa quarta (4) uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que permite a coleta, processamento e comercialização de plasma sanguíneo no Brasil pela iniciativa privada. A matéria, que divide especialistas e é considerada polêmica por segmentos do Congresso, foi aprovada por 15 votos a 11.
Por se tratar de uma mudança na Constituição, a PEC agora precisa ser votada em dois turnos no plenário do Senado e, se aprovada (com o apoio de 3/5 dos parlamentares), segue para o mesmo rito na Câmara dos Deputados. Se for aprovada no Congresso, a proposta vai atualizar a Lei do Sangue, que é de 2001.
A bancada do PSD, governista, deu seis votos a favor do relatório da senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), vice-líder do governo na Casa. A posição foi acompanhada também pelo líder do União, Efraim Filho (PB), e por senadores oposicionistas como Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Ciro Nogueira (PP-PI) e Rogério Marinho (PL-RN).
O plasma é um dos componentes do sangue. Considerando um litro de sangue, 55% são plasma e 45% são glóbulos vermelhos. Numa doação, apenas os glóbulos vermelhos são todos aproveitados, enquanto do plasma, apenas 15%.
Um dos pontos mais questionados era o que permitia a remuneração para os doadores de plasma, mas o trecho foi retirado pela relatora. Esse pagamento pela doação, que não constava do texto original da PEC, de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), foi incorporado ao texto graças ao lobby das multinacionais do setor.
Ainda assim, governistas afirmam que o texto abre margem para a venda do material por não vedar a prática expressamente.
Na avaliação do governo, o relatório deixa boa parte das regras para a fase de regulamentação: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada, para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos hemoderivados destinados a prover preferencialmente o SUS”.
Atualmente, apenas a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), estatal criada em 2004, pode coletar o plasma para produzir hemoderivados no Brasil. Mas as instalações da empresa, em Pernambuco, estão em construção há 13 anos e ela ainda não tem condição de processar o plasma — o que é feito na Europa pela Octapharma, multinacional que é uma das gigantes do setor.
Pouco antes de a CCJ aprovar o texto, o ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência, Alexandre Padilha, foi ao Senado e fez fortes críticas à proposta. Segundo Padilha, que é médico, a PEC cria um “vampirismo mercadológico”.
“Essa feira de compra e venda de sangue humano tem um risco sanitário gravíssimo. Quando você começa a transformar isso em algo a ser vendido, na prática, empresas privadas vão captar um volume cada vez maior desse sangue para vendê-lo e com isso se reduzem as regras de controle e descarte”, disse o ministro.
Para o diretor-presidente da Hemobrás, Antonio Edson de Souza Lucena, era previsível a aprovação da PEC na CCJ, comissão dominada pelos oposicionistas. “Nas nossas contas, a proposta seria aprovada por uma diferença de sete votos, no final foram apenas quatro”, disse. Lucena afirma que o discussão em torno do tema, “muito medíocre até agora”, está só começando, já que a matéria deverá ainda ser analisada nos plenários das duas casas do Congresso.
Mas ele ressalta que a aprovação da proposta atendeu aos interesses dos hemocentros privados — que respondem por um terço dos existentes no país — ao proibir a remuneração ao doador. Eles resistiam à ideia de pagar pela doação já que será possível aproveitar o plasma excedente, que acaba descartado.
A Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), que reúne a maioria dos hemocentros privados do país, comemorou o avanço da PEC por considerar que ela corrige a falta de produção de hemoderivados para o tratamento dos pacientes brasileiros.
“Trata-se de uma estratégia pensada para garantir o fortalecimento da indústria nacional, o fornecimento desses insumos para todos os pacientes, inclusive do SUS, e assim salvar ou dar qualidade de vida para milhares de pessoas”, disse Paulo Tadeu de Almeida, presidente da associação.
Segundo a ABBS, o Brasil importa R$ 1,5 bilhão em medicamentos à base de hemoderivados. Questionado sobre a remuneração para as pessoas doarem ou comercializarem seu plasma, Almeida disse ser contra, pelo menos nesse momento.
“O Brasil não tem maturidade para remunerar doações de plasma, ter um programa semelhante ao dos Estados Unidos. Acredito que precisa ser de feito forma escalonada, primeiro permitindo que o setor privado aproveite o plasma das doações. Daqui a três, quatro anos volta-se a discutir o tema para ver se o país já tem condições de remunerar o doador”, disse Almeida. Nos EUA, as pessoas podem vender o plasma. Cada procedimento sai por cerca de US$ 100.
O setor privado brasileiro descarta, via incineração, entre 150 mil e 200 mil litros de plasma por ano. As empresas de banco de sangue querem comercializar esse material biológico para produção de medicamentos, normalmente usados por pacientes com problemas de baixa imunidade, mas também para tratamentos de câncer, Aids e insuficiência renal. Em 2020, relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) estimou que, desde 2017, quase 600 mil litros de plasma foram desperdiçados no Brasil.
Na área pública, a Hemobrás aproveita cerca de 50% do plasma das doações de sangue realizadas no Sistema Único de Saúde (SUS), que é encaminhado para a Europa e retorna ao Brasil em forma de medicamentos.
Neste ano, segundo o diretor-presidente da Hemobrás, a Octapharma deve processar 150 mil litros de plasma brasileiro ao custo estimado de R$ 182,2 milhões, já que o contrato assinado pelo governo brasileiro prevê o pagamento de 225 por litro de plasma fracionado.
Durante as discussões na CCJ do Senado, o líder do governo, Jaques Wagner (PT-BA), expressou preocupação de que o plasma brasileiro seja comercializado para atender os mercados estrangeiros. “Não está nem escrito que é para atender ao mercado brasileiro, é preferencialmente para atender o mercado brasileiro”, destacou.
O senador afirmou que há pouquíssimas empresas capazes de produzir os hemoderivados atualmente. Como resultado, ele acredita que as companhias utilizarão o plasma brasileiro para abastecer outras nações. “
A relatora da PEC, Daniella Ribeiro, fez coro com os especialistas do setor privado: a matéria, se aprovada pelo Congresso, vai fomentar uma indústria nacional dos hemoderivados.
O argumento é que, mesmo se a Hemobrás operar de forma plena (o que só deve ocorrer após 2025), a estatal terá condições de processar anualmente 500 mil litros de plasma, volume que atenderia em torno de 20% das necessidades brasileiras.
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Fonte: Valor Econômico