Temor é que impactos da enfermidade e sua relação com doenças crônicas tenham efeitos duradouros sobre os sistemas de medicina pública
Por Sarah Neville — Financial Times, de Londres
16/02/2024 05h01 Atualizado há 4 diasPresentear matéria
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Dois meses após ter pego covid-19 em agosto de 2021, Heather Marti, administradora de programas universitários da Virgínia Ocidental (EUA), começou a sofrer uma série terrível de sintomas que viraram sua vida de ponta-cabeça.
Marti, de 52 anos, descreve dores musculares agonizantes, problemas gastrointestinais, enxaquecas que duram semanas, névoa mental e “fadiga mental extrema similar à descrita após lesões cerebrais traumáticas”, entre uma série de outros problemas.
“[É como se] todos os comandos do meu corpo estivessem cruzados – você abre torneira e é a porta que se abre”, disse, ao buscar uma comparação para explicar o impacto devastador. “Não há um só sistema do meu corpo que não tenha sido impactado.”
Marti está longe de ser a única em sua busca por respostas. Quatro anos após o surgimento da pandemia de covid-19, os esforços para descobrir as causas da chamada covid longa e desenvolver tratamentos para o problema ainda continuam.
Neste mês, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que cerca de 6% dos que contraem a doença acabam tendo covid longa, que consiste na continuidade ou no desenvolvimento de sintomas três meses após o contágio inicial pelo sars-cov-2 e na permanência desses sintomas por pelo menos dois meses. A OMS calculou que pelo menos 17 milhões de pessoas se juntaram às fileiras dos que tiveram covid longa na Europa apenas nos primeiros dois anos da pandemia.
“Não temos a expectativa de uma cura simples, de uma solução mágica, porque sabemos por outras doenças complexas que isso raramente se alcança,” diz Melissa Heightman, que abriu uma das primeiras clínicas especializadas em covid longa no University College London Hospitals (UCLH), no Reino Unido, destacando os múltiplos fatores por trás da condição.
Não temos a expectativa de cura simples, de solução mágica”
— Melissa Heightman
Para os especialistas que estão às voltas para desvendar as causas, uma das maiores surpresas foi perceber que muitos dos afetados pela covid longa nunca estiveram entre os que pior ficaram quando pegaram o vírus de início.
Walter Koroshetz é copresidente de um programa de pesquisa nacional no Instituto Nacional de Saúde (NIH, em inglês), uma agência federal de apoio à pesquisa médica nos Estados Unidos, projetado para descobrir os “mecanismos biológicos” por trás da covid longa e desenvolver possíveis curas.
Ele disse que hospitais criaram clínicas para tratar daqueles que acabaram em unidades de terapia intensiva, na crença de que apenas os casos mais graves de covid-19 precisariam de atenção contínua. No entanto, “começaram a vir pessoas que […] nunca estiveram na unidade de terapia intensiva”, o primeiro sinal do risco que havia com os efeitos prolongados, mesmo em casos leves ou moderados.
Embora o alto número de afetados possa ter sido inesperado, a noção de uma constelação intrigante de sintomas que aparecem logo após um contágio viral é muito familiar para os especialistas em doenças contagiosas.
Koroshetz disse que a Recover Initiative, do NIH, na qual Marti é uma das quase 30 mil participantes, também espera dar respostas àqueles que vivem com encefalomielite miálgica, outra condição pós-viral, também conhecida como síndrome da fadiga crônica.
Os pesquisadores acreditam que os afetados pela covid longa, pelo menos aqueles que tiveram casos graves, podem nunca ter conseguido se livrar completamente do vírus de seus corpos, de forma que ele continuou a se replicar, ou podem ter ficado com fragmentos, mesmo depois de terem testado negativo. Isso pode levar a uma “ativação persistente do sistema imunológico e causar todos esses sintomas crônicos”, disse Koroshetz.
Um estudo do NIH, com base em autópsias, encontrou evidências de que alguns dos que perderam a vida até 280 dias após o contágio com sintomas graves morreram com traços ativos do vírus.
Um tratamento mais longo de medicamentos antivirais poderia ajudar a eliminar quaisquer bolsões restantes do vírus. Alguns pacientes no teste da Recover Initiative vêm recebendo Paxlovid por até 28 dias – muito além do tratamento de cinco dias receitado para pacientes de maior risco quando pegam covid-19.
Uma segunda abordagem é baseada na teoria de que a covid longa é primeiramente um distúrbio autoimune. Isso significa que os sistemas imunológicos dos afetados “aceleram” a tal ponto que deixam de proteger e passam ao modo de ataque, enfraquecendo as células saudáveis. Pesquisadores da Recover Initiative testarão um tratamento autoimune chamado gamaglobulina intravenosa, que, segundo Koroshetz, “reconfigura o sistema imunológico e é como um supressor imunológico”.
Janet Diaz, líder da área de cuidados críticos da OMS, observa que, paralelamente a essas abordagens, suplementos alimentares e medicamentos metabólicos como a metformina, usada no tratamento da diabete, estão sendo testados em afetados pela covid longa para descobrir se ajudam a aliviar os sintomas.
Uma pesquisa publicada em janeiro na revista científica “Science”, encabeçada pelo professor Onur Boyman, da Universidade de Zurique, relata que foram encontradas mudanças nas proteínas sanguíneas em pessoas com covid longa, o que abre mais um canal para pesquisas.
Heightman e seus colegas do UCLH concentraram-se em ajudar os pacientes a lidar com sintomas como distúrbios respiratórios, também ensinando técnicas para gerenciar a fadiga e o impacto psicológico da condição.
O cansaço extremo que caracteriza a covid longa parece ser um dos indicadores mais importantes da velocidade de recuperação de um paciente, segundo descobriram os especialistas. “Quando eles têm uma fadiga severa, a recuperação pode ser extremamente lenta”, disse Heightman.
Embora a covid longa clássica esteja associada a um grupo particular de sintomas (cujos mistérios os cientistas ainda tentam desvendar), alguns pesquisadores têm outro foco, a aparente ligação entre a infecção e o aumento de problemas mais conhecidos, como doenças cardíacas, derrames e diabetes.
Ziyad Al-Aly, chefe de pesquisa e desenvolvimento no Sistema de Saúde de Saint Louis para Veteranos de Guerra e epidemiologista clínico na Universidade Washington, constatou no grande banco de dados da organização que pacientes que se recuperaram da covid tinham chance bem maior que os que não pegaram a doença de ter ataques cardíacos e derrames ou passar a ter diabetes.
Quadro similar também fica evidente a partir de dados de países como Alemanha e Reino Unido. “As evidências mundiais reunidas sugerem que o contágio pelo sars-cov-2 leva a um aumento do risco de doenças crônicas”, disse.
Al-Aly e seus colegas estudam se as pessoas infectadas com a variante ômicron, a dominante desde o fim de 2021, têm menos probabilidade de aumento no risco à saúde do que aquelas que contraíram versões anteriores do vírus – seja por causa das mutações, da proteção oferecida pela ampla vacinação, seja por algum fator desconhecido. Eles planejam publicar suas conclusões ainda neste ano.
Heightman disse que o “tipo selvagem” original do vírus “parece ser o pior” e que a vacinação não apenas parece reduzir as chances de desenvolvimento da covid longa em pessoas que se contagiaram após a vacina, mas que há “sinais cada vez maiores de que ela pode reduzir a gravidade também”.
Embora pesquisadores nutram a esperança de que isso sinalize a possibilidade eventual alívio do sofrimento com a covid longa, Al-Aly teme que o impacto duradouro da covid na saúde seja tão forte que o aumento na incidência de algumas doenças, como derrames, tenha se tornado permanente.
Para ele, há sinais de que os governos ainda não entenderam plenamente as custosas implicações para os sistemas de saúde. “Já aceitamos quase como um fato da vida que será assim”, disse, acrescentando que não há “muita preocupação com o nível dos gastos [necessários] em recursos para a saúde”. (Tradução de Sabino Ahumada)
Fonte: Valor Econômico