A Argentina que chega às urnas no próximo domingo, em meio à deterioração generalizada da atividade econômica e com o peso em franco derretimento, é um país que ainda cumpre suas obrigações internacionais graças à China, que se transformou no emprestador de última instância aos argentinos.
Com as reservas do Banco Central no seu pior nível desde 2006 (cerca de US$ 21 bilhões), o yuan, moeda que os chineses buscam internacionalizar, foi disponibilizado num empréstimo de swap cambial – operação que consiste na troca de um valor de determinada moeda por outra – e usado pela Casa Rosada para pagar o serviço da dívida de US$ 44 bilhões que tem com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
A situação do BC, um dos sintomas mais evidentes da fragilidade econômica atual e o maior desafio para o presidente a ser eleito no dia 19, lembra um passado nada distante na memória nacional.
Evitar o esgotamento das reservas do país foi o argumento do ex-presidente Néstor Kirchner (1950-2010) para decretar o calote de 2005. A ex-presidente Cristina Kirchner, viúva de Néstor e hoje vice de Alberto Fernández, defendeu repeti-lo neste ano. Agora, contudo, não foi preciso. Graças à China.
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“Os créditos swap concedidos pelo Banco do Povo de Pequim são uma novidade absoluta nesse tipo de empréstimo pela China. Até agora eles eram empregados para acordos comerciais. No caso da Argentina, o empréstimo está sendo usado para a estabilidade cambial, principal razão da crise. Nesse aspecto, é uma inovação”, afirmou ao Valor o analista internacional argentino Jorge Castro, especializado na relação entre os dois países.
Depois do Brasil, a China é o principal parceiro comercial dos argentinos. Há 30 anos, os asiáticos ocupavam a 14ª posição.
O uso do yuan pelo BC argentino começou em 2014, no penúltimo ano do segundo governo de Cristina (2007-2015), e se acentuou nos últimos anos, em governos de esquerda ou de direita. Há dois anos, a moeda chinesa já era responsável por metade das reservas argentinas. O BC incluiu o yuan como ativo da reserva internacional muito antes do reconhecimento da moeda chinesa pelo FMI em sua cesta de referência, o que só ocorreu a partir de 2016.
O presidente Fernández foi o responsável pelo mais recente acerto entre os dois países, em junho, uma linha de swap de US$ 18 bilhões e liberado em parcelas.
Em razão do alto endividamento, a Argentina não tem acesso ao crédito internacional, e a relativa estabilidade conquistada neste ano depende diretamente do crédito chinês. O apoio de Pequim a Buenos Aires se traduz ainda em investimentos a centenas de projetos em diversas áreas, como mineração, agronegócio, infraestrutura, transportes e energia.
Os investimentos são destinados, por exemplo, para aquisição de trens do metrô de Buenos Aires, a construção de hidrelétricas, parque solar e até o desenvolvimento de um “sistema de segurança pública” em Jujuy, uma das 23 províncias do país. Somando essas dívidas à outra, contraída via linha de swap cambial, a cifra é estimada de modo conservador por analistas argentinos ouvidos pelo Valor em ao menos US$ 30 bilhões.
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“A China criou um sistema de endividamento muito sutil e eficaz, porque também financia projetos em diferentes províncias da Argentina. Esse financiamento acontece por meio de bancos chineses e está mais regulado, mas essa dívida vai se subdividindo e fica muito mais complexa de aferir um montante total”, afirma Felipe Natalini Goyeneche, do Museu da Dívida Externa Argentina, uma instituição sui generis, ligada à Universidade de Buenos Aires, que documenta o drama da dívida, um tema delicado desde a última ditadura militar (1976-83).
Desde 2013, quando Xi Jinping assumiu a presidência da China, o país reforçou ainda mais o protagonismo como financiador internacional, aportando recursos em especial dentro do megaprojeto da chamada Nova Rota da Seda (“One Belt, One Road”, ou Iniciativa do Cinturão e Rota), na qual a Argentina é signatária (o Brasil, não). A partir de 2024, o país vizinho também será parte do Brics, adesão que teve o apoio do presidente Lula, mas que era do interesse de Pequim.
Os chineses tornaram-se conhecidos pela ajuda a países em desenvolvimento com sérios problemas econômicos, como Laos, Paquistão ou Angola. A Argentina, contudo, oferece um atrativo geopolítico muito superior: é integrante do G20, que reúne as principais economias do mundo, e tem um mercado que oferece recursos naturais escassos na China, como na área de alimentos, petróleo e mineração.
Com a acirrada disputa pela Presidência, o futuro dessa relação também está em jogo.
Javier Milei, candidato de extrema direita autodeclarado “anarcocapitalista”, já atacou a China em diversas oportunidades – na campanha e muito antes, chegando a dizer que, se eleito, não faria “negócios com comunistas”. Ele também incluiu nessa lista o Brasil, pelo fato de o país ser presidido por um político considerado de esquerda.
Em agosto, antes das eleições primárias – quando superou os candidatos tradicionais -, Milei disse que “as pessoas não são livres na China, não podem fazer o querem e, quando o fazem, são mortas”. O Ministério das Relações Exteriores da China rebateu, convidando-o a conhecer o país.
“Se eleito, o mais provável é que aconteça algo como foi com Jair Bolsonaro, a realidade se impõe e ele terá de negociar e cooperar com a China. Não por convicção, mas por necessidade”, diz Patricio Giusto, cientista político que dirige o Observatório Sino-Argentino.
Durante a campanha no segundo turno, o tom de Milei foi devidamente amenizado, evitando polemizar sobre China ou mesmo a dolarização da economia, uma de suas principais bandeiras.
Pesou também a posição de neo-aliados da direita sobre o tema, caso da terceira colocada no primeiro turno, Patricia Bullrich, e do ex-presidente Mauricio Macri, que durante o seu período na Casa Rosada (2015-2019) firmou vários acordos com a China, inclusive de repasses para reforçar o caixa do BC, além de ter sido o responsável por contrair o empréstimo junto ao FMI, o maior da história do organismo internacional.
“Os assuntos importantes são todos uma grande incógnita com Milei. Se o presidente é Massa, sabemos que será a continuidade, com mais déficit, mais dívida bilateral, mais grandes projetos que não avançam”, acrescenta Giusto.
Como ministro da Economia do atual governo, e peronista visto como conciliador e com tendências políticas ao centro, Sergio Massa é naturalmente o nome preferido de Pequim para presidir a Argentina, reconhecem os analistas argentinos. Giusto afirma que, com uma eventual vitória de Massa, novos repasses devem ser feitos por Pequim ainda em novembro, durante a transição – a posse do futuro presidente está marcada para 10 de dezembro. Caso seja Milei o vitorioso, a boa vontade dos chineses não deve ser a mesma.
Em junho, quando visitou a China e renovou o acordo de financiamento via swap cambial, Massa brincou dizendo que seu país deveria ser rebatizado de “Argenchina”. Nessa viagem, notou o analista Jorge Castro, o ministro da Economia, que ainda não tinha sido oficializado como o candidato do peronismo, recebeu tratamento de chefe de Estado.
Sem a China, a situação seria mais grave do que já é. Os empréstimos foram um salva-vidas”
Quase 75% da dívida bruta argentina, estimada em US$ 403,8 bilhões até o segundo trimestre, equivalente a cerca de 88,4%% do PIB, foi contraída em moeda estrangeira, predominantemente o dólar. A grande quantidade de débito em outras moedas dificulta mais o pagamento para uma economia baseada no peso, em rápido processo de desvalorização.
Um estudo de 2021 da ONG argentina Fundación Ambiente y Recursos Naturales estimou que 3% da dívida externa do setor privado correspondia aos empréstimos da China. Mas como não há transparência da parte chinesa nas transações, o endividamento com o setor público permanece indecifrável.
No caso da Rota da Seda, que perdeu vigor internacional nos últimos meses em razão da desaceleração da economia chinesa, a Argentina foi o primeiro país da América Latina a fazer parte. Na ocasião da assinatura desse acordo, foi anunciado uma liberação de ao menos US$ 9,7 bilhões.
Segundo dados de 2022 do Conselho Empresarial Brasil-China, a Argentina liderou a atração dos aportes chineses na região, com negócios expressivos em especial na área da energia e recursos minerais como o lítio, por exemplo, fundamental para a indústria chinesa de baterias e automóveis elétricos.
O modelo “Argenchina”, no entanto, tem as suas consequências. No final de 2022, um artigo da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) da ONU sobre as relações entre os dois países, de autoria de três economistas argentinos, destacou que “tanto o comércio bilateral como os investimentos predominantes da China na Argentina (intimamente ligadas) não favorecem uma estratégia de longo prazo orientada a alterar a especialização internacional do país para dotar suas exportações de maior conteúdo tecnológico”. Em resumo, a preocupação foi exposta na introdução do paper: “criar dependência em excesso da China é prejudicial para uma estratégia de longo prazo”.
O economista Juan Carlos Hallak, professor de economia internacional da Universidade de Buenos Aires, diz que o grande problema do aprofundamento desse tipo de laço – com cada vez mais importações da China que exportações da Argentina – é a fragilização da indústria local.
“O Brasil é o mais importante, para onde exportamos produtos com mais especialização, como carros e máquinas agrícolas. A China é para onde exportamos as commodities, em especial carne e soja. Aos poucos precisamos diversificar nossa pauta de exportação. Nesse aspecto, é um problema parecido com o do Brasil, precisamos de novos mercados e de especialização industrial”, ressalta Hallak.
A única certeza é que a China continuará a ter um peso grande no futuro da Argentina, seja pelos repasses ainda previstos para ocorrer, seja pela dívida incalculável. Se o eleito for Massa, analistas como Jorge Castro esperam pelo “melhor momento” da relação bilateral já vista até o momento.
Com a inflação anual beirando os 140% e pouco menos da metade da população vivendo abaixo da linha da pobreza, a Argentina deve registrar neste ano, segundo o Banco Mundial, uma contração na economia de 2,5%, o pior índice de todos os países da América Latina, equivalente ao Haiti.
“Sem a China, a situação seria mais grave do que já é. Esses empréstimos foram como um salva-vidas para atenuar a explosão que vai acontecer em algum momento. A situação econômica é insustentável, independente de quem ganhar a eleição”, finaliza Giusto, do Observatório Sino-Argentino.
Fonte: Valor Econômico

