Por Alex Ribeiro — De São Paulo
29/06/2023 05h00 Atualizado há 6 horas
O ex-diretor do Banco Central Tiago Berriel afirma que o cenário básico apontado pelo Comitê de Política Monetária (Copom) é um corte de juros já na reunião de agosto, e que seria preciso uma deterioração muito forte no cenário para isso não ocorrer.
“A barra para desviar desse cenário básico e continuar na estratégia de manutenção dos juros é relativamente alta”, afirma Berriel, em entrevista ao Valor. “Teria que ser algo como o Conselho Monetário Nacional [CMN] alterar a meta de inflação para cima.”
Berriel diz que, dependendo de como evoluir o cenário econômico até a reunião do Copom de agosto, poderia haver até um corte de juro acima de 0,25 ponto percentual, na hipótese de continuidade do recente processo acelerado de reancoragem das expectativas de inflação.
Hoje o CMN se reúne para definir a meta de inflação de 2026, depois de ruídos emitidos no governo sobre a adoção de um objetivo acima dos atuais 3%. Também está sobre a mesa a hipótese de adoção de uma meta contínua, em vez do sistema atual de aferição em anos-calendário. Berriel diz que a ideia é “boa”, mas isso deveria ser feito em um momento “de máxima credibilidade do Banco Central”.
BC independente tende a tornar públicas opiniões diferentes sobre condução de política monetária”
Berriel discute, na entrevista, o que está por trás da onda mais favorável na economia, em que os especialistas do mercado aumentam as expectativas para o crescimento e reduzem para a inflação. Para ele, pode ser explicado por um choque de oferta favorável, com repercussões para outros preços da economia. “A política monetária tem que se ajustar”, afirma, defendendo que isso abre espaço para o juro cair, ainda que não tanto como se tivesse ocorrido um aumento da ociosidade da economia.
PhD em economia pela Universidade de Princeton, Berriel foi diretor de assuntos internacionais do BC na gestão de Ilan Goldfajn e, atualmente, é estrategista-chefe da BTG Pactual Asset Management. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: O Fed disse que ainda precisa subir mais o juro, mas resolveu pausar. Dá para entender?
Tiago Berriel: É uma comunicação conveniente para quem está desacelerando, perto do fim do ciclo, mas com uma toada mais ‘hawk’ [conservadora] que segura a curva de juro, pelo menos nessa parte mais curta. O que é surpreendente, em vários lugares do mundo, é que temos um processo de desinflação, uma taxa restritiva de juros e sinais muitos tênues de desaceleração da atividade econômica e de abertura de hiato do produto [grau de ociosidade da economia].
Valor: Como seria possível a queda da inflação sem dor?
Berriel: Alguma coisa estrutural pode ter mudado, dada a pandemia, a mudança dos padrões de consumo e os problemas da cadeia de produção. Outra possibilidade é que a eficácia da política monetária ficou maior e precisaria pouca abertura de hiato para gerar essa desinflação. Seria a primeira vez que temos um processo de desinflação desse tamanho com tão pouca abertura de hiato. Apesar de nunca ter acontecido na história, se em algum lugar essa coisa poderia dar certo, é nos Estados Unidos, onde temos uma ancoragem de expectativas num nível máximo.
Valor: O que significa para o Brasil esse ambiente internacional?
Berriel: O ambiente específico de política monetária é desafiador. Taxas de juros mais altas em todo o mundo limitam a possibilidade de a nossa curva de juros encontrar níveis muito mais baixos. Não é uma preocupação imediata porque, apesar de ter todo esse ajuste na curva dos países avançados, as nossas taxas ainda são muito altas comparadas com as demais. Mas, talvez mais para frente no nosso ciclo de flexibilização, isso seja uma questão. Mas existem no ambiente externo algumas vantagens para o Brasil. Uma é a questão geopolítica. O Brasil é um país hoje considerado seguro, amigável para os países ocidentais, com bastante desconto nos preços de ativos. A combinação de preço e geopolítica torna o Brasil atrativo.
É muito difícil pousar o avião exatamente no juro neutro. Seria o sonho de qualquer banqueiro central”
Valor: O Banco Central vai baixar os juros em agosto?
Berriel: Pela comunicação, o cenário básico para o Banco Central é um corte em agosto. A barra para desviar desse cenário básico e continuar na estratégia de manutenção dos juros é relativamente alta. Precisaria haver uma deterioração relevante, que não está no radar. Teria que ser algo como o CMN alterar a meta de inflação para cima, o que seria algo desestabilizador das expectativas de inflação de médio prazo.
Valor: Qual seria a velocidade de corte nesse início?
Berriel: O comitê abusou de termos na direção cautelosa. Ele usou a própria palavra cautela, parcimônia, paciência. Tudo indica que o comitê hoje vê como cenário-base um corte de 0,25 ponto. Mas, de certa maneira, apesar de toda essa intenção de descartar cortes maiores, teremos que acompanhar a evolução dos números de inflação e das expectativas. Temos visto um processo de reancorar expectativas mais forte do que o esperado. A gente viu, por exemplo, um ajuste das projeções de inflação do boletim no Focus para 2027 nas últimas semanas de 0,35 ponto percentual. Saiu de 4% para 3,65%. Para 2026, houve um ajuste de 0,3 ponto, de 4% para perto de 3,7%. Se tivermos um processo mais profundo de reancoragem das expectativas até o próximo Copom, acho que existe a possibilidade de se discutir um corte maior, dado que esse foi um dos condicionantes principais para o comitê comunicar essa cautela.
Valor: Como será o ciclo de distensão depois de agosto?
Berriel: O ciclo de flexibilização seguiria em setembro num ritmo mais forte que 0,25 ponto que deveria começar em agosto. Quão mais forte é difícil ver agora. Vai depender do ritmo do grau de reancoragem das expectativas e de como se comporta o hiato. Tem que ser um pouco ‘date dependent’ [dependente da evolução dos dados].
Valor: O núcleo da inflação do IPCA-15 não veio tão bem. Poderá ser um problema?
Berriel: Esse é um debate entre os economistas. Vimos nos últimos meses um processo de desinflação bem disseminado. Inclusive, na margem, os núcleos estão desinflacionários, os serviços também. O último número do IPCA-15 veio contra essa tendência – um pouquinho, não reverte a história. A grande questão é o que está por trás dessa desaceleração de serviços e quão permanente ela é. Existem algumas teorias. A primeira teoria é que isso é resultado da política monetária. A política monetária apertou, apertou o crédito, o hiato teria aberto, e esse hiato mais aberto gerou uma desinflação dos componentes sensíveis ao hiato, que são serviços e núcleos. Nesse ponto, essa história parece um pouco incompleta, pois não vimos uma abertura de hiato condizente com todo esse processo de desinflação. Outras pessoas argumentariam que o hiato está mal medido, seja por uma questão estatística, de coleta de dados, seja porque o nosso produto potencial cresceu. São possibilidades coerentes em teoria, mas não temos evidência de que essas coisas estão acontecendo, então acho difícil tomar isso a valor de face. Outra teoria é que a economia, assim como nos Estados Unidos, sofreu uma mudança ligada à dinâmica da pandemia. As pessoas teriam mudado gostos e padrões de consumo, que fizeram que a aceleração anterior da inflação tivesse sido muito forte e que, agora, faz com que seja muito mais fácil. É possível, mas também não temos um padrão histórico para provar as coisas, é complicado definir isso com uma melhor teoria. Então é quase uma boa explicação ex-post: é possível, mas a gente não tem certeza. O que sabemos é que teve um choque negativo de itens não ‘core’ [que não fazem parte do núcleo de inflação], nos preços de alimentos, de energia elétrica, da gasolina. Esse choque negativo muito grande pode ter um efeito secundário sobre os núcleos de inflação. Agora, o choque é favorável. É a minha explicação preferida: que estamos numa dinâmica de núcleos mais favorável pelo choque positivo, ou pelo comportamento benigno desses preços ‘não core’.
Valor: Qual é a implicação disso para a política monetária?
Berriel: A política monetária reage a efeitos secundários de choques de preços relativos. Então, por mais que seja uma desinflação generalizada vindo de um choque de componentes exógenos, a política monetária tem que se ajustar a isso. Talvez não se ajustar de uma maneira tão enfática e intensa quanto numa situação gerada por uma abertura de hiato muito relevante. Mas deveria, no mínimo, reduzir o seu grau de restritividade. Para fazer isso, tem que reduzir o juro nominal mais do que a queda da inflação. Para a política monetária é inequívoco que, independentemente do diagnóstico, você tem que agir. Seria melhor que esse diagnóstico de núcleo mais fraco vindo de choques viesse acompanhado, ao longo de meses, de um hiato mais aberto, que tornasse esse processo de desinflação mais confiável, que vai ser permanente. Veremos se vai acontecer ou não essa segunda etapa nos próximos meses.
Valor: Os economistas estão revendo suas projeções de crescimento da economia para cima e inflação para baixo. Não é muito bom para ser verdade?
Berriel: É muito bom para acreditar. Citei isso quando falamos dos Estados Unidos, onde está acontecendo, e acredito que tenha uma chance maior de termos uma melhora no ‘trade off’ de política monetária [custo em termos de perda de atividade para baixar a inflação]. No Brasil, é mais difícil, temos todos os gatilhos inflacionários de uma economia que passou por vários ciclos de inflação alta, toda a memória inflacionária, todo o comportamento individual de se proteger. Temos também o fiscal, que não se reverteu tanto quanto nos países desenvolvidos, onde aquele enorme gasto fiscal durante a pandemia retrocedeu bastante. Não decrescemos, em termos reais, os gastos públicos. Nossas expectativas de inflação de prazos mais longos saíram do lugar, coisa que não ocorreu nos Estados Unidos. Por isso, seria ainda mais surpreendente uma melhora de ‘trade off’ de política monetária no Brasil, que a gente desinflacione com pouquíssima abertura de hiato, com pouquíssimos decréscimo de atividade. No entanto, a gente tem esse choque de preços ‘não core’, tivemos um pouco de sorte.
Valor: Alguns analistas defendem que, como o Banco Central fez quando o sr. estava lá, na gestão Ilan Goldfajn, deveria segurar a baixa de juro até as expectativas de inflação se ancorarem na meta. A situação agora é igual?
Berriel: É diferente. Na nossa época olhávamos o painel de controle de política monetária e víamos todos os ponteiros indicando que a desinflação viria e seria sustentável. Tinha o fiscal com uma nova credibilidade do teto de gastos, em torno de 9% do PIB, se você fosse conservador na estimativa. As expectativas de inflação estavam próximas da meta, e na meta para horizontes mais longos. A única coisa que a gente não tinha, em meados de 2016, era um processo de desinflação em andamento com uma boa composição. Os núcleos estavam muito altos. Quando a desinflação veio, tínhamos muita segurança no diagnóstico. Agora é um pouco o contrário. Estamos primeiro vendo uma desinflação forte, em parte por esses itens não core. E as condições como abertura de hiato e ancoragem das expectativas estão vindo ao longo do caminho. Não quer dizer que esse processo não vai ser duradouro, mas ele é diferente. E o BC, até agora, teve uma postura muito positiva de esperar ter mais segurança para ver se esse processo vai gerar uma reancoragem e se vai gerar uma abertura de hiato condizente com o processo de desinflação.
Valor: O Banco Central está dividido entre um grupo majoritário que sinaliza baixar o juro em agosto e um grupo minoritário mais cauteloso. É possível iniciar um ciclo com credibilidade sem ter uma maior coesão dentro do Copom?
Berriel: Existe uma mudança institucional dentro do Banco Central. O Banco Central independente tende a tornar públicas opiniões diferentes sobre condução de política monetária. Cada membro do comitê tem um mandato separado, ninguém pode ser demitido no meio do caminho. O comitê terá indicações feitas por diferentes governos, que vão gerar uma maior heterogeneidade de formações, de opiniões, de ideias. Quando a gente olha o debate que foi colocado na última ata do Copom, acho que existe uma heterogeneidade não de diagnóstico do que está acontecendo, mas do nível de evidência que é necessário para ter conforto com o processo de desinflação. Acho que isso é normal. Pessoas diferentes têm diferentes níveis de conforto diferentes com a quantidade de evidências disponível. Temos uma governança que define como são tomadas as decisões do Copom, é por maioria simples. Não está claro que realmente vai ter uma decisão de início de flexibilização não unânime. Mas se a gente tiver, faz parte do processo.
Valor: Tivemos a aprovação do arcabouço fiscal na Câmara, que foi lido como positivo pelo mercado. Mas depois houve retrocessos no Senado e ninguém se incomodou. Será que o risco fiscal mais recente está sendo subestimado?
Berriel: O arcabouço tem que ser lido como um desejo de entregar uma trajetória de superávits primários. Deve ser atingida apesar de ter uma regra de crescimento de gastos do governo. A questão relevante para o mercado é se vai ser entregue a trajetória de primário prometida, mesmo se vai ter ou não exceções na regra de gasto. Isso pode ser feito via aumento de arrecadação, essa é a estratégia do governo. Sobre essa estratégia de aumento de arrecadação, ainda existe incerteza, e essa incerteza pode ser uma boa notícia, porque a gente pode conseguir atingir uma arrecadação que leve às metas de superávit primário para 2024, 2025 e 2026. Só que, como isso não está ainda definido, e o mercado só vai se preocupar quando estivermos discutindo elementos da reforma tributária no segundo semestre e quando houver uma visão melhor de como será a arrecadação de 2024 em diante.
Valor: O CMN se reúne para definir a meta de 2026, e se discute a adoção de uma meta contínua. Seria uma boa ideia?
Berriel: Acho que é uma ideia boa. A definição de meta em anos-calendário é uma coisa estranha, idiossincrática. Você tem como objetivo algo que não pode controlar muito, que é a inflação no próprio ano. O momento ideal para fazer isso é o momento de máxima credibilidade do Banco Central, com vários anos entregando a meta. Não é o caso agora. A gente tem muito ruído político sobre a atuação do BC.
Valor: E como ficam os juros no fim do ciclo de baixa?
Berriel: Em geral é muito difícil você pousar o avião exatamente no juro neutro. Quando você faz um ciclo de flexibilização, você sempre espera fazer a convergência da inflação para a meta de um jeito que chegue no final do ciclo exatamente no juro neutro. No Brasil, seria uma taxa de inflação em torno de 3% e um juro neutro real, segundo o Banco Central, de 4,5%. Isso dá um juro nominal de 7,5%. Esse seria o sonho de qualquer banqueiro central, mas em geral você não consegue fazer isso. Em geral, alguma coisa acontece no caminho e você não chega no juro neutro. Ou você apertou tanto, sua atividade foi tão mais fraca, que você tem que passar direto pelo juro neutro. Aconteceu isso em 2018, a gente queria ir para o neutro, mas no fim teve que passar do território contracionista e ir para o território estimulativo.
Fonte: Valor Econômico

