Por Sergio Lamucci — De São Paulo
29/02/2024 05h01 · Atualizado há 3 horas
Em sua primeira visita ao Brasil, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, diz que o país “tem sido uma boa notícia para a economia mundial”, por superar as projeções de crescimento dos últimos anos, inclusive as do Fundo. Para ela, o Brasil está bem posicionado no front fiscal, com um pacote “muito determinado” de reformas, citando a mudança do sistema tributário, que deve elevar o crescimento potencial ao longo do tempo, a iniciativa que busca ampliar a oferta de proteção cambial para projetos ambientalmente sustentáveis, lançada na segunda-feira, e o programa de revisão de despesas públicas do governo.
Em entrevista ao Valor, a economista búlgara afirmou ainda que o Brasil “tem uma enorme vantagem comparativa na nova economia do clima e está posicionado para uma transformação ecológica que pode criar novas oportunidades industriais”, além de elogiar a condução da política monetária pelo Banco Central (BC) brasileiro. Georgieva veio a São Paulo para participar da reunião dos ministros de finanças e presidentes dos BCs do G20, que ocorre nesta semana.
Na visão de Georgieva, porém, o atual ritmo de crescimento do Brasil “não é suficiente para a ambição e o potencial do Brasil”- o país cresceu cerca de 3% em 2023 e deve avançar 2% ou um pouco menos neste ano, segundo analistas. Para ela, a qualidade do gasto público pode melhorar, sendo também essencial que a arrecadação “seja justa, que as brechas sejam fechadas e que a tributação distribua o peso das receitas de forma justa por toda a sociedade”. Além disso, Georgieva avalia que “o país pode fazer mais, especialmente para atrair capital para investimento e aproveitar as fontes de competitividade, entre as quais a energia verde abundante”. Enfrentar a desigualdade também é essencial, assim como capacitar a mão de obra para um mundo que terá desafios como o avanço da inteligência artificial.
Ao falar da economia global, Georgieva diz que o mundo parece caminhar para um pouso suave. A demanda está forte e os mercados de trabalho seguem apertados. Ainda há, porém, países em que a inflação não está domada, o que exige cautela dos bancos centrais. Segundo ela, é fundamental manter “a casa fiscal em ordem”, para que os países estejam preparados para enfrentar eventuais novos choques.
Georgieva é a número 1 do FMI desde outubro de 2019. Antes, foi diretora-executiva do Banco Mundial entre janeiro de 2017 e setembro de 2019, período em que chegou a ser presidente interina da instituição por três meses. De 2014 a 2016, Georgieva foi vice-presidente de Orçamento e Recursos Humanos para Comissão Europeia. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida na terça-feira.
Valor: Como a sra. avalia as perspectivas para a economia global em 2024? A inflação voltará às metas sem uma recessão? Em outras palavras, os bancos centrais conseguirão criar um pouso suave?
Kristalina Georgieva: O que vemos é uma notável resiliência na economia mundial, apesar das altas taxas de juros. A demanda continua forte. Os mercados de trabalho estão bastante apertados. E isso se traduz em uma expectativa de que, de fato, um pouso suave ocorrerá neste ano. Mas temos que reconhecer que a luta contra a inflação não foi totalmente vencida em todos os lugares. Aqui no Brasil, vocês estão à frente. Vocês estavam à frente no combate à inflação por meio do aumento dos juros e estão à frente na capacidade de ver a inflação baixar a ponto de poder reduzir as taxas. No entanto, esse não é o caso em todos os lugares e, portanto, os bancos centrais precisam continuar a ser muito cautelosos quanto ao tempo de agir, guiados pelos dados – que são os seus melhores amigos. Em segundo lugar, embora o crescimento permaneça em território positivo e tenhamos aumentado ligeiramente nossas projeções para 2024, de 2,9% para 3,1%, também vemos um crescimento fraco ano após ano. E, com o crescimento permanecendo relativamente fraco, as perspectivas para o mundo enfrentar desafios muito dramáticos se tornaram mais difíceis, para investir na transição climática, para investir na transformação digital, ou seja, para investir nas pessoas, na educação, na saúde, na proteção social. Com isso, embora estejamos mais otimistas hoje do que há um ano, também estamos alertando as autoridades para que se guiem pelos dados e também para que se concentrem, neste ano melhor, em colocar a casa fiscal em ordem.
Valor: Como está a situação fiscal dos países atualmente?
Georgieva: Nós empregamos a capacidade fiscal para combater a covid-19 e as consequências da guerra da Rússia na Ucrânia e para ajudar as famílias devido à pressão da inflação. Isso esgotou a capacidade fiscal em todos os lugares. Se houver um novo choque, temos que nos preparar, e isso significa mais atenção à reconstrução dos amortecedores fiscais.
Valor: Quais são os principais riscos para a economia global atualmente e o que as autoridades devem fazer para evitá-los?
Georgieva: Nos últimos anos, os principais riscos para a economia mundial foram exógenos – um choque exógeno da pandemia, um choque exógeno da guerra e, em vários países, consequências dramáticas de eventos climáticos. Isso se traduz na importância de desenvolver a resiliência a esses choques exógenos. É por isso que enfatizamos o aspecto fiscal. Em segundo lugar, fazendo investimentos de médio e longo prazo no contexto de como o mundo está mudando, ou seja, investindo, como o Brasil está fazendo, em transformação ecológica, investindo em capital humano, para que as pessoas sejam mais ágeis nesse novo mundo. E em terceiro lugar, trabalhando juntos. É por isso que o G20 é tão importante. A colaboração entre os países fortalece nossa capacidade de lidar com esses riscos. Além disso, o que aprendemos ao longo de muitas décadas é que, quando temos fundamentos macroeconômicos sólidos, estamos em uma posição melhor para lidar com o que quer que apareça em nosso caminho. O Brasil fez isso ao longo de muitos anos para construí-los – do lado da política monetária, um banco central independente, com forte capacidade de definir os objetivos da política monetária. No aspecto fiscal, vocês estão muito bem posicionados com um pacote de reformas do governo hoje. E, ao longo dos anos, muito tem sido feito. Mas é claro que o país pode fazer mais, especialmente para atrair capital para investimento e aproveitar as fontes de competitividade, entre as quais a energia verde abundante.
Valor: Quais são os outros riscos relevantes atualmente?
Georgieva: Quando analisamos os riscos atuais, nós ainda temos os riscos macroeconômicos tradicionais. A inflação pode não cair para as metas como esperado. Ainda podemos ver riscos no setor imobiliário – na China, o setor imobiliário tem dificuldades; em outros lugares, o segmento de imóveis comerciais, após a pandemia, enfrenta alguns problemas. Podemos ter outro grande conflito geopolítico que afete os preços de energia ou, de forma mais ampla, os das commodities.
O país pode fazer mais, especialmente para atrair capital para investimento”
Valor: O mundo está enfrentando atualmente duas guerras muito complexas. A sra. já alertou muitas vezes sobre a fragmentação geoeconômica. Qual é a sua preocupação com esse problema?
Georgieva: A guerra que a Rússia iniciou contra a Ucrânia e a guerra em Gaza têm implicações importantes. Em primeiro lugar, em ambos os casos, o impacto mais dramático está no epicentro, onde a guerra está ocorrendo. E o aspecto mais trágico disso é a perda de vidas e a enorme dor infligida a civis inocentes. Elas afetaram a economia mundial de forma diferente. A guerra iniciada pela Rússia teve um impacto global muito mais profundo, pois afetou os preços da energia e o fornecimento de alimentos, além de ter ocorrido enquanto as perturbações da covid nas cadeias de suprimentos ainda eram sentidas. O resultado da influência combinada das perturbações no lado da oferta pela covid e pela guerra levou à inflação, provocando uma crise de custo de vida em todo o mundo. Falando sobre o impacto da guerra sobre a Ucrânia, é notável que, com base na determinação e no compromisso de seu povo com boas políticas e apoio internacional, o país esteja com um desempenho muito bom. No ano passado, a Ucrânia cresceu 5% e reduziu a inflação de 27% para menos de 5%. Já em Gaza a economia sofreu uma contração de 80%, sendo praticamente destruída, enquanto a economia da Cisjordânia encolheu mais de 22%. As economias do Egito, da Jordânia e do Líbano também foram afetadas. Israel sentiu o fato de que 8% da força de trabalho está no Exército, e a mão de obra que costumava vir da Cisjordânia não vem mais.
Valor: E como isso afeta a economia global?
Georgieva: O impacto global é muito mais limitado. Ele ocorre por meio de dois canais. O primeiro é o impacto no tráfego do mar Vermelho e do canal de Suez. Ele caiu 55%, o que levou a um redirecionamento do tráfego em torno dele. Essa é uma viagem de 2.200 milhas. É claro que isso afeta o custo, bem como os custos de seguro. Mas isso ainda não está se traduzindo em grandes transtornos para a economia mundial. No caso da guerra de Gaza, como em qualquer outra guerra, o segundo canal de impacto é a incerteza. Mas, mais fundamentalmente, a pergunta que você fez é sobre fragmentação. Essas guerras não são a única razão para esse fenômeno, mas elas contribuem para o que tem sido um mundo mais isolacionista, com mais protecionismo na forma como os economistas pensam em se posicionar num cenário global, com mais riscos do lado da oferta. Nós temos que aceitar que tanto a covid quanto a guerra na Ucrânia nos ensinaram uma lição, a de que alguma redundância nas cadeias de suprimentos é uma necessidade e que a segurança da oferta é extremamente importante para o desempenho econômico. Parte dessa fragmentação veio para ficar, devido ao reconhecimento de que os países precisam se preocupar com a segurança do fornecimento, mas ela não precisa chegar a um ponto em que os custos para a economia mundial cresçam exponencialmente.
Valor: Até que ponto a fragmentação poderia afetar o PIB global?
Georgieva: Nós fizemos uma projeção sobre o impacto da fragmentação no comércio, separando blocos que comercializam entre si. E se isso for levado ao extremo, sem prestar atenção ao lado negativo e ao custo, pode tirar 7% do PIB mundial. É como se tirássemos três vezes a África subsaariana da economia mundial, ou tirássemos a Alemanha e o Japão. É um impacto muito dramático. Então, podemos ser pragmáticos e continuar a construir relações econômicas racionais? Sim. E vemos alguns sinais de que agora há um maior reconhecimento da necessidade de cooperação econômica. Acabamos de receber notícias da OMC de que há um acordo sobre o comércio de serviços. É uma notícia muito positiva. Todos nós estamos aqui em São Paulo para falar sobre a economia, comparar notas e, esperamos, fazer melhor para as pessoas em todos os lugares. Além disso, as duas maiores economias, a China e os EUA, têm mantido alguns diálogos econômicos que também são úteis. Sim, estamos preocupados com a fragmentação, mas também vemos sinais de que há um reconhecimento de uma abordagem mais pragmática.
Valor: Como a sra. vê as perspectivas para a economia brasileira? Nos últimos três anos, o crescimento do Brasil surpreendeu para cima, mas os números não são impressionantes. O que o Brasil deve fazer para crescer a taxas mais altas de modo sustentado?
Georgieva: O Brasil tem sido uma boa notícia para a economia mundial, porque superou as projeções, inclusive as nossas, nos últimos anos. Fico muito satisfeita com isso. Mas, assim como o resto do mundo – que está crescendo a 3% -, isso não é suficiente. Historicamente, o crescimento global nas décadas anteriores à pandemia foi, em média, de 3,8%. Desse modo, 3% para o Brasil, agora provavelmente abaixo de 2%, em 2024, não é suficiente para a ambição e o potencial do Brasil. Então, o que pode ser feito? Primeiro, o Brasil está realmente fazendo muito para melhorar sua perspectiva de crescimento. No aspecto fiscal, há um pacote muito determinado de reformas. A reforma do imposto sobre o valor agregado [a reforma tributária, aprovada no fim de 2023], que vai melhorar a perspectiva de crescimento potencial ao longo do tempo. A reforma de como o dinheiro público é usado para estimular mais investimentos privados, especialmente por meio de garantias sobre o risco cambial, além de uma revisão muito importante dos gastos. Desse modo, a qualidade do gasto público pode melhorar.
Valor: Como a sra. vê as perspectivas do Brasil em relação à economia verde?
Georgieva: O Brasil tem uma enorme vantagem comparativa na nova economia climática e está posicionado para uma transformação ecológica que pode criar novas oportunidades industriais. O país é uma potência em energia renovável, o que significa que, em um mundo que está se esforçando para tornar as indústrias verdes, ele pode ser um polo muito atraente. O Brasil também tem, é claro, uma enorme riqueza de biodiversidade. O conceito de usar créditos de carbono para estimular a transformação já está bastante desenvolvido. No aspecto financeiro, a inclusão baseada na inovação digital é incrivelmente impressionante aqui no Brasil – 85% da população usa o Pix. Tudo isso mostra o potencial digital. Seria importante usar ainda mais o fato de que vocês têm acesso à internet muito acima da média para desenvolver a economia digital, além de combinar energia renovável com investimento em habilidades e talentos humanos. Com isso, é possível tirar proveito da inteligência artificial, porque ela será impulsionada por energia e dados baratos e, é claro, por pessoas qualificadas. Acho também que um aspecto da política que pode ser um grande fator de sucesso no Brasil é o foco na desigualdade. O que nossa pesquisa mostra é que as sociedades mais inclusivas, que promovem a igualdade, têm mais confiança entre as pessoas, nas comunidades e em relação aos tomadores de decisão. A construção de uma sociedade mais inclusiva pode tornar o tecido social do Brasil muito mais forte.
Valor: As contas públicas são geralmente vistas como o calcanhar de Aquiles do Brasil. O novo arcabouço parece ter reduzido os riscos mais extremos e imediatos, mas ainda há incertezas no front fiscal. Até que ponto elas colocam a economia brasileira em risco?
Georgieva: Os passos tomados são de fato muito promissores, porque reduziram o teto artificial imposto sobre como os gastos públicos podem ser feitos, passando para um intervalo e definindo uma meta para o déficit fiscal. Para este ano, a meta é zero e, até 2026, o objetivo é chegar a um superávit de 1% do PIB. Tudo isso fornece uma estrutura para os tomadores de decisão que é de fato melhor. Mas eu gostaria de enfatizar que, no front fiscal, as tarefas mais importantes que temos pela frente são, em primeiro lugar, garantir que a arrecadação seja justa, que as brechas sejam fechadas e que a tributação distribua o peso das receitas de forma justa por toda a sociedade. Em segundo lugar, a maneira como o dinheiro público é usado, e isso é realmente fundamental. Ele precisa ser usado mais do que no passado para abrir oportunidades de investimento privado, porque, em última análise, é isso que impulsiona as economias. Na verdade, o Brasil é único na América Latina pelo nível relativamente alto de receitas públicas em relação ao PIB, o que permite que um país muito grande busque objetivos sociais e econômicos. Mas, por outro lado, esse dinheiro público não deve vir à custa do desempenho do setor privado, e é por isso que destaco o uso de garantias para riscos cambiais, com o dinheiro público usado para reduzir esses riscos e aumentar o investimento privado no Brasil. Em terceiro lugar, como fazer com que o talento das pessoas seja mais utilizado. Em outras palavras, como mover a proteção social de ajudar as pessoas para ajudar as pessoas a se ajudarem. Não tenho dúvidas de que veremos passos muito bons nessa direção. O Brasil é o berço do Bolsa Família, um programa que provou ser absolutamente fundamental em um momento de choque, de crise. Muitos países copiaram o Bolsa Família. Ele tem essa importância também em termos de famílias que não apenas satisfazem suas necessidades, mas que têm filhos indo à escola, esse impacto positivo. E posso ver uma próxima geração desse tipo de programa mais voltada para a criação de oportunidades para que as pessoas sejam mais empreendedoras, mais flexíveis no mercado de trabalho. Fizemos a pesquisa no FMI sobre o impacto da inteligência artificial nos mercados de trabalho, e ela é realmente impressionante. Ela diz que, globalmente, nos próximos anos, 40% dos empregos serão afetados. Alguns serão aprimorados, outros serão alterados e outros desaparecerão. E a chave é como as pessoas estão sendo ajudadas nesse mundo de empregos que mudam rapidamente, como elas aprendem a aprender, em vez de aprender a fazer uma coisa específica, e como evitar o risco de que a inteligência artificial, em vez de ser um grande impulso de produtividade, que é o que todos nós esperamos, se transforme em um grande impulso da desigualdade dentro dos países e entre eles.
Fonte: Valor Econômico

