Se o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil não está particularmente exposto às tarifas de importação dos Estados Unidos, política do presidente Donald Trump que tem se mostrado mais abrangente e volátil do que o previsto, o país é, por outro lado, bastante vulnerável à situação das condições financeiras globais, diz Cassiana Fernandez, chefe de pesquisa econômica para a América Latina e economista-chefe para Brasil do J.P. Morgan.
Em entrevista ao Valor, ela reconhece que o impacto negativo de medidas de Trump para a economia americana tende a ser maior do que o estimado pelo banco, sobretudo pelo canal da confiança. Seja em um cenário de “excepcionalismo” do PIB nos EUA, seja em um de recessão – sobre o qual Fernandez ainda acha prematuro fazer afirmações -, o efeito, via câmbio, será negativo ao Brasil, diz.
Ao mesmo tempo, Fernandez também diz ser preciso reconhecer que a o PIB brasileiro decepcionou e desacelerou mais que o esperado no fim de 2024. Apesar disso, ela mantém uma projeção de crescimento do PIB de 2,2% em 2025, acima do consenso da pesquisa Focus (1,99%). O impulso virá da agropecuária, o que, segundo ela, pode ajudar em diversas frentes, inclusive politicamente, ao reduzir a pressão inflacionária com um número de PIB ainda forte. “E ajuda o BC, porque, apesar do número alto de PIB, não é um cenário em que ele precise de condições monetárias ainda mais apertadas.”
Além da alta de 1 ponto percentual (p.p.) da Selic já indicada pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BC para a reunião desta semana, o J.P. Morgan ainda espera mais dois aumentos de 0,50 p.p., levando a taxa a 15,25%. Fernandez, no entanto, admite que há viés de baixa para a projeção, a depender de eventuais surpresas negativas com o PIB e da dinâmica do câmbio. “Minha maior dúvida é a segunda alta de 0,5 p.p., em cenário externo mais complicado.”
Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Como vocês têm acompanhado a nova gestão de Trump?
Fernandez: A questão externa, recentemente, é o grande motor e a grande preocupação dos mercados e de quem faz cenário. Logo após a eleição de Trump, víamos a política econômica [do novo governo] em quatro frentes. A primeira é a das tarifas. Por mais que houvesse muitas ameaças a outros países, na nossa percepção, a ação concreta seria concentrada na China e em nações ligadas à tecnologia como Malásia. Para a China, víamos aumento adicional de 40 pontos percentuais [nas tarifas de importação]. Para outros países, entendíamos as tarifas muito mais como uma questão de negociação. A segunda frente é a imigração. Esperávamos redução grande do fluxo, mas nunca trabalhamos com deportação em massa, porque isso afetaria a economia americana de forma mais intensa e negativa. A terceira política é a da regulação, no sentido de simplificar burocracia. Víamos isso avançando rapidamente e de forma importante. Essa política, por si só, compensaria o custo negativo das tarifas para o crescimento e até para a inflação nos EUA. E a quarta frente é a da política fiscal, que teria nuances, mas não seria concentrada em cortar gastos, pelo contrário, ficaria mais fácil a extensão das isenções tributárias. Quando a gente colocava tudo na balança, era um cenário global muito forte, com excepcionalismo americano, positivo para a economia dos EUA e não afetando muito a inflação, mas também sem contribuir para desinflação rápida da economia. Então, fomos reduzindo [a perspectiva de] número de cortes [dos juros dos EUA] em 2025. Ainda teria corte, mas também era difícil vislumbrar um cenário em que o banco central americano voltaria a subir os juros no curto prazo. Esse cenário foi sendo desafiado ao longo dos primeiros meses do governo.
Valor: Por quê?
Fernandez: Primeiro, pela discussão das tarifas, que acabou antecipando todas as outras e sendo muito mais volátil. Os aumentos para a China foram menores, ao menos até agora, do que a gente imaginava, mas acabou sendo mais distribuído, principalmente para México e Canadá. Ainda que a gente não assuma que as tarifas sejam implementadas, reconhecemos que só a ameaça delas é suficiente para jogar o PIB de ambos para baixo. E, sendo bem honesta, é muito difícil de antemão descartar que essas tarifas possam vir. Acabou sendo uma coisa muito mais abrangente, errática e difícil de prever o próximo passo. O impacto, ainda que as tarifas não sejam implementadas, é maior, porque será sobre a confiança, inclusive do empresário americano.
Valor: E as outras frentes?
Fernandez: Você soma a questão das tarifas com o fato de que as mudanças de regulação ainda não aconteceram. Existe muita expectativa de que elas irão acontecer, mas acaba não tendo esse benefício tão rápido quanto se esperava. Se coloca a ideia de que, talvez, o motor positivo para justificar o excepcionalismo americano não esteja tão forte quanto se esperava por causa do canal de confiança, ao mesmo tempo em que os dados dos EUA começam a decepcionar. E o mercado começa a questionar se aumenta o risco de recessão lá.
Valor: E aumentou?
Fernandez: Eu, sinceramente, acho isso muito prematuro ainda, porque as condições econômicas continuam as mesmas. O impacto de confiança, esse sim, vai acontecer e vai ser maior do que a gente esperava, mas ainda não é um cenário em que vemos condições para uma recessão, uma quebra muito forte. Mudou o balanço de riscos, não mudou o cenário central.
Valor: Como o Brasil se insere nesse contexto?
Fernandez: O canal direto, que é o das tarifas, afeta o Brasil de modo limitado, porque não temos tanta exposição à balança comercial dos EUA. Fizemos um estudo estimando o efeito para cada país de um aumento de 10% na tarifa universal e o Brasil é um dos que menos sofreriam, com perda de 0,3 ponto do PIB. O México é o que mais sentiria, com perda acima de dois pontos percentuais do PIB. Só que tem o canal indireto, e eu sempre falei que o Brasil é muito vulnerável às condições financeiras.
Valor: Como assim?
Fernandez: Se tem um cenário em que a economia americana está muito forte, a taxa de juros vai ficar alta e o dólar está forte, significa que é um cenário em que a gente, como mercado emergente, vai acabar sofrendo e vai ser mais difícil para o nosso Banco Central.
Se governo não aceitar desaceleração, política monetária terá de ser mais agressiva”
Valor: Mas se existem esses questionamentos ao “excepcionalismo americano”, por outro lado, não seria um dólar mais fraco e, portanto, benéfico para o Brasil?
Fernandez: Esse é o canal de transmissão, eu concordo, mas também acho que ainda é cedo. Não vimos que o dólar, de fato, ficou mais fraco e que acabou a história do excepcionalismo americano. Tem toda a agenda do lado regulatório sobre a qual é cedo para dizer que não vai ser concretizada.
Valor: Ao mesmo tempo, um PIB americano fraco afeta negativamente o mundo e o Brasil, não?
Fernandez: O risco de recessão é ruim, porque nossos principais itens de exportação são commodities. Cenários extremos são ruins para nós; países emergentes acabam se dando melhor no cenário do meio, que é ter uma desaceleração suave [da economia americana] e um banco central que corta a taxa de juros lá sem ter recessão. O “soft landing” [“pouso suave”] da economia dos EUA é um cenário extremamente otimista para ativos de risco e emergentes.
Valor: Falando em “pouso suave”, mas sobre o Brasil, o ritmo da atividade no país está cada vez mais no foco dos analistas. Como vocês têm acompanhado isso?
Fernandez: A gente tem de reconhecer que os dados do quarto trimestre do ano passado decepcionaram. Eles vieram mais fracos do que todo mundo esperava. E foi uma sucessão. Saíram os dados de outubro e muita gente falou que 3,5% para o PIB de 2024 era piso. Mas as pessoas começaram a olhar os dados que saíram depois, principalmente a safra de dezembro, e se decepcionaram. Dito isso, o crescimento de 2024 de 3,4% foi muito acima da média histórica e também temos de colocar isso na conta. Sobre a desaceleração da economia no quarto trimestre de 2024, a verdade é que estava todo mundo esperando que ela acontecesse antes…
Valor: E olhando à frente?
Fernandez: Os fundamentos que levaram à desaceleração continuam: o impulso fiscal é cada vez menor, as condições monetárias estão mais apertadas, o cenário externo está muito mais volátil… Nada disso mudou no curto prazo, então o nosso cenário é de que essa desaceleração irá continuar. E, na verdade, ela é necessária para reequilibrar a economia, que estava crescendo muito acima do potencial, gerando pressão inflacionária e aumento do déficit em conta corrente. Quando eu olho minha projeção de PIB de 2,2% em 2025, ela está mais alta [que o consenso], mas é importante notar a composição. Essa projeção está muito baseada na expectativa de nova contribuição grande da agricultura no primeiro semestre do ano. Para a demanda doméstica, é um cenário mais fraco. Esse é um ponto importante: a manchete de jornal ainda vai ser de um PIB alto, mas a composição é mais positiva para o Banco Central, porque é um choque de oferta positivo ajudando a economia, como em 2023, embora não na mesma magnitude.
Valor: Como o “choque” ajuda?
Fernandez: Primeiro, tem um efeito indireto e, talvez, a inflação de alimentos, que é algo que está muito pressionado, comece a desacelerar. Uma vez que a safra entrar, ajuda a balança comercial, então coloca também pressão menor na taxa de câmbio em algum momento. Também ajuda politicamente, porque reduz um pouco a pressão inflacionária com um número de atividade ainda forte. Reduz a pressão, a urgência que o governo teria para tentar segurar a desaceleração da economia. E ajuda o BC, porque, apesar do número alto de PIB, não é um cenário em que ele precise de condições monetárias ainda mais apertadas.
Valor: Vocês têm, então, um viés de baixa para a projeção de Selic?
Fernandez: A gente colocou. Até a última reunião, falamos o contrário, que o viés era de alta na projeção de 15,25% no fim do ciclo. Hoje, eu diria que o BC pode parar antes, porque não é só a surpresa com a atividade, mas também o comportamento do câmbio. A nossa projeção de inflação de 5,5% para o fim do ano foi feita com o dólar a R$ 6. Se essa taxa for mais apreciada, pode ter impacto; foi feita também com PIB de 2,2% e, se ele decepcionar, vamos fazer revisão, talvez não para a inflação de 2025, mas para 2026. Uma taxa de juros abaixo de 15,25% é suficiente para levar a inflação em 2026 para [a meta de] 3%? Não. Por isso, ainda acreditamos que o BC vai continuar o movimento de alta após a reunião desta semana. Ele deve dar 1 p.p. agora e reduzir o ritmo para mais duas altas de 0,5 p.p. A minha maior dúvida é a segunda alta de 0,5 p.p., em um cenário externo mais complicado.
Valor: Por quê?
Fernandez: Eles tinham mudado a descrição do balanço de riscos e tirado o risco de baixa de desaceleração global mais forte. Com os dados das últimas semanas, tudo leva a crer que esse risco deve voltar. Ainda há dúvida sobre qual vai ser a visão do BC sobre isso, mas, na nossa visão, o modelo dele ainda vai indicar que os 15% [de Selic ao fim do ciclo] que estão hoje no Focus não são suficientes para chegar aos 3% no terceiro trimestre de 2026, que é o horizonte relevante.
Valor: E as expectativas de inflação para 2026 e 2027 não cedem…
Fernandez: Enquanto houver dúvidas sobre se a política fiscal vai permitir a desaceleração necessária [do PIB] para reequilibrar a economia, a inflação não vai desacelerar. Acho que vai acontecer, mas leva tempo e tem de entregar dos dois lados: tanto a política fiscal quanto a monetária. Seria uma ganho de credibilidade não só do BC, mas do governo como um todo.
Valor: O cenário-base de vocês tem corte da Selic apenas em 2026. Isso também pode ser antecipado?
Fernandez: Se a atividade decepcionar de forma mais significativa sem ter uma depreciação da taxa de câmbio, ele poderia, sim, antecipar o início do corte de juros. Mas não é o meu cenário-base.
Valor: A reação do governo à desaceleração do PIB preocupa?
Fernandez: Sim, eu acho que essa é uma das grandes dúvidas. Um dos principais fatores para a desaceleração é que vemos o impulso fiscal diminuindo, o que ajuda muito o BC, porque vamos ter a política fiscal e a monetária na mesma direção. Se você tem uma situação em que o governo não aceita [a desaceleração] e usa a política fiscal de novo para impulsionar a economia, o espaço da política monetária seria menor e ela teria de ser ainda mais agressiva para segurar as pressões inflacionárias.,
Fonte: Valor Econômico
