Por Anaïs Fernandes e Sergio Lamucci — De São Paulo
05/12/2023 05h01 · Atualizado há 10 horas
Apesar das incertezas a respeito do cenário econômico global, a mudança estrutural nos volumes exportados da balança comercial brasileira pode ajudar o país a navegar melhor por turbulências estrangeiras e até domésticas. É preciso aproveitar essa “bonança” no setor externo do Brasil para “arrumar a casa”, principalmente sob o ponto de vista fiscal, mas as notícias, até agora, não são animadoras, avalia Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Management.
“O Brasil está muito bem colocado”, diz Srour, em referência, sobretudo, às perspectivas para commodities agrícolas e energéticas. “Mas não basta ter uma entrada enorme de fluxos se são feitas políticas inconsistentes, em termos de gastos, do parafiscal”, afirma ela. O risco parafiscal é um eventual uso mais intenso do BNDES e dos bancos públicos para subsidiar o crédito.
Essa “bonança externa”, muito relacionada à escalada da produção de petróleo no Brasil até 2030, deve trazer montante expressivo de receitas para o país e algum alívio nas perspectivas fiscais, reconhece Srour. “Mas o mercado ainda tem dúvidas para quantificar isso. E mais receita também gera questionamentos sobre como isso vai ser gasto. É preciso muita atenção para o uso dessa arrecadação.”
As notícias correntes não têm sido muito positivas nesse sentido, segundo Srour. “Esse setor externo melhor traz, inexoravelmente, receitas melhores para o Brasil, mas traz, necessariamente, um fiscal melhor? Não sei. Precisa aproveitar a bonança externa para arrumar o fiscal”, reafirma Srour, que apresenta nesta terça-feira o cenário econômico para investimentos do UBS Wealth Management para um grupo de clientes e investidores.
Para 2024, soma-se o fato de que o ambiente brasileiro estará especialmente dependente dos rumos da economia global, com destaque para atividade, inflação e, consequentemente, dos juros nos Estados Unidos. “Em um cenário externo em que o Fed [Federal Reserve, o banco central americano] consegue cortar bastante os juros em 2024, os problemas fiscais do Brasil vão ser adiados para frente”, afirma Srour. “Em um cenário diferente, com desinflação lenta e um Fed cauteloso, os problemas fiscais do Brasil começam a ser mais precificados.”
O fluxo de dólares para o Brasil pode “aliviar as preocupações em relação ao fiscal” e respectivas pressões sobre a taxa de juro neutra (aquela que não acelera nem contrai a atividade) e as expectativas de inflação, “mas é claro que não faz o trabalho por si só”, afirma Srour. “Tudo vai depender de como a gente vai se comportar na bonança externa.”
Por enquanto, o “dever de casa” fiscal do Brasil “está deixando a desejar”, avalia ela, mas lembrando que o cenário externo melhorou. “Vamos ver se isso vai se refletir ao longo do ano que vem”, diz Srour.
Ainda que a política fiscal continue expansionista em 2024 e a política monetária seja cada vez menos contracionista, a expectativa é de desaceleração da atividade no próximo ano, avalia Srour. Agentes do mercado esperam alta do Produto Interno Bruto (PIB) entre 1,5% e 2%, vindo de algo ao redor de 3% em 2023. “Achamos que, dada a desaceleração global que vai acontecer no ano que vem, esse número de 2024 está mais perto de 1,5% do que de 2%.”
No consumo das famílias, há duas forças atuando, segundo ela. Uma, na direção de um consumo mais fraco, é a perda de fôlego da atividade, que leva à desaceleração do mercado de trabalho e da renda. No sentido contrário, há a queda de juros e certo alívio no cenário de crédito. “Ainda que a gente não espere um ciclo de crédito pujante, as condições financeiras estarão menos apertadas”, afirma.
No caso do investimento, a reforma tributária pode ajudar a trazer investimentos para o país, mas, no curto prazo, ainda restam dúvidas sobre o desenho final da proposta, observa Srour. Além disso, ela reitera que os receios em torno do cenário fiscal trazem incertezas a respeito do nível de juro neutro no Brasil e, portanto, de até onde o atual ciclo de corte da Selic pode ir. “Há muita dúvida sobre a política fiscal daqui para frente. Acho que isso impede uma forte alta do investimento”, afirma Srour, excetuando os setores de commodities.
Uma taxa de juro neutra maior atrapalha o crescimento da economia, explica Srour. “Se a taxa está maior e você tenta estimular a economia, vai gerar mais inflação.”
Neste ano, a inflação corrente tem surpreendido para baixo, não apenas os alimentos, por causa da safra recorde, e os bens industriais, seguindo movimento global, mas também os serviços, observa Srour. “A grande surpresa é a queda de serviços, que tem se mostrado bastante forte nos últimos meses. Qualitativamente, essa desaceleração da inflação está com uma cara muito mais positiva”, afirma.
Tem muita ideia criativa aparecendo para acomodar mais gastos”
Chama a atenção, segundo Srour, que a inflação de serviços tenha começado a desacelerar antes da perda de fôlego do PIB e do emprego, que praticamente ainda não cedeu, e apesar de uma política fiscal expansionista. “Acho que a queda muito forte do ‘headline’ [índice cheio da inflação] está impactando positivamente os serviços”, sugere ela, destacando o componente inercial desse grupo de preços. A inércia é o fenômeno pelo qual a inflação passada alimenta a inflação futura.
Isso levanta, porém, um debate sobre a sustentabilidade dessa queda da inflação à frente, diz Srour. “Em relação aos serviços, acho que vamos ver uma desaceleração bem mais gradual. Antecipamos a melhora esperada em 2024 para 2023.”
Além disso, a expectativa de uma desaceleração lenta do mercado de trabalho atua como um limitador para o arrefecimento nos preços de serviços e é também um ponto de atenção para o nível que a Selic pode chegar, aponta Srour, sem comprometer a visão de uma taxa de juros a um dígito em 2024.
Apesar da melhora da inflação corrente e da trégua vinda do exterior, Srour diz não esperar que o Banco Central do Brasil discuta acelerar o ritmo de cortes da Selic “tão cedo”. “O BC será cauteloso nessa avaliação. Quanto dessa inflação corrente mais positiva reflete fundamentos econômicos e quanto reflete choques? Além disso, há o risco fiscal expressivo.”
A discussão sobre acelerar o ritmo de cortes poderia ganhar mais corpo, segundo Srour, no caso da concretização de um cenário externo “super favorável”, com o Fed cortando expressivamente seus juros em 2024. “O cenário externo vai pesar muito nessa decisão de aceleração. O mercado parece querer ‘comprar’ hoje essa concretização [de um ambiente internacional muito favorável]. Na minha opinião, ainda não temos dados que justifiquem essa precificação”, diz Srour.
Além disso, o quadro fiscal não deveria, na visão de Srour, permitir que a Selic fosse abaixo da taxa neutra. “Não seria para a gente ter uma política estimulativa. Acho arriscado”, afirma. No médio prazo, diz, além da política monetária, as perspectivas fiscais também são importantes para a reancoragem ou não das expectativas de inflação.
Embora o mercado tenha recebido bem o novo arcabouço fiscal, Srour diz que a credibilidade da regra nunca foi muito alta, porque as metas ambiciosas de resultado primário (receita menos despesas, exceto gastos com juros) eram baseadas em medidas de aumento de arrecadação que, para funcionar, dependiam do Congresso, do Judiciário e do próprio comportamento dos agentes, como as empresas. Além disso, nota Srour, ao mesmo tempo em que foi criado um limite para o crescimento dos gastos, foi aprovada a regra de reajuste do salário mínimo, que indexa diversos pagamentos e deve impor restrições às despesas discricionárias (não obrigatórias).
“Mesmo com todos os ganhos, como medidas sobre fundos exclusivos, offshores e o Carf [Conselho de Administração de Recursos Fiscais], a arrecadação de 2024 deve ser muito inferior à projetada pela Fazenda”, diz Srour, acrescentando que o governo também desmonstra pouca disposição para cortar gastos e contingenciar. “Tem muita ideia criativa aparecendo para acomodar mais gastos.”
O PIB do terceiro trimestre deste ano, que será divulgado hoje pelo IBGE, e o do quarto trimestre devem mostrar a desaceleração da economia, “depois de um longo período esperando que o aumento substancial de juros tivesse impacto na atividade”, diz Srour. Essas variações no fim de 2023 podem ganhar mais importância no sentido de pautar qual será a ansiedade política de se gerar crescimento no ano eleitoral de 2024, alerta Srour.
Fonte: Valor Econômico