Por Martin Wolf — Financial Times
01/06/2022 05h01 Atualizado há 5 horas
Numa entrevista da série Economists Exchange de um ano atrás, falei sobre os riscos de um aumento da inflação nos EUA com o ex-secretário do Tesouro Larry Summers. Membro do Partido Democrata, Summers criticou o governo Joe Biden pela escala de seu estímulo fiscal, que, dizia ele, levaria a um superaquecimento, seguido por inflação. Os acontecimentos que se seguiram aparentemente confirmaram suas preocupações.
O francês Olivier Blanchard está entre os macroeconomistas mais respeitados do mundo. É professor de economia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e foi economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI). É atualmente pesquisador sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional de Washington.
Ele foi uma das personalidades principais na criação da economia “neokeynesiana” nas décadas de 1980 e 1990. Mais recentemente, argumentou que as baixas taxas de juros de longo prazo permitem concluir que é seguro registrar déficits públicos maiores do que se pensava anteriormente.
Mas, em fevereiro de 2021, ele também alertou para a ameaça da inflação, chamando igualmente atenção para a excessiva expansão fiscal. Portanto, foi nesse momento que a nossa conversa começou.
FT: O sr. foi uma das pessoas a alertar que a inflação estava chegando. Por que pensou assim? E os fatos mostraram que o sr. estava espetacularmente certo ou não?
Olivier Blanchard: Achei evidente, à época, que o montante de gastos – o tamanho dessa conta, de US$ 1,9 trilhão, que se somou a uma conta de quase US$ 900 bilhões de alguns meses antes – era, simplesmente, grande demais.
Era razoavelmente óbvio que isso levaria ao superaquecimento da economia. E eu estava em parte certo na percepção de que o desemprego ficaria muito baixo, o que realmente ocorreu, que haveria pressão salarial, que os preços refletiriam a alta dos salários e que isso levaria a mais inflação.
Mas não antecipei o papel do mercado de produtos, de que em muitos setores a sólida demanda levou a rupturas na oferta e a grandes aumentos dos preços. No final, a inflação acabou vindo não de onde tinha previsto que viria, que era dos salários, e sim dos preços.
As pessoas vão dizer que esses eram acidentes de percurso que não podiam ter sido previstos, então você não ganha nenhum ponto por sua previsão. Mas eu acho que o aumento dos preços, a desestruturação das cadeias de suprimentos, são, decididamente, resultado do choque entre a sólida demanda e a limitação da oferta.
Se as pessoas não tivessem dinheiro, não o teriam gasto em nada, nem em produtos nem em serviços. Mas, pelo fato de terem dinheiro, gastaram mais em produtos do que em serviços. Esse aspecto eu não previ. Se soubesse teria sido ainda mais cauteloso com relação à política econômica.
“A inflação [nos países ricos] vem, em grande medida, dos EUA, incluindo o efeito dos EUA nos preços das commodities”
FT: Na sua narrativa, a política fiscal é o elemento decisivo. Mas, e a política monetária? O Federal Reserve [Fed, o BC dos EUA] insistiu até novembro que essas pressões dos preços eram transitórias e que logo desapareceriam. Agora [o Fed] tenta recuperar o atraso.
Blanchard: A pergunta é: o que o Fed deveria ter feito ou dito quando o pacote fiscal foi aprovado? Espero que Jay Powell [o presidente do Fed] tenha dito ao governo que isso acabaria sendo um problema.
Sua equipe abraçou a tese e ele, não sendo um economista profissional, teria dificuldade em contestá-los. Eles acharam que as expectativas de inflação permaneceriam ancoradas e que a curva de Phillips [relação entre desemprego e salários/inflação] estava estável. Portanto, mesmo se houvesse superaquecimento, isso não teria muito efeito sobre a inflação.
Na época argumentei que o motivo pelo qual as expectativas estavam tão estáveis e a inclinação da curva de Phillips tão pequena eram 20 anos de nenhuma necessidade de ação – e, portanto, que não se tomassem medidas. Mas acho que a equipe se convenceu, convenceu o Conselho e Powell. Portanto, isso foi no começo.
Se você examinar as reuniões e as coletivas à imprensa do comitê de política monetária do Fed desde a metade de 2021, Powell foi ficando um pouco pessimista a cada reunião e ficou muito pessimista nos últimos meses. Assim, acho que tivemos a sensação de que mais precisava ser feito. Eles vêm tentado recuperar o atraso. Mas havia a questão de como e com que ritmo se devia dar a má notícia.
FT: Você acha que estamos falando sobre uma questão dos EUA ou dos países desenvolvidos de uma maneira mais geral?
Blanchard: A pergunta é de onde vem a inflação nas economias avançadas, e minha sensação é de que ela vem, em grande medida, dos EUA, incluindo o efeito dos EUA sobre os preços das commodities. Se os EUA tivessem sido mais cuidadosos, teria havido um aumento muito menor dos preços das commodities. Estamos nos concentrando nos preços das commodities nesta fase, devido à Ucrânia, mas a alta já tinha acontecido antes da guerra, e acho que se tem de associá-la, principalmente, à demanda muito forte dos EUA.
O motivo pelo qual eu estava pessimista com relação aos EUA até recentemente, e pelo qual ainda acho que veremos um cenário mais difícil do que se prevê agora, é que há um conjunto de previsões que com grande probabilidade não acontecerá – aquelas projeções da equipe do Fed em março.
Nessas projeções, tinha-se o desemprego permanecendo em 3,5% nos próximos dois anos, e também uma inflação que diminuiria bem, para 2 pontos e alguma coisa. Isso simplesmente não vai acontecer.
O que vai acontecer é, teremos muito mais inflação se o desemprego continuar em 3,5%, ou teremos um desemprego maior se quisermos uma inflação de 2 pontos. É claro que parte da inflação vai desaparecer por si só. Mas ela não vai voltar para nada próximo de 2% ou mesmo 3% com essa baixa taxa de desemprego. Portanto, mais medidas serão necessárias.
E, então, a grande pergunta é: quão forte será a demanda agregada nos EUA? No momento, a economia está extremamente aquecida e a taxa de vagas abertas está em níveis nunca vistos. Mas será que pode ocorrer uma recessão sem o Fed fazer nada além do que pretende fazer? Não é inconcebível.
Um dos pontos envolve os fracos números do PIB no primeiro trimestre, que resultaram das exportações e importações, não do consumo ou investimento. Mas por que isso aconteceu? Não sei, mas, se continuar, reduzirá o crescimento. Há também uma grande consolidação fiscal que vai diminuir a demanda, independentemente da política monetária.
Mas a razão pela qual não é óbvio que haverá uma diminuição na demanda é que houve esse enorme acúmulo de poupança que, em grande medida, não foi gasto ainda. Além disso, os Estados receberam muito dinheiro no pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão – que também não foi todo gasto.
Mas não é inconcebível que a economia desacelere bastante por conta própria. O desemprego então aumentaria, e isso reduziria a pressão sobre a inflação. Nesse caso, talvez o Fed não precise aumentar suas taxas de juros para muito além dos 3%. Se isso não acontecer, taxas de juros nominais de 3% com uma inflação esperada superior a 3% não me parecem suficientes para desacelerar a economia e diminuir a inflação. Então, é isso o que penso com relação aos EUA.
“Se os EUA tivessem sido mais cautelosos, teria havido um aumento muito menor dos preços das commodities”
FT: Outro fator é o que está acontecendo nos mercados financeiros. Há a preocupação de que a economia poderá despencar porque há muita turbulência no mercado.
Blanchard: Quando você diz que há turbulência nos mercados financeiros, o que vejo é que há uma grande queda dos preços das ações e um aumento das taxas de juros.
É assim que funciona o mecanismo monetário. Deveria ter acrescentado isso à lista das coisas que poderão desacelerar a economia. É a política monetária funcionando por meio da previsão, pelo mercado, de que haverá alta das taxas de juros. Será que isso levará a problemas financeiros? Não sou especialista em balanços financeiros, mas o que leio nos testes de estresse e em outros estudos é que o sistema financeiro consegue suportar isso.
Se os mercados financeiros não conseguirem suportar isso, ou se os governos reclamarem, será que o Fed ou qualquer outro banco central dirá, tudo bem, desistimos e não vamos aumentar os juros? Acho que não. Enquanto gente como Powell estiver à frente do Fed, ou Lagarde no Banco Central Europeu, essa possibilidade não existe.
FT: Você está associado à discussão conhecida como “estagnação secular”. Alguma coisa que está acontecendo agora o leva a alterar a hipótese básica, ou o sr. assume o ponto de vista de que o que estamos vendo é essencialmente um soluço causado pelo choque da covid e por uma reação monetária e, sobretudo, fiscal inadequada a ela?
Blanchard: Essa é a pergunta de US$ 1 trilhão. Sua pergunta é, na verdade, até que ponto este é um soluço. Uso a palavra solavanco, que acho que tem uma duração ligeiramente maior que um soluço. Mas acho que depois voltaremos a taxas de juros reais baixas.
Assim, vou dar uma de Larry Summers. Vou dizer, com probabilidade 0,9, que voltaremos a algo parecido com aquela situação anterior. Acho que há a tendência de os mercados focarem no presente e extrapolá-lo para sempre. Mas, se examinarmos os fatores por trás da queda das taxas de juros reais desde a metade dos anos 1980, nenhum parecia a ponto de uma virada, a não ser, o investimento.
Suponha que haja um grande aumento do investimento público nos EUA, porque percebemos que temos de agir com relação ao aquecimento global e na Europa, pelo mesmo motivo. Isso aumentaria o investimento e também a taxa de juro real neutra.
Portanto, posso pensar em uma nova situação no qual o investimento público, e talvez o privado também, será muito maior nos EUA e na Europa. Quanto? Não muito alto, creio. Mas faria uma diferenciação entre o fato de que teremos um período de taxas de juros reais mais elevadas, para desacelerar a inflação, e a questão de se voltaremos, depois, às mesmas taxas de juros reais de antes, ou um pouco mais altas. Sobre a segunda possibilidade, estou cético.
FT: Passemos para a situação europeia e a sua relação com a guerra na Ucrânia. Se você observar a inflação básica da zona do euro, ela subiu um pouco na medida padrão. Nada parecido com os EUA. Dada a história e a situação, o BCE estava certo em considerar um aperto antes da guerra na Ucrânia?
Blanchard: Eu acredito que sim. Eles disseram que fariam o aperto com calma. Na época – em fevereiro -, achei que esta era uma trajetória razoável. A inflação foi em grande parte importada para a zona do euro e os mercados de trabalho não estavam tão apertados como nos EUA. Então, considerei que era uma linha de ação razoável.
A questão é o que o BCE deve fazer agora. Acho que há duas forças opostas em ação. A primeira é que os europeus parecem estar bastante tranquilos com a inflação, por acharem que irá desaparecer. De fato já poderia ter acabado não fosse a guerra. Se a inflação seguir alta, deve haver uma preocupação com o deslocamento para cima das expectativas. Se os demais fatores permanecerem inalterados, isso obrigaria o BCE a ser mais duro.
O fator que vai na direção oposta é que os EUA são autossuficientes em energia e alimentos, enquanto a Europa é autossuficiente em alimentos, mas não em energia. Não sabemos até onde os preços subirão por conta da guerra na Ucrânia, mas na hipótese de que tenha provocado um aumento de 25% no preço da energia, isso levará a uma redução da renda real na UE de quase 1%. Isso terá um efeito negativo sobre a demanda e indica que a economia europeia pode desacelerar por conta própria.
Neste estágio parece-me que os dois fatores têm mais ou menos a mesma força. Mas se eu fosse Lagarde, olharia todos os dias os números, e ficaria de prontidão para agir de uma forma ou outra.
Ok, então as taxas de juro vão subir na zona do euro. Não tenho dúvidas disso. Mas, o que é mais importante, os spreads também estão subindo: o spread [dos bônus] da Grécia de 10 anos subiu 93 pontos-base neste ano e o dos bônus da Itália, 67 pontos-base.
Isso pode deixar o BCE em uma situação difícil. Sua posição tem sido a de que, se o aumento nos spreads não se deve a fundamentos, mas ao fato de que os mercados se tornaram disfuncionais ou malucos, seja por que razão for, o banco fará o que for preciso para manter as taxas baixas. Mas se está relacionado a fundamentos, o BCE argumenta que não há o que fazer.
Mas o que eles vão fazer se o spread dos bônus italianos, por exemplo, subir mais 100 pontos-base? São os fundamentos? Trata-se realmente de uma preocupação com a dívida italiana ou é apenas nervosismo dos investidores? Será muito difícil se o BCE se deparar com um grande aumento nos spreads, porque a única coisa correta que poderia fazer seria dizer, ‘bem, acreditamos que seus fundamentos estão bons e achamos que os investidores estão errados’.
Isso é algo muito difícil para o BCE fazer. Penso que a avaliação sobre se a situação se deve a fundamentos ou é só ruído deve ficar para outra entidade – o Mecanismo Europeu de Estabilidade, por exemplo. Você pode escolher a instituição que quiser, mas essa parece ser a correta. Ela então enviaria sinais, do tipo ‘não, nós achamos que a Itália não está com um problema tão grande assim’. E com isso o BCE poderia continuar a comprar ou manter bônus italianos.
É algo que pode muito bem se tornar um problema dentro dos próximos seis meses, e não acho que o BCE esteja em condições de fazer o que precisaria fazer.
É fascinante essa preocupação dos investidores com relação à Itália, e por duas razões. A primeira é que Mario Draghi está no comando. Não é para sempre, mas está no comando hoje, e ele não é exatamente o que chamaríamos de um louco, certo? E a segunda é que, como a inflação está alta na Itália, é quase certo que a relação dívida/PIB diminuirá substancialmente neste ano e no próximo. Preocupar-se com a estabilidade da dívida da Itália no contexto atual me parece bastante esquisito.
FT: A guerra criou alguns dilemas em termos de como aplicar sanções e aguentar o impacto das sanções na Europa. E, é claro, algumas economias têm maior exposição ao gás russo do que outras. Itália e Alemanha estão muito expostas. A França, bem menos. O senhor tem uma opinião específica sobre o que a Europa precisa fazer a curto, médio e longo prazos para lidar com este conjunto de crises em potencial e as soluções de compromisso que seriam necessárias?
Blanchard: Sim, publiquei um artigo sobre isso com Jean Pisani-Ferry. Tenho a sensação de que as implicações podem ser muito maiores para o longo prazo do que para o curto. Estou impressionado com a ideia de como isso mudará a Europa, o que também tem importância para a economia.
Acho que alguém disse: ‘estamos em um mundo de desglobalização, mas a implicação pode ser que teremos uma globalização mais europeia’. Concordo plenamente. Acho que isso pode fortalecer os laços internos da Europa. Aprendemos que muitas das principais decisões devem ser tomadas ao nível da UE. Portanto, acredito que isso fortaleceu a Europa.
Agora, com relação ao curto prazo, o principal efeito econômico será nos preços de energia e alimentos. Também acho que não devemos partir do princípio de que continuarão. Os preços podem cair se houver uma recessão na China. Mas no momento a questão principal são os preços de energia.
É muito melhor atacar a Rússia no petróleo do que no gás. E o motivo é simples: se pusermos uma tarifa sobre o petróleo da Rússia, a Rússia não nos venderá petróleo porque teria de reduzir o preço para contrabalançar a tarifa. Portanto, ela buscará outros mercados.
Sabemos que a China está disposta a comprar um pouco, a Índia e assim por diante, mas esses países não se dispõem a fazê-lo ao preço normal, e as companhias de navegação também não estão dispostas a entregar o petróleo russo pelo preço habitual. Então, o que veríamos é uma queda no preço do petróleo para outros mercados: o preço do petróleo ‘Ural’ tem um desconto de cerca de 35%.
Nesse cenário, o que acontece é que a Rússia continua a vender o que pode, e aceita uma queda de 35% na receita, o que é substancial. Mas a oferta mundial de petróleo não muda muito. Isso garante uma redução na receita russa sem um grande aumento nos preços do petróleo em termos mundiais.
O caso do gás é mais complexo, porque quando colocamos uma tarifa sobre o gás, a Rússia pode aumentar seu preço. E aqui, na minha opinião, as questões da distribuição através dos países também dificultam a gestão.
Resumo: devemos ser muito agressivos com relação ao petróleo, mas mais cuidadosos com o gás. Em termos de receitas, as receitas do petróleo também são muito maiores do que as do gás, por isso acredito que esse é o caminho a seguir. (Tradução de Lilian Carmona e Rachel Warszawski)
Fonte: FT / Valor Econômico
