O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, queria ser um presidente transformador que expandisse o papel do Estado na vida americana, como fez Lindon B. Johnson. Em grande medida, ele conseguiu, aprovando legislações importantes sobre infraestrutura, produção de semicondutores e energia limpa.
Mas quando o público pensa no histórico econômico de Biden, ele se concentra em outra coisa: a inflação, que em 2022 atingiu o maior nível em 40 anos, recuando depois. A inflação já ameaçava a reeleição de Biden antes que as preocupações com a sua idade surgissem. Essas preocupações o levaram a anunciar, no domingo, que não buscaria mais a reeleição e a apoiar a candidatura da vice-presidente Kamala Harris à presidência.
A questão agora é se Harris (ou qualquer outro democrata) será igualmente afetada pela insatisfação pública em relação à economia – ou se ela poderá se concentrar no futuro, caso em que tem mais chances contra o candidato republicano Donald Trump.
A candidata democrata (ou o candidato) terá de enfrentar o histórico econômico de Biden. O Plano de Resgate Americano de US$ 1,9 trilhão que Biden assinou pouco após assumir o cargo, personificou tanto a sua ambição como seu alcance. Biden e sua equipe viam esse plano como um canal para atingir objetivos progressistas. A proposta seria seguida pelo programa “Build Back Better” (Reconstruir melhor), que direcionaria bilhões de dólares para as energias limpas, a pré-escola universal, ampliação dos subsídios à saúde, licenças remuneradas, cuidados infantis e com os idosos, e habitação pública. Como a economia estava em crise, raciocinaram eles, quanto mais gastassem, melhor.
Mas a premissa estava errada. A economia não estava em crise. Ela vinha crescendo em ritmo acelerado desde a metade de 2020 graças aos estímulos aprovados por Trump, ao fim do distanciamento social e às vacinas. Ela não estava sendo travada pela demanda inadequada, e sim pela oferta inadequada, uma vez que a pandemia comprimiu as cadeias logísticas e expulsou milhões da força de trabalho. A colisão da nova demanda com a oferta limitada fez a inflação disparar.
O programa “Reconstruir melhor” acabou afundando devido à oposição do senador democrata moderado Joe Manchin da Virgínia Ocidental. Em retrospecto, Manchin pode ter feito um favor a Biden. Sua oposição impediu outro possível aumento de gastos inflacionário.
Enquanto isso, partes menores da agenda de Biden foram aprovadas separadamente, como a Lei da Infraestrutura e dos Investimentos, a Lei dos Chips e da Ciência e a Lei da Redução de Inflação, as duas primeiras com votos dos republicanos.
Seu legado final ainda está para ser visto. A Lei dos Chips está levando para os EUA a capacidade de fabricar semicondutores avançados que hoje existe exclusivamente na Ásia. A Lei da Redução da Inflação encorajou os investimentos em energia solar, veículos elétricos e baterias.
A legislação representa uma grande mudança na política industrial dos EUA – o uso de instrumentos do Estado para alocar capital para setores favorecidos. A mudança provavelmente perdurará mesmo que Trump, que compartilha do ceticismo de Biden com o livre comércio e o gosto pela indústria nacional, retornar à Casa Branca no ano que vem.
As três leis foram amplamente populares, mas mal ficaram registradas na consciência do público. Em vez disso, diversas pesquisas mostraram uma grande desaprovação com a maneira como Biden está conduzindo a economia, uma desconexão que frustrou as autoridades do governo e deixou observadores externos perplexos. Afinal, em termos de crescimento do PIB e da criação de empregos, ou da redução do desemprego, o histórico do presidente até agora está entre os melhores entre qualquer mandato desde 1980.
Até mesmo a inflação, embora ainda acima dos 2% prevalecentes antes da pandemia, foi reduzida para cerca de 3% e aproxima-se o suficiente de 2% a ponto de o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) dever começar em breve a reduzir as taxas de juros.
Os resultados são ofuscados pelo aumento acumulado de 20% nos preços desde que Biden assumiu o cargo, pela falta de moradias no mercado e a incapacidade dos salários de acompanhar os preços. Esses fatores contribuem para uma sensação generalizada de instabilidade alimentada pelas mudanças na vida e no trabalho e provocadas pela pandemia, pelos altos níveis de imigração não autorizada, pelas guerras na Ucrânia e em Gaza e pela intensificação da polarização.
Os historiadores decidirão o verdadeiro legado econômico de Biden. Por enquanto, a questão mais premente é se a antipatia pública arrastará de forma semelhante qualquer um que tomar o seu lugar como candidato democrata à presidência.
Será quase impossível para Kamala Harris se distanciar do histórico de Biden. De forma semelhante, o vice-presidente Hubert Humphrey, que se tornou o candidato democrata em 1968, depois que Johnson se recusou a concorrer à reeleição, teve que lutar para se distanciar da profundamente impopular guerra do Vietnã e acabou perdendo por pouco para Richard Nixon.
Um “outsider” como o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, ou a governadora de Michigan, Gretchen Whitmer, teria menos bagagem que Harris, mas ainda assim enfrentaria a maior parte da ira contra o atual governo. Em 2008, o republicano John McCain estava próximo do democrata Barack Obama nas pesquisas até a metade de setembro, quando o banco Lehman Brothers quebrou. McCain concorria para suceder outro republicano, George W. Bush, e os eleitores atribuíram a crise que se seguiu ao partido que então ocupava a Casa Branca.
Ainda assim, embora qualquer candidato democrata tenha que assumir o histórico de Biden, ele ou ela poderá pelo menos se sair melhor defendendo-o e contra-atacando Trump com mais eficiência do que Biden em sua desastrosa atuação no debate presidencial de junho.
Embora o público se lembre com carinho da economia de Trump, ele tem vulnerabilidades. Seu companheiro de chapa, J.D. Vance, pode parecer adotar um discurso populista pró-trabalhadores, mas a retórica de Trump ainda enfatiza os cortes de impostos e as tarifas, nenhum dos dois particularmente popular. Economistas acreditam que seu plano de aumentar as tarifas, deportar imigrantes ilegais e reduzir os impostos poderá aumentar a inflação, as taxas de juros e os déficits. Ninguém sabe se eles estão certos. Mas quanto mais o candidato democrata puder falar sobre o futuro sob Trump, em vez do passado sob Biden, melhores serão as suas chances.
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Fonte: Valor Econômico

