Por Alex Ribeiro — De São Paulo
16/10/2023 05h01 · Atualizado há 6 horas
O economista José Júlio Senna, consultor da MCM Consultores, avalia que o Banco Central (BC) poderá ter de desacelerar para 0,25 ponto percentual o ritmo de corte de juros, que inicialmente foi sinalizado em 0,5 ponto percentual, a partir de sua reunião de dezembro ou antes disso. Os motivos são a piora no ambiente internacional e a dificuldade do governo em aumentar receitas para cumprir as metas fiscais
“Diria que, na hipótese de nada mais drástico acontecer até lá, em novembro ainda será 50 pontos”, disse Senna, ex-diretor do BC e chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre. “Fica difícil assegurar que esse ritmo seja mantido a partir de dezembro.” Para ele, as estimativas dos analistas de que os juros vão cair a 9% ao ano parecem “irrealistas”.
Ele considera que a guerra entre Israel e o Hamas reduz as chances de uma nova alta das taxas de juro de curto prazo nos Estados Unidos, os “Fed funds”. “Não vejo, durante o conflito, a possibilidade de subir o juro”, diz. “Mas ela já era muito baixa.”
Senna acredita que a causa principal da escalada dos juros dos títulos do Tesouro americano (Treasuries), com forte repercussão no mundo todo, incluindo o Brasil, é monetária – ou seja, está ligada à ação do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) para controlar a inflação. “O Fed evita explicitar esse objetivo, mas tenta empurrar os juros de dez anos para cima por meio de sinalizações relacionadas com a postergação do momento em que os juros começarão a ceder.”
Em entrevista ao Valor, ele reconhece o papel do risco fiscal na pressão sobre as Treasuries, que se manifesta sobretudo no chamado prêmio de alongamento (“term premium”, em inglês) exigido pelos investidores para carregar um papel que vence dentro de alguns anos. Foi a esse prêmio de alongamento, que remunera também outros riscos, que membros do Fed se referiram na semana passada para dizer que os juros longos estão cumprindo parte do trabalho de controlar a inflação.
“O espaço para um alívio do aperto monetário é muito pouco”
Ele acha que a redução da compra de títulos pela China é um fator secundário na alta dos juros das Treasuries, porque eventuais distorções em preços seriam rapidamente corrigidas pela arbitragem. “O mercado de Treasuries é talvez o mais líquido do mundo”, diz Senna, que é autor do livro “Política Monetária: Ideias, Experiências e Evolução”.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: O sr. argumentou em um artigo recente que a alta dos juros dos títulos americanos de dez anos é um fenômeno monetário. Qual é o problema inflacionário que o Fed está enfrentando?
José Júlio Senna: O Fed aumentou os juros em cerca de 525 pontos-base, bastante coisa, mas a queda da inflação que a gente está vendo até agora tem pouco a ver com a política monetária. A essência foi a reversão dos choques [ocorridos desde a pandemia]. E resta combater os componentes mais nucleares da inflação, especialmente os serviços.
Valor: A ferramenta para enfrentar esse problema inflacionário não são os juros de curto prazo?
Senna: A alta dos Fed funds não produziu o impacto desejado nas condições financeiras, que ainda estão em território aproximadamente neutro. Elevar mais os Fed funds, aparentemente, não vai resultar em muita coisa. Os mercados financeiros americanos têm sido tomados de um grau de otimismo muito significativo. A curva de juros – comparando prazos de dois e dez anos – se inverteu quando havia sido percorrido apenas um quarto do ciclo de elevação dos Fed funds. Para combater uma inflação que tem raízes relativamente profundas, você tem de esfriar a economia e o mercado de trabalho. Você precisa de condições financeiras apertadas. Sem uma alta de juros longos, isso não será obtido.
Valor: Como o Fed faz para influenciar a curva longa de juro?
Senna: Os bancos centrais não gostam de interferir ou dar sinais de insatisfação com os juros longos. É como sinalizar ou tentar intervir em preços de ações. As Treasuries de dez anos devem ser vistas como preço de um ativo de longo prazo. O Fed evita explicitar que tem esse objetivo, mas tenta empurrar os juros de dez anos para cima por meio de sinalizações relacionadas com a postergação do momento em que os juros começarão a ceder, o que é inevitável. Uma aplicação financeira de dez anos pode ser vista como composta de uma aplicação de prazo curto, por exemplo um ano, e nove reaplicações de um ano, mais um prêmio de alongamento. Na medida em que o Fed sinaliza que a redução dos juros de curto prazo será postergada em relação ao que os participantes do mercado esperavam, na composição isso contribui para empurrar os juros longos para cima. É isso que tem acontecido, é isso que o Fed pretende, mas não pode ser muito explícito. Curiosamente, há um grupo dentro do Fed que gostaria de explicitar melhor isso, a ponto de terem dito na última ata do comitê que o foco das decisões e da comunicação de política monetária deveria deixar de ser até que nível o juro básico deverá subir – o ‘how high’ – e passar a ser quanto o tempo que a taxa básica será mantida em patamar restritivo – o ‘how long’. Seria algo inédito em fases de aperto monetário.
Valor: Alguns analistas econômicos têm argumentado que o risco fiscal estaria por trás da alta dos juros dos títulos americanos. Onde entra o risco fiscal nessa história?
Senna: O que tem acontecido no campo fiscal não é animador. Estamos falando de déficits públicos sistematicamente na ordem de 6% a 7% do PIB, e os congressistas não se entendem sobre vários aspectos da administração dos orçamentos fiscais. Isso traz bastante insegurança. Esse impacto sobe os juros longos se manifesta por meio de alta dos prêmios de risco, dos prêmios de alongamento. É a recompensa que o investidor busca numa aplicação feita a juros prefixados de prazo médio ou longo. Pelas estimativas do Fed de Nova York, o prêmio era até negativo, e agora entrou em território positivo.
“Um IPCA melhor não apaga os pontos de preocupação que estão surgindo”
Valor: Uma explicação popular para a alta de juros das Treasuries é o descompasso entre a oferta e a demanda, com a China comprando menos papéis. Não seria isso?
Senna: Eventos como esse podem ter impactos momentâneos, mas são uma questão secundária. O mercado de Treasuries é talvez o mais líquido do mundo, com participantes de todos os cantos do planeta. Eles estão atentos às oportunidades para arbitragem. Se os preços estão mal formados, eles atuam para eliminar as distorções.
Valor: Poderia ser que a pressão nas Treasuries reflita uma taxa neutra maior, o que significaria que o Fed terá de operar com juros mais altos para equilibrar a economia?
Senna: Há muita incerteza sobre o patamar do juro neutro. O Fed de Nova York divulga duas estimativas, segundo dois modelos, uma de 0,6% e outra de 1,1%. O Fed deu início ao processo de combate à inflação, mas a referência básica, que é o juro neutro, não é conhecida com precisão. Pode ser que, mais adiante, o Fed entenda ser necessário manter em território apertado por mais tempo, e o impacto disso sobre os juros de longo prazo tenha continuidade.
Valor: Qual é o efeito do “quantitative tightening” nos juros longos?
Senna: Diria que também tem um caráter de natureza mais secundária. Se provocar uma desarbitragem importante ao longo da curva de juros, a ação dos arbitradores tenderia a corrigir.
Valor: A queda do juro ocorrida após o início do conflito entre o Hamas e Israel invalida a tese de que a alta dos juros reflete questões monetárias?
Senna: Acho que não invalida nem um pouco. Parece ter sido uma reação pontual, oscilações de curto prazo, motivadas por fatores de várias naturezas. Ora a pressão um pouco maior dos números de inflação, ora a preocupação com o Oriente Médio ou as declarações de dirigentes do Fed, que o mercado interpretou de maneira mais suave.
Valor: Como fica o cenário mais imediato para a política monetária americana depois do início desse conflito? O Fed fica menos inclinado a fazer uma alta de juro adicional?
Senna: Não vejo, durante o conflito, a possibilidade de subir o juro. Mas ela já era muito baixa. Antes do conflito, ajustes na taxa básica de juros já deixaram de ser relevantes. O Fed entendeu que o que mais interessa é agir de maneira a afetar as condições financeiras. A probabilidade em mercado de promover novos ajustes na taxa já não era majoritária, agora o Fed tem mais razões ainda para não insistir.
Valor: Como o sr. avalia as declarações recentes de membros do Fed de que a alta dos juros longos já está fazendo um pedaço do trabalho de política monetária?
Senna: As manifestações de quatro ou cinco dirigentes do Fed durante a semana que passou reforçam bastante o raciocínio que tenho desenvolvido. Elas ressaltam o fato de que, na medida em que as taxas longas de juros subam, em particular a de dez anos, o trabalho da política monetária está sendo feito. Mas é muito delicada essa questão relacionada com uma eventual explicitação da intenção dos dirigentes do Fed. Então, todos eles evitaram mencionar que é um objetivo do banco central americano fazer os juros de dez anos subirem, por meio das indicações de postergação do ciclo de corte de juros. Mas destacaram que, contribuindo para a alta dos juros longos, tem havido uma alta importante dos prêmios de alongamento. A questão fiscal entra exatamente nesse ponto. Toda situação que envolva um aumento importante de volatilidade no retorno esperado de títulos longos significa, por definição, aumento de incerteza, de risco. Quando o banco central começa a combater a inflação, apertando a política monetária, também provoca incerteza. O Fed comeu mosca no passado [no seu diagnóstico no combate à inflação], será que vai comer mosca de novo? Até onde vai o aperto monetário? Isso também é uma incerteza que afeta o prêmio de alongamento, mas não constitui uma ação propriamente deliberada.
Valor: Olhando para um prazo mais longo do que as decisões de novembro e dezembro, o que a gente pode esperar?
Senna: No dia em que saiu o dado do mercado de trabalho americano, com a geração líquida de 336 mil postos de trabalho, qual foi a reação do mercado? As bolsas gostaram, mas o juro de dez anos subiu. O raciocínio do participante do mercado é que, se a economia está forte, agora mesmo é que o Fed vai demorar para reduzir o juro. Então não tem muito mistério. O que vai acontecer com o conjunto das taxas de juros depende da evolução da economia. O espaço para um alívio do aperto monetário é muito pouco. E a razão básica é que a economia americana ainda não se desacelerou.
Valor: Qual a chance, diante de toda essa incerteza internacional, de o Banco Central fazer menos do que 0,5 ponto percentual de baixa nas próximas reuniões?
Senna: O espaço para fazer menos está super presente. A trajetória de baixa de juro de 50 pontos por reunião, ao contrário do que muita gente entendeu na época, foi uma decisão conservadora. É como se o Banco Central tivesse decidido puxar o freio de mão. Quando o BC sinalizou uma trajetória de 50 pontos de queda, abriu mão de um princípio seguido mundo afora num ambiente de elevadíssimo grau de incerteza, principalmente da pandemia para cá, de não sinalizar próximos passos de política monetária. No máximo, faz sentido sinalizar para a reunião seguinte. O risco de não ter condições de sustentar o que sinalizou torna-se muito alto, e o custo disso é a perda de credibilidade da autoridade monetária. O BC abriu mão do princípio com o objetivo muito nobre de manter o ciclo de baixa de juros minimamente sob controle. De forma geral, ciclos de baixa de juros ensejam euforia. Em pouquíssimo tempo estariam os participantes de mercado esperando que, depois de 50 pontos, a baixa fosse de 75 pontos e, mais adiante, 100 pontos. De lá para cá, o quadro da inflação tem ficado mais preocupante. Tendo a prestar pouca atenção para a inflação corrente. O regime de metas de inflação não é isso, ele olha a inflação lá adiante, pelas defasagens de política monetária. O fato de ter um IPCA um pouco melhor não apaga as verdadeiras preocupações que estão surgindo nos últimos tempos. Eu citaria duas. Estamos vendo uma enorme dificuldade de aprovação das medidas de aumento de receita tributária indispensáveis no esforço para tentar cumprir as metas de déficit fiscal. A rentabilidade das NTN-B está indo para cima. O outro componente é que o Banco Central registrou esse problema externo como uma fonte de preocupação. Com os juros longos [subindo] lá fora, as bolsas sofrem, o ‘dollar index’ se fortalece e isso tem impacto nos preços de ativos domésticos. Eles usaram um eufemismo, queriam dizer câmbio. O modelo da MCM que replica o do BC mostra um ajuste de 3,5% para 3,6% nas projeções de inflação para 2024. Então, o ajuste no ritmo de 50 pontos para 25 pontos é perfeitamente compreensível e super dentro do espírito que o BC tem na cabeça, do modelo. É importante os participantes de mercado estarem superatentos a essa possibilidade. A eventual redução para 25 pontos é um pouco o sinônimo de uma sinalização de que esse ciclo de baixa talvez não vá tão longe.
Valor: Essa redução no ritmo estaria na mesa na reunião do Copom de novembro ou dezembro?
Senna: Vamos ver como as coisas evoluem, tem sido um ambiente cheio de oscilações. Durante a semana os juros longos americanos cederam um pouco. A reunião de novembro ainda está longe. Eu diria que, em princípio, na hipótese de nada mais drástico acontecer até lá, em novembro ainda será 50 pontos. Fica difícil assegurar que esse ritmo seja mantido a partir de dezembro.
Valor: Essa alta de Treasuries vai impor algum tipo de piso mais alto para o nossa baixa de juro?
Senna: O [ex-presidente do Fed] Ben Bernanke, no fim do seu livro recente, faz um ensinamento com base na sua experiência: ‘Banqueiros centrais, o Congresso é o teu chefe!’. O Banco Central do Brasil hoje está no mesmo barco do banco central americano. Independência de banco central não é algo escrito em pedra, é outorgada. O Banco Central do Brasil já tinha esticado a corda demais, precisava dar início ao ciclo de baixa. Agora, a decisão, a despeito de ter sido correta, foi tomada num momento em que as condições não estavam – esse advérbio é importantíssimo – inequivocamente favoráveis ao ciclo de baixa. As expectativas na Focus de médio prazo estavam desancoradas, e a inflação projetada para o horizonte relevante estava superior à meta. De novo, tinha de começar. Os preceitos do ‘inflation targeting’ são muito claros e precisam ser respeitados para o sistema funcionar, mas tem hora que você tem de levar em conta outros fatores. Até onde o Banco Central vai levar o ciclo de baixa de juros? Em algum momento o Banco Central do Brasil vai se sentir desconfortável de continuar, de dar sequência ao ciclo de baixa, com uma inflação projetada acima da meta. Na medida em que as projeções de inflação não venham para a meta no horizonte relevante, o Banco Central vai ter de pensar seriamente em parar, interromper o ciclo de queda, possivelmente antes do que se imagina. A pesquisa Focus tem 9% [para a taxa no fim do ciclo]. Eu acho isso muito irrealista. A gente pega as expectativas de mercado, elas já se ajustaram, estão em 10,5%. É uma estimativa melhor do que 9%.
Fonte: Valor Econômico