Por Marsílea Gombata — De São Paulo 13/12/2022 05h00 · Atualizado há 4 horas
O governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva ainda não apresentou um plano de voo. Mesmo depois da aprovação da PEC da Transição, com licença para gastar R$ 145 bilhões fora do teto por dois anos, o nível de incerteza continua alto, diz a consultora econômica Zeina Latif.
“Não há garantia alguma de que a despesa ficará estável como proporção do PIB”, diz, em entrevista ao Valor. “E mesmo um cenário estável é de aumento da dívida pública como proporção do PIB. Não é um cenário de alívio, no qual o Banco Central ficará tranquilo. Ou em que os agentes econômicos ficarão tranquilos, e logo poderemos ter corte de juros.”
“Lula esticará essa corda o quanto puder para fazer política de estímulo, que é um pouco o DNA do PT’’
Na avaliação da ex-secretária de Desenvolvimento Econômico de São Paulo no governo de Rodrigo Garcia (PSDB), o ambiente macroeconômico ficou mais arriscado e pelos próximos anos ficará no ar a dúvida: “Qual o tamanho do desaforo que o mercado aceita e o quanto de risco Lula aceita? Não sabemos”, afirma. “Por isso, a volatilidade está contratada. Não sabemos bem o que será a regra fiscal, o que será exatamente o aumento de gastos. Tudo está cheio de brecha.”
Zeina acredita que a tônica dos próximos quatro anos será Lula esticando a corda por mais recursos para política social, em cenário de orçamento restrito. Ela critica a falta de um “plano de voo”, o que tem deixado mercado e setor produtivo apreensivos, em sua avaliação. Isso porque, apesar do pragmatismo de Lula, o seu governo “testou vários limites e cometeu seus erros na gestão da política fiscal”.
“Em 2016, antes mesmo de aprovar a regra do teto, vimos o ambiente macroeconômico melhorar pelas expectativas’’
A seguir os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: Qual é o legado econômico que o governo Bolsonaro deixa?
Zeina Latif: Independentemente do julgamento sobre se Bolsonaro é liberal, não é liberal, o seu governo compreendeu o anseio de uma parcela importante do setor produtivo e da sociedade que quer menor intervencionismo estatal. Nessas reformas de marcos regulatórios, muitos podem dizer: “Nem teve tanta contribuição do governo”. Mas, às vezes, não atrapalhar já é um mérito. Vimos movimentações do setor produtivo, que compreendeu que precisamos avançar nessa agenda mais estruturante e reduzir o custo Brasil. Mesmo considerando decepções, há um sentimento da sociedade, que é de busca por ação mais eficiente do Estado. Mesmo com as críticas em relação a retrocessos e equívocos, como o modelo da Eletrobras para favorecer grupos organizados, não podemos deixar de reconhecer pontos importantes. Ajudou a alimentar esse desejo de intervenção de melhor qualidade.
Valor: O próximo ano não será muito fácil para a economia brasileira. O que pesará mais: cenário doméstico ou externo?
Zeina: Eu me preocupo mais com o cenário interno. Até porque acho que, ironicamente, o cenário externo tende a ser benigno para o Brasil. Há mais riscos, mais incertezas porque tem a questão geopolítica, essa percepção de cada vez mais eventos climáticos, questões de saúde, a noção de que não estamos vivendo um ciclo econômico lá do início do século. É um mundo mais complexo e com mais riscos. Aprendemos nas finanças que quando se tem risco é preciso diversificar, pois é um mundo em que se busca diversificar destino de investimentos, parceiros comerciais. E o Brasil está em posição mais favorável. Está longe do conflito [Ucrânia-Rússia], tem uma democracia que funciona. Temos visto investidores de autoridades lá fora elogiando nossa democracia. Vai depender do quanto fizermos a lição de casa na questão ambiental, que também coloca o Brasil em posição mais favorável. Então, ironicamente, um ciclo econômico mundial mais modesto vai ser positivo em termos relativos. E sabemos que isso tem peso quando discutimos fluxo de capitais, por exemplo, investimentos. Já vimos o quanto a guerra da Ucrânia e todo esse movimento anterior de alta de commodities, com o Brasil exportador líquido de commodities, beneficiaram a economia e algumas regiões do país. Então o quadro internacional pode trazer volatilidades, mas liquidamente é positivo para o Brasil. Quanto à China, em princípio, poderíamos pensar que não é muito saudável dependermos tanto e seria importante diversificar o destino das exportações. Há saída, espaço para diversificar. Depende do quanto fizermos de lição de casa.
Valor: O governo Lula deve ter um terceiro mandato diferente dos dois primeiros, sem tantos recursos vindos do superciclo das commodities. O que esperar?
Zeina: Lula é um político pragmático, o que significa que ele reagirá conforme as circunstâncias. [Temos de] torcer para que ele não erre no cálculo político, a tal ponto de ser difícil fazer correção nos momentos em que for ceder para mais gastos. A impressão que tenho é que [ao longo do seu governo] ele esticará essa corda o quanto puder para fazer política de estímulo, que é um pouco o DNA do PT. Mas, claro, não dá para fazer isso o tempo todo. Nesse exercício de pragmatismo, tem que considerar que é um ambiente difícil. O cenário internacional não é a minha preocupação, mas está longe de ser também que ele viveu lá atrás. Porque Lula viveu o superciclo de commodities, depois a crise global, que autorizou muito expansão fiscal, até exagerada. Lula é um animal político. Ele foi a essa negociação da PEC [da Transição] com as metas lá em cima, certamente enfrentou restrições no Congresso. Quando vemos a intenção de tirar o Auxílio Brasil do teto [permanentemente], constata-se que na negociação teve de aceitar os limites. A impressão que dá é que será assim o tempo todo. A não ser que a gente tivesse um desenho diferente para o time econômico. Mas não foi uma discussão de time econômico, apenas da política.
Valor: Então episódios como o da PEC devem se repetir?
Zeina: O meu ponto é: tentaram uma coisa mais ambiciosa, enfrentaram as restrições da política. E aí se fez o balanço de até onde se pode ir. Foi uma negociação só da política. Não havia até então um ministro da Economia com uma visão, falando sobre a preocupação com o fiscal. E, de propósito, primeiro negociaram isso para depois, uma vez garantido, falar o nome do ministro, para preservá-lo. Acho que [essa dinâmica de esticar a corda por recursos para política social] valerá para outras ocasiões. Claro que cada tema será uma história diferente, dependendo do tipo de assunto que está sendo tratado. Mas isso [essa dinâmica se deve] porque não enxergamos uma agenda clara. A impressão que dá é que os temas vão surgindo e cada um vai tendo a sua história.
Valor: Será a tônica do governo?
Zeina: Acho que sim. O que poderia tornar a situação diferente para melhor? Seria ter reação dos mercados, dos agentes econômicos de tal forma que começa a haver maior preocupação em ter um plano mais estruturado conservador, não para gastar mais, mas no sentido de fazer reformas estruturantes, de conter gastos públicos, nesse sentido. [Só que] estamos falando de um governo que já começa com um desenho de política fiscal que não dá para dizer que a despesa como proporção do PIB vai ficar estável ã luz do que foi aprovado. Não há garantia alguma de que a despesa ficará estável como proporção do PIB. E mesmo um cenário estável é de aumento da dívida pública como proporção do PIB. Não é um cenário de alívio, no qual o Banco Central ficará tranquilo. Ou em que os agentes econômicos ficarão tranquilos, e logo poderemos ter corte de juros. Então o ambiente macroeconômico ficou mais arriscado. E a dúvida é sempre: qual o tamanho do desaforo que o mercado aceita e o quanto de risco Lula aceita? Não sabemos. Por isso, a volatilidade está contratada. Não sabemos bem o que será a regra fiscal, o que será exatamente o aumento de gastos. Tudo está cheio de brecha. E o PT foi quem começou a contabilidade criativa. Essas brechas podem abrir muita contabilidade desse tipo. Não é porque aprovou a PEC que se reduziu a incerteza quanto à despesa. Não mesmo.
Valor: Temos o mesmo quadro de antes da aprovação da PEC?
Zeina: Eu não vejo mudanças. Agora tem a PEC, mas não dá para a gente dizer que, na margem, reduziu de forma relevante o risco fiscal, no sentido de dar previsibilidade, que agora temos uma ideia do que vai ser o resultado fiscal em 2023. Não. Muito menos a dinâmica da dívida pública ao longo do mandato. É um ambiente ainda muito incerto. O exercício do pragmatismo é isso, né? Você reage dada as condições. Lá atrás, na época do Palocci [Antonio Palocci, ministro da Fazenda de 2003 a 2006] era um governo que precisava conquistar reputação em uma situação difícil e um Lula disposto a bancar aquela agenda. Hoje não sabemos bem. Esse é um outro ponto: quem é o contraponto hoje, ao [Fernando] Haddad na Fazenda etc? Lá atrás havia o Palocci e seu time como contraponto à visão do Ministério do Planejamento ou da visão tradicional do PT. Hoje quem é esse contraponto? Não sei. Será o mercado, a oposição reduzindo o espaço para gastar. Ou seja, é muita fonte de incerteza que temos.
Valor: Voltando aos problemas no âmbito doméstico, qual é o tamanho do desafio?
Zeina: Acho que o primeiro ponto é o esforço fiscal, hoje muito maior do que 0,5% de PIB naquele primeiro momento do Palocci. Não é que tem de fazer o esforço fiscal, mas tem de mostrar o caminho. Acho que ninguém imagina que precisa fazer 4% de ajuste fiscal para estabilizar [a relação] dívida/ PIB, isso considerando que teremos quase 2% de déficit no ano que vem. Mas estamos falando de algo entre 3,5% e 4% de ajuste necessário, dependendo dos parâmetros, para estabilizar a dívida nos próximos anos. Acho difícil ter isso, mas não há dúvida de que aumenta a necessidade de um plano consistente, crível para que os agentes econômicos olhem a trajetória de aumento da dívida pública e isso não se traduza em maior instabilidade macroeconômica. A gente sabe que tem a questão das expectativas aqui que pesam muito. Então, fazendo um paralelo com o passado mais recente do governo [de Michel] Temer, quando ele entrou, tínhamos clareza de qual seria a agenda, com um foco importante na questão fiscal, na eliminação de subsídios do BNDES, na regra do teto, a [questão] da Previdência, em paralelo, a reforma trabalhista. Ao longo de 2016, antes mesmo de aprovar a regra do teto, vimos o ambiente macroeconômico melhorar pelas expectativas. E as expectativas não nascem do nada. Você olha, tem um plano de governo que consegue enxergar, um presidente comprometido ou um grupo comprometido e com capacidade política. Claro que depois da crise política as coisas ficaram complicadas, mas era um governo em que se enxergava o plano de voo. Mesmo antes de qualquer reforma, conseguimos ter um ambiente macroeconômico mais estável. Esse cuidado em ter um plano de governo claro é muito importante. Com a desvantagem, comparativamente, por exemplo, ao que o Bolsonaro recebeu do Temer. Hoje não há um grande debate público, de temas suficientemente mais maduros que propiciam avançar com reformas fiscais já no primeiro ano de mandato, que seria o esperado. Quando se fala em fazer reforma administrativa, “spending review” [revisão dos gasto], reavaliar políticas com problema de focalização ou que são sobrepostas, abono salarial, FGTS. Há todos esses diagnósticos, os técnicos da Fazenda sabem, mas não são temas maduros politicamente. Não impede avançar, mas o ponto é que não vemos sinalizações. Então, o primeiro ponto é esforço fiscal maior. Segundo, não tem uma grande reforma como foi a Previdência para o Bolsonaro, que já tinha um debate público mais maduro e era um passo largo para a estabilização da dívida/PIB. Agora as coisas são mais complexas. Porque tem que avançar em várias frentes em temas polêmicos.
Valor: Não será um ajuste de 3,5% a 4%. Quanto seria factível?
Zeina: Para ser bem honesta, está difícil enxergar sinalização de ajuste fiscal por ora. E não é que há um número mágico que o mercado aceitará, mas não estamos conseguindo enxergar o que é o plano de voo. Claro que o governo ainda não tomou posse, e é preciso aguardar um pouco. De qualquer forma, a gestão da questão fiscal no governo Lula foi um período breve dentro dos oito anos de governo, enquanto o Palocci esteve lá. Esse argumento sobre o Lula no passado tem que ser qualificado. Porque foi um governo que testou vários limites e cometeu seus erros na gestão da política fiscal, e o resultado só não foi pior porque estava colhendo frutos do esforço anterior e veio a crise global, que acabou sendo justificativa para algumas políticas. Mas não que tenha sido governo com compromisso inquestionável em relação à disciplina fiscal. A Dilma [Rousseff] entrou em um quadro que já tinha sementes de problemas. Quando entrou, dobrou a aposta e piorou. Esse argumento de que “Lula não precisa ter pressa em mostrar plano de voo, não precisa reafirmar nada porque ele tem uma credibilidade construída” não é verdade. E o PT, as pessoas que estão ali, participaram do governo Dilma. Então há, sim, déficit de credibilidade.
Valor: Não há plano de voo?
Zeina: Por ora, não. E essa história de falar que é apenas o mercado financeiro [tenso] não é verdade. Estamos vendo o setor produtivo também preocupado, o que é bom e diz algo sobre o país. É importante entendermos que não se resume a mau humor de mercado financeiro. Tem uma preocupação do setor privado em duas frentes. Uma é: o que vai ser o ambiente macroeconômico? Porque esses ruídos todos, além de um ambiente macroeconômico pior, com equilíbrio de pior qualidade se houver descuido na parte fiscal, significa ambiente de pior qualidade com juros maiores, além de mais volátil. A própria volatilidade do câmbio já é veneno para o setor produtivo. Impacta investimento, a gestão das empresas no dia a dia. E, além disso, o que percebo é o medo de retrocessos na agenda microeconômica.
Valor: A senhora comentou que a questão da PEC machucou a reputação do governo desde o início.
Zeina: A minha leitura é que pensaram assim: “Vamos tentar esticar a corda o máximo possível na PEC e depois definir o ministro, porque daí o ministro não entra com esse passivo. É o jogo que recomeça”. Acho que foi de propósito, para poder preservar o ministro. Mas, como tudo na vida, isso tem seu custo. Porque toda a discussão da PEC, que é a negociação política sem o cuidado da técnica, prejudica a construção de credibilidade. Se a intenção é não prejudicar tanto o próximo ministro, para ele surgir com passivo menor, não quer dizer que não há passivo algum porque mostrou-se um DNA ali, que é a inclinação para uma política mais é expansionista. É uma estratégia com riscos envolvidos, que enfraquecer essa construção de reputação pois está se descolando a decisão política da técnica.
Valor: Como vê o nome de Fernando Haddad?
Zeina: Já tivemos ministros com essa musculatura de formulador de política, como o Pedro Malan. Tivemos o Palocci, que não era formulador, mas montou um time de formuladores e que tinha muita habilidade política. O [Henrique] Meirelles também montou um time. Apesar de ser político, não era alguém com grande penetração no Congresso, mas teve um time. Teremos de olhar para qual será esse time de formuladores de política. Dará continuidade, aproveitará os estudos avaliação de política pública no Ministério da Economia para usá-los como um guia para a tomada de decisão? Porque tem muito trabalho ali, temos um corpo técnico importante no ministério. Aproveitará e topará essas reformas? E na agenda microeconômica também. Não vejo preocupação do PT com ela, mas vejamos quem tocará. Entender quem são os técnicos será importante. O que estou dizendo é: o assunto continua. Se houvesse ali um ministro com perfil técnico, essa dúvida sobre quem tocará essas agendas, quem serão os formuladores, seria menos importante. Porque todo mundo falaria: “Bom, mas se esse ministro está lá, haverá gente com esse perfil”. Com Haddad, o time técnico faz diferença. E aqui há uma preocupação: será que conseguiremos atrair nomes depois dessa discussão sobre a PEC? Será que, do ponto de vista de atração de talentos para o time econômico, a discussão não enfraquece? Temo que não seja neutro.
Valor: A senhora afirmou que colocar o Bolsa Família fora do teto é ruim, porque pode tirar incentivo de calibragem do programa. Seria factível ficar dentro do teto?
Zeina: Está para lá de consensual que tem um problema sério de desenho no Auxílio Brasil, e o próprio PT reconhece isso. O time de transição sabe que há problemas com o Cadastro Único. O adequado seria pedir esse adicional fora do teto, considerando prazo de alguns meses para ter boa atualização do Cadastro Único e o tempo necessário para os ajustes no programa. Até lá, manter o benefício de R$ 600, mas sem o adicional de R$ 150. Poderia ser [feito] com um crédito extraordinário usando a cláusula de escape do teto. E a justificativa seria: o governo anterior fez um programa cuja interrupção pode ter custo social muito elevado, mas não tem há recurso previsto no orçamento. Para evitar que ninguém sofra, vamos manter como está, atualizando o CadÚnico. Mas isso por alguns meses, até que se tenha a reformulação do programa.
Fonte: Valor Econômico

