O atraso do Drex, projeto de tokenização do real, e a regulamentação das “stablecoins” no Brasil abriram uma janela para emissores privados de moedas digitais lastreadas no real, segundo executivos de três dos maiores projetos do setor: BRL1 (consórcio que inclui a Cainvest), BRLA (Avenia) e BRZ (Transfero).
Em entrevistas ao Valor, eles apontam que o recuo do Banco Central (BC) em avançar com a rede de registro distribuído (DLT) no âmbito do Drex, somado a regras mais claras para emissores privados, pode acelerar a adoção dessas stablecoins. Com isso, seria possível desenvolver um ecossistema de pagamentos e liquidez privado, que já movimenta bilhões de reais por mês, em oposição a um padrão estatal para a tokenização de ativos.
Charles Abdoulafila, CEO da Cainvest, que é membro do consórcio BRL1, afirma que a sincronia entre o freio no Drex e a chegada da regulação não é coincidência. Para ele, os próprios bancos participaram do Drex e perceberam que uma stablecoin privada poderia cumprir as mesmas funções da infraestrutura do BC com mais flexibilidade. “Os grandes players entenderam o espaço do BRL1 para ser como um Drex”, diz.
Segundo Abdoulafila, a regulação era o principal gargalo. Enquanto não estava publicada, travava o mercado. Mas o Drex, mesmo atrasado, ajudou a sinalizar ao setor financeiro que a programabilidade de contratos inteligentes e a liquidez digital seriam essenciais na próxima fase da economia tokenizada. Agora, afirma, o BRL1 está colhendo essa mudança de percepção. “A stablecoin superou R$ 1 bilhão em circulação”, diz.
O executivo destaca ainda que o Drex abriu espaço para contratos inteligentes que finalmente se tornam casos de uso reais. Com eles, provedores de liquidez podem automatizar caixas, reduzir a ineficiência e ajudar plartaformas a equilibrar preços. Além disso, a interconectividade entre plataformas, como a ponte entre Bitso, Foxbit e MB (Mercado Bitcoin), todas participantes do consórcio, resolve um problema antigo: movimentar reais entre corretoras sem passar pelos bancos. “É distribuição de liquidez”, resume.
Para Abdoulafila, o vácuo deixado pelo Drex fortalece especialmente modelos descentralizados de governança, como o consórcio do BRL1. E a regulação, afirma, tende a expulsar aventureiros do mercado. “Quando você compra stablecoin, você deu dinheiro na nossa mão. É correto que o governo olhe”, diz.
Enquanto isso, a Avenia segue outra estratégia. Seu fundador, Leandro Noel, explica que a empresa decidiu não participar do Drex para focar recursos no desenvolvimento do BRLA. O motivo é simples: iniciativas públicas avançam devagar, enquanto o mercado já demandava aplicações reais. Em setembro, o BRLA movimentou mais de R$ 1 bilhão, número que só cresceu desde então.
Noel afirma que 90% das carteiras (wallets) únicas ligadas a stablecoins de real hoje pertencem ao BRLA, uma demonstração da força dos casos de uso. Diferentemente da BRL1, que é focada nos traders, a BRLA se ocupou de soluções de pagamento, inclusive para turistas no Brasil. Tudo graças à interoperabilidade com o Pix, que permite que visitantes possam pagar em reais usando saldo em dólares, pesos ou outras moedas, com liquidação em segundos. Só essa frente, segundo o executivo, gera dezenas de milhares de transações por dia.
Esse avanço, diz Noel, aumentou ainda mais após a mudança de rota do Drex. Sem uma plataforma pública padronizada, aplicações privadas ganham espaço para se tornar a camada de infraestrutura da economia tokenizada. O executivo compara o movimento ao modelo da Stripe, que cresceu ao permitir que empresas construíssem produtos financeiros sobre sua base tecnológica. “O vácuo que o Drex deixou traz oportunidade nessa frente”, afirma.
A Avenia agora mira um modelo de Banking as a Service (BaaS) totalmente regulado. A ideia é ser a “face regulada” para empresas estrangeiras operarem no Brasil sem enfrentar a burocracia local. A regulação das stablecoins, embora exija capital alto e processos rigorosos de compliance, é vista como um passo necessário para destravar o setor. “O regulatório é muito mais complexo do que o técnico”, destaca Noel.
Para a Transfero, que mantém o BRZ, a discussão passa também por outro ponto: a inviabilidade técnica e política de uma moeda digital de banco central (CBDC) plenamente operacional. Guilherme Murtinho, fundador e CMO da empresa, afirma que o BC teve um papel pioneiro no mundo ao propor o Drex, mas acabou esbarrando em contradições. “Não dá para conciliar controle com os benefícios da descentralização”, diz.
Com isso, o Drex perde força, ao passo que stablecoins privadas avançam globalmente, afirma. O BRZ, criado há seis anos, tornou-se ponte internacional para operações em reais fora do país e já é usado em transações de commodities, combustível e agronegócio. Murtinho afirma que o setor privado tende a vencer porque oferece liquidez e facilidade de uso.
Sobre a regulação, Murtinho vê méritos, mas alerta para riscos. A exigência de capital mínimo, por exemplo, poderia eliminar startups e desestimular inovação. Além disso, o executivo acredita que o BC ainda não esclareceu pontos básicos, como se a troca de reais por uma stablecoin de real deve ser tratada como operação de câmbio.
“Há muita pergunta sem resposta”, afirma o executivo. Ainda assim, ele reforça que a Transfero seguirá todas as normas e prepara o BRZ para padrões internacionais, como os definidos pelo “Genius Act”, marco americano do setor.
Fonte: Valor Econômico

