Experiência que estrangeiros trazem na bagagem e soft skills de quem luta para criar vida nova no Brasil são aproveitadas por empresas que abrem portas a eles
Por Paulo Muzzolon — Para o Valor, de Maringá
15/12/2023 05h01 Atualizado há 3 dias
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Empresas que abriram suas portas para as pessoas que buscam refúgio no Brasil vêm descobrindo que eles trazem na bagagem experiências, habilidades e potenciais capazes de proporcionar ganhos à atividade. A variedade de costumes, línguas e experiências mostra que – assim como diferenças de gênero, cor e classes sociais são benéficas para os negócios – as múltiplas origens também agregam, colocando a migração na pauta da diversidade. Refugiados, por sua vez, fazem das portas abertas um recomeço e se esforçam para não deixar a oportunidade escapar.
“Para eles, essa oportunidade é a oportunidade da vida. Quando vemos empresas que contratam refugiados, vemos índices de turnover mais baixos, pessoas que conseguem se integrar e crescer na carreira”, afirma Samantha Federici, head de parcerias com o setor privado do Acnur Brasil, a agência da ONU para refugiados. “Pessoas que vieram de outras realidades, que tiveram que passar por tudo o que passaram na vida, têm outro preparo em termos de soft skills e de capacitação”, continua.
Ao contrário de migrantes que viajam por escolha própria, aqueles em situação de refúgio abandonam seus lares por questão de sobrevivência e, na maioria das vezes, chegam ao país de destino sem saber o que os aguarda – nem como recomeçar. O Acnur atua em Roraima com abrigo e auxílio na regularização da documentação, entre outros, para os cerca de 400 venezuelanos que cruzam diariamente a fronteira fugindo da crise no país. Como o Estado tem pouca oferta de trabalho a agência também procura empresas que possam oferecer vagas em outras regiões do Brasil, em um processo de interiorização dos refugiados.
Uma dessas parcerias, com a Riachuelo, possibilitou a reinserção no mercado a 140 venezuelanas no ano passado por meio do Programa Recomeço. O trabalho envolve a preparação dos gestores para receber quem vem de fora e apoio de instituições locais, que auxiliam na adaptação, o que envolve moradia, matrícula dos filhos em escolas, acesso a saúde etc. “Ao mesmo tempo que você dá uma condição de vida digna, que você dá um emprego digno para essa pessoa, ela precisa de um tempo para conseguir se inserir socialmente etc. Enquanto isso não acontece, ela tem toda essa rede de apoio”, afirma Valesca Magalhães, diretora de sustentabilidade e comunicação interna da varejista.
Renovado neste ano, o programa da Riachuelo foi aberto para outras nacionalidades. Entre venezuelanos, cubanos e sírios, o grupo de já contratados inclui afegã Sultana Mohammadi, 26, que chegou ao Brasil em 29 de novembro de 2022. A ascensão do Talibã ao poder interrompeu o sonho da jovem que havia concluído o curso de direito e que então trabalhava na polícia de Cabul, capital do Afeganistão. A mudança de regime tornou impossível seguir a vida.
“Quando uma mulher quer trabalhar, é difícil. E quando a mulher é policial, é mais difícil”, diz ela. “Entraram em nossa casa, procuraram coisas, fizeram perguntas”, conta, se esforçando para encontrar as palavras certas em português, que fala ainda com certa dificuldade. A perseguição obrigou a família toda a fugir: ela, os pais, quatro irmãos, uma irmã e um sobrinho. Moram em um abrigo em Poá (grande São Paulo) com outras 14 famílias afegãs, depois de terem passado 15 dias no aeroporto de Guarulhos. A história é dolorida, mas hoje Sultana comemora com um sorriso seu primeiro emprego no Brasil. Há pouco mais de dois meses ela é recepcionista na sede da Riachuelo, em São Paulo. E mesmo a barreira do idioma tem sido superada. “Essa experiência está sendo maravilhosa para mim. Muitas pessoas me ajudam. Quando falo que sou do Afeganistão, ficam felizes, sorrindo”, afirma.
A diretora de RH explica que, no processo de seleção, é comum encontrar pessoas com mais experiência e/ou formação, caso de Sultana. Normalmente, nas lojas, novos profissionais começam em vagas como auxiliar de estoque ou assistente antes de irem para vendas, afirma. “Mas tivemos vários casos de pessoas entraram direto como vendedoras”, diz.
Vemos pessoas que conseguem se integrar e crescer na carreira”
— Samantha Federici
De acordo com instituições que atuam com refugiados, há muitos deles com curso superior e que acabam se conformando com cargos de nível médio em face das dificuldades para se reconhecer o diploma estrangeiro no Brasil e porque precisam de um emprego imediato. Mesmo assim, empresas têm conseguido aproveitar esse conhecimento. “Temos casos de empresas que criaram vaga a partir dos skills da pessoa”, afirma Federici.
A Prati-Donaduzzi, líder na produção medicamentos genéricos sediada em Toledo (PR), demanda que operadores de máquinas tenham conhecimento do português porque o setor em que atua é muito regulado. Também não pode colocar um bioquímico estrangeiro sem revalidação do diploma em um cargo que exija o curso. “Mas posso aproveitar muito seu conhecimento em um posto técnico”, afirma Diones Wolfart, diretor de RH da empresa, que já contratou 42 migrantes. “Eles são muito comprometidos com o trabalho”. O executivo estima ainda que a rotatividade entre refugiados é igual ou menor que a dos brasileiros.
Outra empresa que procura aproveitar o conhecimento dos refugiados que contrata é a JBS, que mantém um posto de recrutamento em Boa Vista. “Como temos muitas funções que vão desde o campo até a área comercial, para nós é muito importante saber onde a pessoa tem mais habilidade para direcioná-la melhor”, diz Fernando Meller, diretor executivo de RH da companhia. Alguém com formação na área de exatas pode ocupar um posto que faça cálculos de rendimento, de produtividade e de custo, exemplifica.
Cerca de 21% dos 43 mil funcionários da Aurora Coop, sediada em Chapecó (SC) vêm de 18 países diferentes, a maioria da Venezuela e do Haiti. “São pessoas que vieram para cá em busca de uma nova oportunidade e se propuseram a iniciar por baixo e buscar um crescimento no tempo. Já tivemos haitianos que se formaram na Universidade da Fronteira Sul”, diz o gerente corporativo de RH da cooperativa, Nelson Paulo Rossi. O executivo concorda que a presença de estrangeiros traz ganhos para o ambiente interno, contribuindo para que todos os trabalhadores “possam ter uma visão um pouco diferente do mundo”. A cooperativa colocou a inclusão e a ambientação de estrangeiros em seu programa de diversidade. “Abrimos um novo espaço para que pudéssemos ajudar essas pessoas a terem uma condição um pouco melhor e que elas possam atingir aquilo que vieram buscar aqui”, diz.
A experiência da Karsten, de Blumenau (SC), mostra que o trabalho se torna mais rico quando pessoas de diferentes origens dividem o mesmo ambiente. “Elas têm um sentimento de gratidão por poderem estar reconstruindo a vida. Isso de alguma forma contamina positivamente a empresa como um todo. Não dá para medir, mas é perceptível”, diz Carla Fernanda de Oliveira, coordenadora de atração e desenvolvimento humano da Karsten. Ela cita o caso de um funcionário da linha de produção que cursava o sexto ano de medicina quando deixou a Venezuela, e que toca violino sempre que há eventos internos na companhia. “São coisas de suas culturas que eles trazem para dentro da empresa”, afirma. “Temos o hábito de reclamar por qualquer coisa, né? Eles passaram por tanta coisa, e estão aí firmes, fortes e alegres, procurando começar do zero novamente.”
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Fonte: Valor Econômico