Uma colaboração de pesquisadores de diversas instituições americanas publicou no periódico Science Advances estudo que descreve a criação de um novo tipo de antiviral, que se mostrou capaz, em laboratório, de combater diversos tipos de vírus ao mesmo tempo. Essa tecnologia, inédita, pode vir a ser fundamental em futuras pandemias.
Já existem há tempos antibióticos de amplo espectro, que permitem tratar infecções bacterianas mesmo antes de identificar qual a bactéria envolvida. Há vários antibióticos que são eficazes contra bactérias diferentes, porque atuam em estruturas comuns, que muitas bactérias compartilham. Diversas espécies têm paredes celulares com a mesma composição, ou ribossomos (estruturas que produzem proteínas) do mesmo tamanho. Essas comunalidades servem de alvo para os medicamentos que não afetam células humanas e causam poucos efeitos colaterais. E bactérias são seres independentes, não dependem da célula humana para se replicar.

Já os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios. Dependem demais da célula hospedeira, o que dificulta criar medicamentos que também não prejudiquem na atividade celular do paciente.
Os antivirais que existem hoje costumam ser bem específicos. O tamiflu, por exemplo, é um antiviral que só serve para o vírus da gripe. Outros, como remdesivir e monulpiravir, que foram bastante utilizados durante a pandemia de Covid-19, apresentam espectro de ação maior, contra vários tipos de vírus de RNA.
Mas, mesmo nestes casos, os alvos são proteínas com alta taxa de mutação, o que aumenta a probabilidade de haver versões do vírus resistentes ao medicamento. Para bactérias, como os alvos são estruturas muito estáveis, essa probabilidade é bem menor. Uma parede celular de bactéria não varia muito. É um alvo mais constante.
Achar um antiviral de amplo espectro é, portanto, um imperativo para enfrentar pandemias futuras. Vacinas são específicas para cada doença, e demoram para ser desenvolvidas. Os antivirais atuais são específicos e sujeitos a perder eficácia por causa de variações e mutações. Um antiviral de amplo espectro pode, em teoria, dar conta de diversos tipos de vírus diferentes, desde que tenham um mecanismo comum. E, de preferência, que esse mecanismo comum não pertença também à célula humana.
O novo estudo usou, como alvo, moléculas de açúcar na superfície de vírus “envelopados”, que têm esse nome porque contam com uma camada de proteção externa. Esses açúcares são comuns a vários vírus do tipo e são bem conservados. Entre os vírus envelopados estão os grupos mais prováveis de causar epidemias e doenças graves em humanos.
Os autores identificaram 57 moléculas que ligam nesses açúcares, chamadas “receptores sintéticos de carboidratos”, ou SCR, no acrônimo em inglês. Esses receptores conseguiram mitigar infecções causadas por Ebola, Marburg, Nipah, Hendra e os coronavírus que causam Covid-19 e Mers, em testes feitos com partículas de pseudovírus. Dois SCR foram selecionados para testes em camundongos, geneticamente modificados para serem especialmente suscetíveis à Covid-19.
O teste teve alta taxa de sucesso e baixa toxicidade: ambos os compostos reduziram drasticamente a carga viral nos camundongos, assim como sintomas de doença grave a morte. Com uma das moléculas, a taxa de sobrevivência do grupo de camundongos tratado com o antiviral foi de 90%. No grupo controle, todos os animais morreram.
E uma boa surpresa: dois compostos foram eficazes também contra rotavírus, que não tem envelope, mas apresenta alguns açúcares parecidos na superfície. Os resultados ainda são preliminares, com poucos testes feitos em animais, e só em camundongos. Como prova de conceito, no entanto, o trabalho é extremamente relevante e com potencial de levar a um medicamento de amplo espectro contra vírus, um aliado essencial para a linha de frente de combate a novas emergências e pandemias.
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Fonte: Folha de São Paulo