Por Anaïs Fernandes — De São Paulo
01/02/2024 05h00 Atualizado há 4 horas
Ainda longe de atingir as ambiciosas metas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, alguns especialistas em contas públicas e economistas de bancos e gestoras de peso têm reconhecido a possibilidade de o rombo ficar mais ao redor de 0,5% do PIB, menor do que o consenso do mercado projeta atualmente.
A mediana do boletim Focus, pesquisa do Banco Central com agentes financeiros, indica um déficit de 0,8% do PIB em 2024 para o setor público consolidado, que, além do governo central (Previdência, Tesouro Nacional e Banco Central), inclui Estados, municípios e estatais.
O BTG Pactual, que tem como economista-chefe o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, projeta um déficit de R$ 80 bilhões (0,7% do PIB) para o governo central neste ano. Considerando o resultado de Estados e municípios – conceito mais relevante para a trajetória da dívida pública, segundo Mansueto -, o rombo será menor, de R$ 63 bilhões (0,5% do PIB).
“O principal para vermos recuperação do primário dos entes subnacionais é que muitas medidas aprovadas recentemente são relacionadas a Imposto de Renda, e o IR divide quase meio a meio com eles”, diz ao Valor Fábio Serrano, economista do BTG especializado em fiscal. “Pelas contas do governo, são R$ 169 bilhões de novas medidas aprovadas; cerca de R$ 66 bilhões são diretamente de IR, então, vai pingar um dinheiro grande na conta dos Estados e municípios”, afirma Serrano, observando também que vários Estados aumentaram o ICMS.
Com isso, diz, os municípios até podem gastar mais por causa do ano eleitoral, mas haverá uma reposição de receitas também.
Em seu relatório de avaliação mensal, Mansueto reafirma que mesmo a expectativa de déficit do banco está “muito acima da meta ‘zero’ estabelecida pelo governo”.
Para 2024, diz, o desempenho da arrecadação será peça-chave. O BTG assume R$ 105 bilhões em receita adicional dos projetos aprovados em 2023 e cerca de R$ 30 bilhões da Medida Provisória 1.202, que inclui temas como as reonerações das folhas de pagamento do setor público e privado e o fim do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). O banco pressupõe ainda que a meta de primário não será alterada, levando a um contingenciamento de R$ 23 bilhões.
Mansueto diz, no relatório, não descartar que os números fiscais sejam melhores do que os projetados, mas pondera que, no momento, há elevada incerteza em relação ao potencial de arrecadação de algumas medidas.
“Governo foi bem-sucedido em avançar com subvenções” — Fábio Serrano
Segundo Serrano, existe um grupo de estimativas para as quais o governo foi muito conservador, como nas medidas sobre subvenções, taxação de fundos exclusivos e apostas on-line.
No caso dos fundos fechados, houve taxação de 8% sobre os rendimentos passados, paga em quatro parcelas mensais. A primeira foi em dezembro, e a Receita Federal informou uma arrecadação de R$ 3,9 bilhões relativos a essa parcela. “Se multiplicar por quatro, vão ser quase R$ 16 bilhões vindos dessa medida; o governo tinha R$ 13 bilhões”, observa Serrano.
Além disso, lembra, passou a incidir sobre fundos fechados o “come-cotas”, antecipação do IR que fundos abertos já pagam. Em reportagem do Valor, Marcelo d’Agosto, coordenador do Guia Valor de Fundos, estimou que o “come-cotas” dos exclusivos rendeu R$ 8 bilhões ao fisco em dezembro.
“O dado da Receita já está confirmando a percepção de que, nessa linha, o governo foi muito conservador. O total de ativos sob gestão nesse tipo de fundo é de R$ 710 bilhões. Minha ideia já era que essa ‘torta’ é muito grande e a arrecadação tende a ser maior do que o governo estima”, afirma Serrano.
Ele diz ter a mesma percepção sobre a taxação de fundos offshores, que administram ativos financeiros no exterior de pessoas físicas residentes no Brasil.
No caso da lei da subvenção do ICMS, que alterou regras de tributação de incentivos fiscais concedidos a empresas pelos Estados, o governo espera arrecadar R$ 35 bilhões; o BGT estima R$ 43 bilhões.
Serrano diz ter a impressão de que o governo foi muito bem-sucedido em avançar com uma proposta desidratando “pontos meio laterais”, mas mantendo o núcleo. A grande dúvida, segundo ele, é se haverá judicialização ou não e como alguns pontos da medida conversam com decisões antigas do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Sobre a tributação das apostas esportivas on-line, Serrano observa que mais de 130 empresas já se apresentaram para declarar interesse na regularização, o que deve gerar R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões só de outorga, enquanto o governo previa R$ 1 bilhão para a medida no total. “Ou seja, nessas medidas em que dá para fazer conta, me parece que o governo foi conservador, talvez, até para ajudar na negociação”, resume Serrano.
Por outro lado, ele diz considerar que há um grupo de medidas sobre as quais o governo foi otimista demais nas estimativas de arrecadação. Uma delas é a lei que muda as regras de funcionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fazendários (Carf), órgão que julga disputas entre contribuintes e o governo federal em relação ao pagamento de impostos.
“Vemos, pelas notícias, que o governo fala em destravar R$ 1 trilhão, mas esse é o valor dos processos em estoque. Não significa que vai entrar isso no cofre do Tesouro. Cerca de dois terços desses valores que circulam na imprensa são multas e juros e seriam cancelados”, explica Serrano.
Além disso, ele diz que há uma questão de “timing”. “Até passar por todos os processos e virar dinheiro na planilha do governo, acho que demora mais do que um ano. De 2025 para frente, isso se regularizaria e, aí, começaria a arrecadar mais”, afirma. O governo projeta R$ 55 bilhões em arrecadação neste ano com a medida do Carf, e o BTG, R$ 15 bilhões.
Outra medida que gera dúvida, segundo Serrano, é a mudança nas transações tributárias, acordos entre contribuintes e a administração tributária para extinguir litígios. “Depende da disposição da empresa de negociar e pagar”, diz.
Para Serrano, eventuais surpresas com a arrecadação, em relação a suas projeções, viriam dessas medidas sobre as quais o banco está mais pessimista. “Nesses dois temas, é um jogo mais político e jurídico do que numérico. Estou deliberadamente mais conservador e a surpresa pode vir daí”, afirma.
As projeções do BTG Pactual também não incluem nenhum ganho de arrecadação com a nova lei para preços de transferência – usados em transações internacionais entre empresas relacionadas, como uma matriz no exterior e a filial brasileira – ou a eventual taxação de importações de pequeno valor. “Pode ser que tirem essa carta da manga”, afirma Serrano.
Raí Chicoli, especialista em finanças públicas e economista-chefe da Citrino Gestão de Recursos, também trabalha com uma arrecadação maior do que o governo, por exemplo, nos fundos fechados, de R$ 25 bilhões, e prevê R$ 10 bilhões com o Carf em 2024.
Chicoli projeta déficit de 0,5% do PIB para o setor público consolidado em 2024, já considerando a continuidade da desoneração da folha de 17 setores privados.
Surpresas no sentido de mais receita podem vir, segundo ele, das arrecadações relacionadas ao petróleo, principalmente se a situação no Oriente Médio ficar ainda mais tensa e o preço do barril subir. “Tem uma contribuição gigantesca de royalties de petróleo, participação especial. Nessa conta, diria que tem um risco para cima na arrecadação. Pode ser uma ajuda importante”, afirma.
A projeção da Citrino é baseada em uma expectativa de crescimento de 1,5% do PIB do Brasil em 2024, mas Chicoli reconhece que, hoje, esse número parece mais próximo de 1,7% ou 1,8%. “Não é muita diferença, mas tem uma elasticidade boa na relação entre PIB e arrecadação, acho que pode dar alguma ajuda a mais”, diz.
A composição desse crescimento também deverá ser mais favorável à arrecadação de receitas, apesar da desaceleração da atividade global, apontam David Beker e Natacha Perez, do Bank of America (BofA), em relatório. Eles projetam déficit de 0,4% do PIB em 2024.
A perspectiva de que o PIB do Brasil deve crescer 2,2% em 2024 é premissa importante para a BB Asset, maior gestora de recursos do país, também projetar déficit de 0,5% do PIB em 2024. A mediana do Focus indica crescimento da atividade de 1,6% neste ano.
“Como temos um PIB mais forte, a arrecadação já é maior. E também percebemos um PIB potencial do Brasil maior do que outros estimam”, afirma José Maurício Pimentel, economista-chefe da BB Asset, citando ainda a relevância cada vez maior do petróleo para as contas públicas.
Apesar da projeção de déficit abaixo do consenso, o quadro fiscal do Brasil é “bem preocupante”, diz Chicoli. “Na nossa conta, temos vários anos de déficits primários, talvez com uma reversão lá para 2028. E em um contexto em que temos o governo fazendo o ajuste apenas pelo lado da receita, o que é uma limitação grande”, afirma.
Pimentel reconhece as dificuldades no cenário fiscal. “Existe toda uma ação no sentido de equalizar as contas públicas pelo lado da receita. Sabemos todas as limitações que esse processo tem, de decisões que são também políticas”, afirma. A situação do Brasil, em relação a outros emergentes, no entanto, é melhor, aponta.
“O fiscal é importante, precisamos acompanhar, sabemos os impactos sobre a inflação. Mas o Brasil está fazendo seu dever de casa, há compromisso em se cumprir o arcabouço. Se não tiver nenhuma grande mudança no cenário global, entendemos que, no médio prazo, a dívida tende a estabilizar.”
Fonte: Valor Econômico

