Por Sergio Lamucci, Valor — São Paulo
14/02/2023 08h57 Atualizado há 39 minutos
Em pouco menos de 45 dias de governo, os ataques do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Banco Central (BC) pioraram significativamente as expectativas para os índices de preços e levaram os juros de longo prazo a se consolidar em níveis altos e insustentáveis, na casa de 6,5%, descontada a inflação.
A própria existência do risco fiscal passou a ser questionada, embora seja evidente pelo nível elevadíssimo dos juros longos. A autonomia do BC, um passo importante para evitar a politização da política monetária, passou a ser pesadamente atacada. O resultado de tanto ruído e pressão política não diminuiu as incertezas sobre as contas públicas, pelo contrário, além de tornar mais óbvia a vantagem de um BC autônomo.
Num momento de desaceleração da economia e de um comportamento mais favorável da inflação, formando um quadro mais propício à queda da Selic, a deterioração das projeções para o IPCA se torna um obstáculo ao corte de juros. O debate sobre uma eventual mudança das metas de inflação, que é legítimo, começou a ser feito num ambiente politizado, em primeiro lugar pelo próprio Lula.
Nesse cenário, alterar o alvo a ser perseguido pelo BC se torna uma operação arriscada, que pode levar a uma piora adicional das expectativas de inflação, fazendo os juros ficarem mais altos por mais tempo e afetando ainda mais a atividade econômica.
O comportamento dos juros dos títulos do Tesouro corrigidos pela inflação deixa clara a piora da percepção sobre as contas públicas. A deterioração não começou com o governo Lula. Ela se acentuou com as Propostas de Emenda à Constituição (PEC) apresentadas pelo governo de Jair Bolsonaro para elevar despesas. Começou com a PEC dos Precatórios, no fim de 2021, e se intensificou com a PEC Kamikaze, em meados de 2022. As duas jogaram por terra a credibilidade do teto de gastos.
Desde o quarto trimestre de 2021, as taxas dos papéis atrelados ao IPCA que vencem em 2045 e 2050 oscilam na casa de 5,5% a 6,5%. Em 2019, quando o teto não havia sido driblado várias vezes, estavam abaixo de 3,5%. Uma taxa de juros de longo prazo na casa de 6,5%, descontada a inflação, como observado nas última semanas, é insustentável. São níveis de juros que exigem superávits primários muito elevados para estabilizar a relação entre a dívida bruta e o PIB, além de obviamente afetar o ritmo de crescimento, como sempre ressalta o ex-presidente do BC Affonso Celso Pastore.
O teto de gastos serviu para dar previsibilidade para a trajetória da dívida, ainda que tivesse problemas, como uma rigidez excessiva. Para resolver o problema, cabe ao novo governo apresentar uma nova regra fiscal que seja crível, mostrando que haverá uma tentativa de controlar a expansão dos gastos obrigatórios. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, diz que essa será uma das prioridades do governo no primeiro semestre, devendo apresentá-la até abril. A disposição é positiva, mas, enquanto não se conhecem detalhes sobre a proposta da Fazenda, as incertezas fiscais não desaparecem. O pacote revelado por Haddad em janeiro para reduzir o déficit primário se concentra no lado das receitas, e há dúvidas se várias das medidas serão concretizadas. O resultado primário mostra a diferença entre receitas e despesas, excluindo gastos com juros.
Os argumentos para mostrar que o problema fiscal não é desprezível têm sido repisados, mas vale repeti-los. Os fatores que levaram a dívida bruta em 2022 a ficar em 73,5% do PIB, abaixo dos 78,3% do PIB do fim de 2021, não devem voltar a ocorrer neste ano. A inflação elevada ajudou a elevar o PIB em termos nominais, os preços de commodities altos ajudaram na arrecadação e o forte efeito da reabertura da economia, especialmente no setor de serviços, ficou para trás. Além disso, os gastos com juros serão mais elevados, contribuindo para piorar a trajetória da dívida. Para completar, haverá pressão para aumentos de salários do funcionalismo, depois de um período prolongado de congelamento.
A dívida brasileira é mais alta do que a média dos emergentes, estimada em 65,1% do PIB para 2022 pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Pelo critério do FMI, aliás, a dívida brasileira é ainda mais alta – a projeção para 2022 era de 88,1% do PIB, segundo o Monitor Fiscal, divulgado em outubro do ano passado. O Fundo considera os títulos do Tesouro na carteira do BC em seus cálculos para a dívida bruta brasileira, o que é excluído pela contabilidade da autoridade monetária brasileira. Sem saber qual é a regra fiscal que vai substituir o teto de gastos, o cenário para estimativas sobre a dívida pública fica nebuloso.
Com a ladainha que contrapõe responsabilidade fiscal e responsabilidade social, Lula tem aumentado as incertezas sobre as contas públicas do país. Culpar o mercado não resolve o problema do crescimento dos gastos obrigatórios e ainda atrapalha os esforços da Fazenda e do Planejamento para tentar mostrar o compromisso do governo com uma política fiscal responsável.
Os ataques ao BC autônomo também só atrapalham. A instituição promoveu um forte ciclo de alta dos juros entre março de 2021 e agosto de 2022, que levou a Selic de 2% para 13,75% ao ano. A proximidade do presidente do BC, Roberto Campos Neto, com o governo de Jair Bolsonaro não o impediu de promover um aperto monetário duro num ano eleitoral e no ano anterior ao pleito presidencial.
A inflação tem dado sinais mais favoráveis, como mostrou o IPCA de janeiro, que ficou em 0,53%. A média dos cinco núcleos mais acompanhados pelo BC desacelerou de 0,66% em dezembro de 2022 para 0,52% no mês passado. Os núcleos buscam eliminar ou reduzir a influência dos itens mais voláteis, para diminuir o impacto dos choques sobre a trajetória dos preços. Em 12 meses, porém, a média desses cinco núcleos ainda está em 8,73%, muito acima da meta de 3,25% deste ano. A inflação de serviços subjacentes, uma medida que concentra os itens mais sensíveis à demanda, ainda não é das mais confortáveis. No IPCA, esse conjunto de itens, que exclui os grupos de serviços domésticos, turismo, cursos e comunicação, subiu 0,58% em janeiro, acima de 0,46% do mês anterior. Em 12 meses, ainda acumula alta de 8,53%.
Com a atividade em desaceleração e juros elevados, a inflação deve continuar a perder força, o que abre espaço para o BC começar a cortar os juros. No entanto, o ruído provocado por Lula e outros líderes do PT, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, só causa confusão e piora as projeções de inflação. Os juros no Brasil são altos, mas os índices de preços rodaram por quase um ano, entre setembro de 2021 e julho de 2022, acima de 10% no acumulado em 12 meses. O IPCA ficou abaixo de 6% no ano passado em boa parte por causa do efeito da redução dos impostos sobre itens como combustíveis e energia elétrica. Em 12 meses, os núcleos, como já foi dito, continuam próximos a 9%.
É válido questionar o nível da Selic, evidentemente, mas a inflação deve continuar bem acima da meta deste ano mesmo com os juros elevados. O consenso de mercado para o IPCA deste ano subiu da casa de 5,4% para 5,79% desde que Lula começou a criticar o BC – o alvo de 2023 é de 3,25%, com tolerância de 1,5 ponto percentual, para cima ou para baixo. As estimativas para 2024 e 2025 também se encontram acima da meta de 3% que vale para esses dois anos. As projeções para o ano que vem subiram na última semana de 3,93% para 4% e para 2025, de 3,5% para 3,6%, segundo o Boletim Focus. Expectativas de inflação de longo prazo que saem do controle dificultam a tarefa do BC de trazer o IPCA para a trajetória das metas.
Há, por fim, a discussão sobre o nível das metas no Brasil. De 2005 a 2018, o alvo definido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) era de 4,5%. A partir de 2019, ele declinou 0,25 ponto percentual por ano, até os 3% definidos para 2024 e 2025. Há um debate se 3% não é um nível muito baixo para um país como o Brasil, que tem problemas fiscais estruturais. Além disso, a economia global passa por um momento de inflação mais elevada, que pode durar um tempo considerável. Há quem defenda uma meta na casa de 4%, por exemplo. Discutir a mudança, desse modo, não é um absurdo.
O problema é fazê-lo num cenário em que Lula ataca o nível da meta e dos juros, criticando o presidente do BC e a autonomia da instituição, com o objetivo de obter uma redução no curto prazo da Selic. Se a meta for de fato elevada, um BC de fato autônomo não deverá cortar os juros na velocidade desejada pelo presidente e pelos petistas. O descontentamento com o BC tenderia a continuar, num quadro de expectativas de inflação ainda mais pressionadas.
Ontem, no Roda Viva, Campos Neto mostrou-se contrário à mudança da meta, afirmando que a medida pode ter o resultado contrário ao esperado. No programa, adotou um tom conciliador e disse que a sua atuação à frente do BC é técnica, à espera de uma trégua com o governo.
No entanto, à medida que saírem indicadores econômicos mostrando a desaceleração da atividade, a pressão de Lula e dos petistas sobre o BC tende a seguir forte. O presidente quer associar a fraqueza da economia à atuação da autoridade monetária, tentando se descolar da piora da atividade. Se os seus ataques e os do PT continuarem a piorar as expectativas de inflação e a elevar os juros futuros, porém, ficará mais difícil para o BC começar a reduzir a Selic. Negar o risco fiscal e atacar o BC não terá ajudado em nada.
Fonte: Valor Econômico