Três noites de protestos violentos em toda a França escancararam, mais uma vez, as fortes tensões sociais por que passa o país, em tempos de crescente polarização política.
As mais recentes manifestações mostram que as comunidades empobrecidas, etnicamente heterogêneas, continuam sendo um barril de pólvora pronto para explodir, dilaceradas por um sentimento de injustiça, discriminação racial e abandono da parte do governo. A baderna criminosa, embora chocante, não chegou ao grau da de 2005, quando mais de 10 mil automóveis foram incendiados e mais de 230 prédios públicos depredados em uma onda de violência que se estendeu por três semanas. Mas as autoridades, compreensivelmente, temem uma reedição do episódio.
A convulsão social desta semana, à semelhança da de 18 anos atrás, foi desencadeada pela morte de um adolescente não branco, após uma perseguição policial. O que difere, desta vez, é o poder das redes sociais de propagar a agitação. Além disso, a extrema-direita está mais forte agora do que em 2005. E desta vez o presidente Emmanuel Macron e seu governo tentaram acalmar as tensões, em vez de acirrá-las.
Em 2005, o então ministro do Interior Nicolas Sarkozy descreveu os jovens envolvidos nos distúrbios nos conjuntos residenciais da periferia de Paris como “ralé” da qual era necessário “se livrar”. Alguns dias depois, dois adolescentes, um originário da Mauritânia, outro da Tunísia, morreram eletrocutados ao se esconder da polícia em uma subestação de energia elétrica em um bairro periférico a nordeste da capital. Sarkozy e o então premiê, Dominique de Villepin, tomaram o partido da polícia e sugeriram que os dois garotos eram ladrões.
Desta vez, diferentemente, Macron descreveu os tiros disparados pela polícia contra um garoto de 17 anos originário do norte da África, quando ele tentava partir de carro em Nanterre, a noroeste de Paris, como “indesculpável” e “inexplicável”. O policial encarregado foi suspenso de suas funções, preso e será submetido a investigação por assassinato.
Macron foi atacado por opositores de direita e por sindicatos policiais por solapar a presunção de inocência — e acusado de trair a polícia. Mas a necessidade de intervenção da parte do presidente tornou-se incontornável quando um vídeo dos disparos apareceu nas redes sociais, contrariando abertamente um relato inicial de fontes policiais de que o agente tinha disparado a arma porque sua vida corria perigo. Demonstrar não tolerar a violência policial é um primeiro passo necessário, ainda que não suficiente, para restabelecer a ordem pública.
Alguns especialistas responsabilizaram uma lei aprovada em 2017, antes de Macron assumir o poder, pela morte a tiros de terça-feira. Ao que parece, a lei dá mais poderes à polícia de atirar contra um carro caso os ocupantes descumpram ordem policial e coloquem em risco a vida de um policial.
Os críticos de Macron ficarão tentados a argumentar que ele cedeu a uma força policial disfuncional, juntamente com seu ministro do Interior, o linha-dura Gérald Darmanin, calculando que agir de maneira diferente representaria fazer o jogo da extrema-direita. Mas não faltam evidências recentes das deficiências da polícia: uso excessivo da força durante as manifestações antigoverno; violência racista, como o selvagem espancamento de um produtor musical negro, captado pelas câmeras; deficiência no policiamento da ordem pública, como se viu na final da Liga dos Campeões do ano passado; crise de confiança da parte dos moradores locais, que poderia ser revertida com uma mudança para o policiamento comunitário. A polícia é mal-equipada, mas também maltreinada. O alto nível de apoio à extrema-direita entre os policiais também é preocupante.
As manifestações violentas são um lembrete dos problemas sociais e econômicos profundamente arraigados nas regiões mais pobres da França e do longo legado de negligência da parte do governo. Houve avanços desde que Macron assumiu o poder, em 2017, principalmente a queda do desemprego geral e entre os jovens. Mas a pobreza, a criminalidade, a discriminação racial e o subdesempenho educacional arraigados exigem mais atenção e mais recursos do governo, apesar do atual aperto das finanças públicas. O prometido plano Quartiers 2030 de Macron para essas áreas avança muito lentamente.
Nenhum desses problemas justifica a violência descontrolada. Alguns dos jovens do sexo masculino que combatiam a polícia nas ruas sentem uma raiva justificada; outros se limitam a saborear a emoção — e apreciam ainda mais compartilhá-la pelas redes sociais. Quanto mais os distúrbios se prolongarem, mais difícil será para o governo resistir a assumir uma atitude mais dura. Se eles se disseminarem, isso apenas ajudará a extrema-direita, que tem atualmente o impulso político e total interesse em evocar o espectro da desordem civil.
Fonte: Valor Econômico

