Por Gideon Rachman, Financial Times, Valor — São Paulo
28/11/2022 21h09 Atualizado
Em seu discurso no Ano Novo de 2021, o presidente chinês, Xi Jinping, alardeou o sucesso da política de covid zero da China. Enquanto milhões haviam morrido no exterior, a China havia “colocado as pessoas e suas vidas em primeiro lugar… Com solidariedade e resiliência, escrevemos a epopeia da nossa luta contra a pandemia”
Quase dois anos depois, a campanha de Xi para retratar o manejo da pandemia pela China como um triunfo pessoal e sistêmico está desmoronando. Os protestos contra a sua política de covid zero representam uma enorme perda de prestígio para o líder chinês. E parecem ser o desafio mais sério à sua liderança desde que ele assumiu o poder há uma década.
Parte dos protestos contra os “lockdowns” intermináveis da China visam Xi pessoalmente. Na cidade de Chengdu, manifestantes cantaram: “Não queremos um sistema político de líder vitalício. Não queremos um imperador”.
Esses cantos destacam a questão política mais delicada da China moderna: o esforço de Xi para criar um culto à personalidade. Desde a morte de Mao Tsé-Tung em 1976, o Partido Comunista evitou criar um novo Mao, o único líder todo-poderoso, que domine o sistema político e o país e não deixe o poder.
Mas Xi está levando a China de volta para esse domínio quase imperial. Um ponto de inflexão ocorreu no mês passado, quando o Congresso do Partido Comunista o nomeou para um terceiro mandato sem precedentes como líder. O antecessor de Xi na Presidência, Hu Jintao, foi retirado à força do palco diante das câmeras de TV. A mensagem foi clara. O poder de Xi agora é inatacável e ele deverá governar por toda a vida.
Como Mao, Xi justificou seu apego ao poder encorajando um culto à sua personalidade. “O pensamento de Xi Jinping” foi escrito na constituição do Partido Comunista chinês. A condução supostamente bem-sucedida da covid-19 tornou-se uma parte crucial de seu mito. Um estudo recente do Conselho de Estado da China elogiou a liderança de Xi na covid, dizendo que o “secretário-geral Xi Jinping assumiu o comando pessoal, planejou a resposta, supervisionou a situação e agiu decisivamente”.
É verdade que a China teve muito menos mortes por covid do que os EUA. Mas os custos de seguir uma política de tolerância zero com a covid são cada vez mais evidentes. Com a economia estagnada, o desemprego entre os jovens na China se aproxima dos 20%
A tensão social gerada pelos lockdowns longos e repetidos também tem sido imensa. Dois meses de duras restrições em Xangai neste ano ganharam as manchetes em todo o mundo. Alguns acreditaram que isso seria um ponto de inflexão, forçando Xi a repensar a política de covid zero. Mas, em vez disso, no Congresso do Partido Comunista, Xi promoveu o líder em Xangai, responsável pelo lockdown, Li Qiang, ao segundo cargo mais importante no partido. Foi um sinal de que não havia fim à vista para a política de covid zero.
Como parte do mito oficial em torno da covid-19, os líderes chineses contrastaram a paciência e o espírito coletivo da população chinesa com a impaciência e individualismo dos americanos. Mas até mesmo a população chinesa está perdendo a paciência.
As imagens de multidões pelo planeta assistindo a Copa do Mundo no Catar demonstraram à população chinesa que os cidadãos de outros países escaparam da armadilha dos lockdowns intermináveis. Já a China enfrenta a possibilidade de um quarto ano de restrições draconianas à liberdade.
Tendo reivindicado o crédito pela maneira como a China conduziu a pandemia na fase inicial, Xi não pode evitar a culpa pela crise atual. Acima de tudo, o fracasso em importar vacinas estrangeiras, mais eficazes, torna muito mais perigoso para a China relaxar seus lockdowns. Esse fracasso está ligado ao nacionalismo de Xi, que iniciou uma política “Made in China” para tecnologias importantes em 2015. Um líder que alega ter uma compaixão ilimitada pelo povo acaba se mostrando orgulhoso demais para importar vacinas eficazes que poderiam salvar vidas.
Os lockdowns da política de covid zero ainda são um reflexo da personalidade obstinada e do autoritarismo inato de Xi. Não passou despercebido aos manifestantes chineses que as tecnologias desenvolvidas para monitorar os movimentos das pessoas, em nome da luta contra a covid, poderão sobreviver à pandemia e se tornar um método sinistro e permanente de controle político e social.
De forma mais ampla, as falhas de Xi na covid-19 são falhas características do governo do homem forte, que concede poder demais e autoridade a um único líder. Assim que o homem forte toma uma decisão desastrosa — como fez Vladimir Putin quando invadiu a Ucrânia — o sistema não consegue mudar de rumo porque o julgamento do líder não pode ser colocado em dúvida. Esse mesmo padrão está acontecendo agora na China.
O momento em que os manifestantes saem às ruas é sempre de perigo máximo para um líder totalitário. Infelizmente, parece provável que todos os instintos de Xi serão responder com força e repressão. Foi assim que ele lidou com os protestos em Hong Kong em 2019. E foi assim que o Partido Comunista esmagou o movimento estudantil na Praça da Paz Celestial em 1989.
A repressão pode funcionar bem na China — como tem funcionado até agora em esmagar os protestos na Rússia, Irã e Belarus. Mas o mito cuidadosamente construído da sabedoria e poder de Xi poderá não sobreviver ao colapso de sua política de tolerância zero com a covid.
Fonte: Valor Econômico

