O que torna uma Presidência realmente histórica? Basicamente, ela requer uma ruptura radical com o passado — cujas consequências e premissas são, depois, aceitas e absorvidas pelos opositores políticos. Franklin Roosevelt fez isso com o “New Deal”. Lyndon Johnson fez isso com a Lei dos Direitos Civis. Ronald Reagan fez isso com as políticas de desregulamentação e de cortes tributários, hoje normalmente chamadas de neoliberalismo.
Os presidentes que se seguiram a Reagan basicamente aceitaram a filosofia de livre mercado como herança deixada por ele. Bill Clinton aprovou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês). George W. Bush deu boas-vindas à China na Organização Mundial do Comércio (OMC). Obama trabalhou em prol de um tratado de investimento bilateral EUA-China e assinou a Parceria Transpacífico (TPP).
Trump, entretanto, repudiou o consenso pró-globalização dos 40 anos anteriores. No caminho de sua campanha eleitoral, acusou a China de rir dos EUA e de estuprá-los. Em seu discurso de posse, lamentou a “carnificina americana” e a atribuiu à globalização. Relata-se que Bush, na plateia, teria murmurado sobre o que se ouviu naquele dia: “Isso foi algo bizarro”.
No primeiro dia no cargo, Trump retirou os EUA da TPP. Em 2017, os EUA fizeram uma jogada para enfraquecer a OMC, ao bloquear a nomeação de novos juízes para seu tribunal de recursos. Robert Lighthizer, representante de Comércio de Trump, impôs uma série de tarifas à China. Trump também renegociou o Nafta, renomeado como USMCA. Tudo justificado em nome de trazer de volta empregos industriais aos EUA.
A nova rivalidade com a China também teve componentes geopolíticos. A estratégia de segurança nacional de Trump, anunciada em 2017, tornou a “competição entre grandes potências”, contra a China e a Rússia, o cerne de sua abordagem para o mundo.
E o que Biden fez com esse “algo bizarro”? Em vez de jogá-lo fora, seu governo manteve a maioria dessas políticas da Trump – e até as expandiu. Não fez nenhuma tentativa de voltar a juntar-se à TPP, e continua bloqueando a recomposição do tribunal de recursos da OMC. De forma reservada, alguns membros do governo consideram um erro ter permitido a entrada da China na OMC. As tarifas de Trump à China ainda estão em vigor.
O governo atual também aderiu ao conceito de rivalidade de grandes potências, contra a China. A própria estratégia de segurança nacional de Biden descreve a China como o “desafio geopolítico mais relevante” para os EUA.
A “bidenomics”, as políticas econômicas ambiciosas e intervencionistas de Biden, são impulsionadas por um desejo semelhante ao de Trump de reindustrializar os EUA e reconstruir a classe média.
A equipe de Biden poderia argumentar, com certa justiça, que suas políticas são mais sistêmicas que as de Trump e que contêm alguns novos elementos. A ênfase em encorajar a energia limpa e no combate às mudanças climáticas é bem distintiva dos democratas.
Os esforços de Biden para conter o poder chinês também são menos vulneráveis a caprichos presidenciais. Trump costumava censurar a China em um minuto e no outro tecer elogios ao líder chinês, Xi Jinping. Ele provavelmente achava que suas tarifas seriam um meio para acabar negociando um acordo comercial melhor com a China, até que a pandemia fez todos os esforços para melhorar as relações com Pequim descarrilarem.
O foco do governo Biden não está tão centrado apenas na balança comercial EUA-China e há um esforço mais sistêmico para restringir a exportação de tecnologias-chave à China. A equipe de Biden também pode argumentar ter investido muito mais dinheiro do que Trump em iniciativas para reindustrializar os EUA.
No entanto, trata-se principalmente de diferenças de implementação, e não de filosofia primordial. Por mais que relute em admitir, a equipe de Biden passou a compartilhar muitas das suposições básicas de Trump — sobre comércio exterior, globalização e rivalidade com a China.
Dois fatores têm impulsionado essa reavaliação. Primeiro, a vitória de Trump em 2016 forçou os democratas a levarem muito mais a sério as dificuldades, e a raiva, dos trabalhadores dos EUA. O governo Biden concluiu que não pode mais vender a ideia da globalização ao povo americano. Sem um esforço para lidar com a fundamentação econômica do trumpismo, a própria democracia pode estar em perigo. Dessa forma, a equipe de Biden, por fim, abandonou os dogmas de livre comércio abraçados pelos “Novos Democratas” de Bill Clinton na década de 1990.
O governo Biden também acredita, assim como Trump argumentava, que a política dos EUA para a China mantida por 40 anos foi efetivamente um fracasso e que uma China liderada pelo Partido Comunista nunca será uma “parte envolvida responsável” no sistema internacional.
Em aspectos importantes, portanto, Trump provocou uma revolução duradoura na política interna e externa dos EUA.
Pode parecer estranho — até repulsivo — dar crédito a ele por mudanças sérias na ideologia e na política econômica. Para muitos em Washington, Trump é um bárbaro, cujo legado que o definirá sempre será seu ataque ao sistema democrático americano. No entanto, talvez tenha sido necessário um bárbaro demolidor de tabus para engendrar uma ruptura decisiva com um consenso de 40 anos sobre comércio externo, globalização e China.
Fonte: Valor Econômico

