Todo líder tem seus pontos cegos. No caso de Joe Biden, sua aparente indiferença com os palestinos pode acabar se provando custosa. Dez mil crianças palestinas foram mortas nos últimos 100 dias, segundo a organização beneficente Save the Children. No entanto, o comunicado de Biden no domingo (14) apelando ao Hamas para libertar os cerca de 100 reféns mantidos pelo grupo mal fez referência ao sofrimento palestino. É como se um reconhecimento às aflições dos palestinos colocasse em dúvida sua simpatia genuína pelas vítimas israelenses do ataque bárbaro do Hamas em 7 de outubro. Isso aliena muitos jovens americanos, de cujo entusiasmo ele precisará em novembro. Sem falar dos árabes-americanos, que são um bloco fundamental de eleitores em vários Estados indecisos.
Não são apenas os progressistas democratas que estão contrariados com o silêncio de Biden em relação à mão pesada de Israel. Vários de seus aliados mais confiáveis no Senado dos EUA também estão incomodados. Nesta semana, em Davos, Chris Coons, o senador centrista de Delaware e o amigo mais próximo de Biden na política, disse que os EUA deveriam considerar impor condições à ajuda militar a Israel. Na linguagem moderada de Coons, isso é o equivalente um ataque frontal. Em uma carta a Biden antes do Natal, um grupo de democratas com experiência em segurança nacional, entre os quais Abigail Spanberger e Elissa Slotkin — ambas ex-funcionárias da CIA, a central de inteligência americana — conclamou-o a usar a influência dos EUA para “uma mudança imediata e significativa da estratégia e táticas militares em Gaza”.
Integrantes da Casa Branca reiteram que Biden está fazendo o que pode, de forma privada, para conter o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Há poucas evidências para mostrar isso. Israel recebeu mais de 100 bombas de destruição de bunkers de 2 mil libras (907 quilos) dos EUA desde 7 de outubro. Elas causam o tipo de destruição destinado para campos de batalha, não para atingir com precisão terroristas em ambientes urbanos. Ninguém contesta seriamente as acusações de que as Forças de Defesa de Israel têm usado tais munições de forma indiscriminada. No entanto, Biden continua resistente a impor restrições aos quase US$ 14,5 bilhões em ajuda aos israelenses que pretende conseguir do Congresso. Ele tem influência militar e o poder do púlpito. O que o impede de usá-los?
A resposta se resume aos sentimentos profundamente enraizados de Biden em relação a Israel. Desde seus primeiros dias na política, ele foi um dos aliados mais fervorosos de Israel no Congresso. No entanto, as circunstâncias em que seu afeto surgiu mudaram drasticamente. Golda Meir e Yitzhak Rabin, dois líderes israelenses admirados por ele, representavam a antítese da política de Netanyahu. Biden sempre se baseou na crença inabalável de que Israel só cede quando não há “nenhuma fresta” entre as posições dos EUA e Israel. O histórico sugere o contrário.
Biden foi um crítico ferrenho da tentativa de George H. W. Bush de iniciar um processo de paz em 1992 entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Ele também criticou a ameaça de Bush pai de retirar as garantias de empréstimo dos EUA, caso Israel prosseguisse com os assentamentos nos territórios ocupados. A pressão de Bush ajudou a derrubar o governo da época em Israel, do Likud, e a trazer Rabin ao poder, o que resultou nos Acordos de Paz de Oslo. Como vice-presidente, Biden minou a tentativa de Barack Obama em 2010 de exercer pressão semelhante sobre o governo de Netanyahu. Em parte, em razão das garantias feitas de forma privada por Biden, o primeiro-ministro de Israel desafiou Obama. Obama cedeu primeiro.
Se impusesse condições rigorosas à ajuda dos EUA, Biden poderia derrubar Netanyahu, se assim quisesse — e receber o agradecimento dos israelenses, do mundo árabe e da maioria dos judeus-americanos. Isso também recuperaria parte do terreno que os EUA perderam no Sul Global diante da impressão de ter dois pesos e duas medidas. Grande parte do mundo acredita que os EUA se importam mais com vítimas europeias, como os ucranianos, do que com civis no Oriente Médio ou em outros lugares. A saída de Netanyahu provavelmente abriria caminho para Benny Gantz, um líder israelense centrista, que poderia ser um parceiro no compromisso retórico de Biden de uma solução de dois Estados. Em um evento beneficente para arrecadar fundos em dezembro, Biden disse: “Não vamos fazer droga nenhuma, além de proteger Israel. Nada além disso.”
Continuar nessa toada resultará em um golpe duplo contra Biden. Primeiro, as táticas de Netanyahu estão prejudicando Israel. Estão criando uma nova geração de pais e órfãos desamparados. Netanyahu é capaz de ampliar a guerra para o Líbano se achar que isso salvará sua pele. Embora Biden tenha alertado contra isso, o que ele faria nesse caso? Em segundo lugar, Biden está prejudicando as próprias chances de reeleição. A comunidade árabe-americana de Michigan tem quase o dobro do tamanho de sua margem de vitória sobre Trump no Estado em 2020. No Arizona, é seis vezes maior. Dizer a esses eleitores que Trump seria pior é uma má estratégia política. Eles poderiam simplesmente optar por não votar. No que se refere à Faixa de Gaza, isso tampouco seria necessariamente verdadeiro.
Quanto mais Netanyahu se agarrar ao poder, pior será para Biden. No entanto, as ações de Biden parecem feitas sob medida para a garantir justamente isso.
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— Foto: Miriam Alster/AP
Fonte: Valor Econômico

