Para o Valor — São Paulo
06/12/2023 12h11 Atualizado há 22 horas
A Venezuela ameaça causar uma crise militar na América do Sul com a sua pretensão de anexar parte do território, rico em petróleo, da vizinha Guiana. A situação pode levar a uma inédita intervenção militar direta dos EUA na região. O Brasil vem buscando, nos bastidores, mediar a situação, mas o governo venezuelano não dá sinais de moderação. Pelo contrário.
Ontem o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, disse que autorizará a prospecção de petróleo em águas territoriais e a mineração em território guianês. Se isso de fato ocorrer, significaria uma invasão da Guiana pela Venezuela.
A Venezuela reivindica, desde o final do século 19, a região de Guiana Essequiba, na fronteira entre os dois países e que corresponde a cerca de 70% do território total da Guiana. Ao longo da história houve várias negociações, mas nenhuma considerada conclusiva. O caso está atualmente na Corte Internacional de Justiça (CIJ), da ONU. O CIJ ordenou neste mês que a Venezuela não realize nenhuma ação para mudar a fronteira até que a corte decida, mas a Venezuela rejeita a jurisdição da corte nesse caso.
No domingo, o governo Maduro promoveu um plebiscito no país no qual 95% dos votantes apoiaram a reivindicação. Segundo dados oficiais, cerca de metade dos eleitores aptos a votar comparecem às urnas.
A crise ocorre num momento em que Venezuela e EUA ensaiam uma aproximação, que poderia normalizar gradualmente a relação entre os dois países, com o levantamento das sanções americanas. Isso implicaria na volta do petróleo venezuelano ao mercado global, num contexto em que a Rússia vem usando petróleo e gás como armas no seu confronto com o Ocidente.
A questão agora é saber se o governo venezuelano está aproveitando essa crise apenas como diversionismo, isto é, para desviar a atenção interna dos enormes problemas do país, ou se realmente pretende realizar alguma operação de invasão do território disputado, porém internacionalmente reconhecido, da Guiana.
A Guiana conta com pouco mais de 3.000 militares e não teria condições de se defender de uma ação militar venezuelana. Se, ao invés de enviar militares, a Venezuela enviar civis para atividades econômicas em território guianês, a Guiana poderia reagir militarmente, mas daria à Venezuela o pretexto de ter militarizado a situação.
De todo modo, os EUA dificilmente aceitarão qualquer forma de ocupação de território da Guiana, apesar de ainda não terem ainda formalizado essa posição. Os dois países estão negociando atualmente um acordo de cooperação militar, justamente por causa da ameaça venezuelana.
O eventual envio de forças americanas para defender a Guiana constituiria a primeira intervenção militar direta dos EUA na América do Sul, o que certamente os governos da região estão tentando evitar.
Um confronto desse tipo acabaria com a possibilidade de uma normalização rápida das relações entre Venezuela e EUA, o que é ruim para todo o continente. E escancararia que o objetivo de Maduro com a reaproximação com os EUA foi apenas de ganhar tempo.
Há muitas dúvidas sobre a real disposição do regime autoritário de Maduro de abraçar um processo de abertura política na Venezuela, que culminasse com eleições livres. Isso significa pressupor que Maduro aceitaria deixar o poder caso perca eleições limpas. Tanto o presidente venezuelano como o seu antecessor, Hugo Chávez, nunca deram nenhum sinal disso. Pelo contrário.
O regime de Maduro é apoiado política e economicamente pela Rússia e pela China, que o financiam tanto diretamente como por meio da compra de petróleo venezuelano. Assim, é provável que Maduro esteja agindo nos interesses desses dois adversários estratégicos dos EUA. E deixar o poder não faz parte desses interesses. Nem Rússia nem China tem compromisso com eleições livres e alternância no poder.
Os EUA já estão envolvidos, indiretamente, em dois importantes conflitos neste momento: as guerras na Ucrânia e entre Israel e palestinos. Abrir um novo conflito tão perto de casa, com envolvimento direto de soldados americanos (se Washington não conseguir terceirizar a defesa da Guiana), e em plena campanha eleitoral para a Casa Branca seria um problema a mais para o presidente Joe Biden, que já está em desvantagem nas pesquisas de intenção de voto nos EUA. Tanto Rússia como China têm interesse na vitória do republicano Donald Trump.
Entrar numa nova guerra de atrito com os EUA, isto é, numa série de provocações na fronteira com a Guiana, é uma manobra arriscada para Maduro. Há sempre o risco de um erro de cálculo com consequência não desejadas.
É do interesse dos países da América do Sul, e principalmente do Brasil, evitar uma escalada dessa crise. Um conflito entre Venezuela e EUA na Guiana seria um conflito na fronteira brasileira. Mas, se Maduro realmente estiver agindo de acordo com os interesses de Moscou e de Pequim, seus financiadores, os vizinhos da Venezuela terão pouca influência.
Apesar do apoio público do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao chavismo, as relações entre ele e Maduro (e antes com Chávez) sempre foram tensas. Caracas muitas vezes ignorou o petista e está inadimplente da sua dívida bilionária com o Brasil. Essa crise pode se tornar um grande teste para a política externa brasileira e para Lula.
Fonte: Valor Econômico

