Após cinco anos de queda e depois de atingir a mínima histórica no ano passado, o diferencial da dívida do Brasil para os demais países emergentes deve voltar a subir em 2024 e prosseguir nesse movimento ao menos até o fim do mandato atual de Lula.
Como proporção das respectivas medidas para o Produto Interno Bruto (PIB), a dívida bruta brasileira deve fechar este ano 19 pontos percentuais acima da média dos demais emergentes, segundo as projeções mais recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Em 2023, a dívida brasileira estava 17,2 pontos acima, o valor mais baixo da série neste século.
Até 2026, a diferença entre a dívida do Brasil e demais emergentes deve subir para 22,4 pontos. Ela deve ficar praticamente estável em 2027 (22,3 pontos) e desacelerar para 21,5 pontos em 2028 e 19,9 pontos em 2029. Ainda assim, a dívida brasileira, que representava 788% do valor médio da dívida dos emergentes em 2023, deverá representar 859% em 2029, horizonte até o qual o FMI tem projeções.
“Na margem, a deterioração do resultado primário do Brasil e o aumento da dívida do país destoam como um dos piores”, afirma Solange Srour, diretora de macroeconomia para Brasil do UBS Global Wealth Management.
No externo, Brasil poderia até ser grau de investimento”
Pedro Schneider, economista do Itaú Unibanco, diz que a comparação internacional foi benigna para o Brasil de 2019 a 2023, o que, junto com o retorno de taxas de crescimento maiores do PIB do país, provavelmente, diz, motivou a elevação da nota de crédito do Brasil pela Moody’s em outubro deste ano.
“No nosso cenário, a diferença da dívida do Brasil para o mundo deve continuar aumentando. Achamos que as agências de risco, agora, estão mais corrigindo o que houve até 2023 do que incorporando um cenário prospectivo de estabilização”, afirma Schneider.
Nos anos da pandemia, diz, o Brasil conseguiu conciliar melhor do que outros países a questão humanitária com a fiscal. “Houve uma deterioração fiscal global, e o Brasil piorou menos que o resto do mundo. Mas, agora, a gente está voltando a piorar mais”, afirma.
Livio Ribeiro, sócio da consultoria BRCG e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), pondera que cada país contabiliza a sua dívida de um jeito diferente e que o próprio FMI calcula a dívida do Brasil diferentemente do Banco Central. “Independentemente disso, fato é que o Brasil gasta mais do que arrecada, sua dívida sobe e o Brasil também se endivida em um ritmo mais rápido”, afirma Ribeiro.
Muitas vezes, o investidor estrangeiro olha para o passado recente ou para o curtíssimo prazo e, por isso, tem a percepção de que o Brasil não tem um problema fiscal tão grande, diz Schneider. “A diferença de nível da dívida do Brasil para a de outros pares está nas mínimas. Mas, o que chama a atenção na ponta – e exatamente por isso é preocupante – é que essa diferença está voltando a aumentar, a despeito do nosso crescimento super forte, o que sugere que parte desse movimento é responsabilidade do próprio plano fiscal.”
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O FMI estima que a dívida brasileira passará para 87,6% do PIB este ano, vindo de 84,7% em 2023. Até 2029, chegaria a 97,6% do PIB, uma escalada, em cinco anos, de dez pontos percentuais. A dívida dos emergentes (exceto Brasil) deve ter aceleração bem mais suave entre 2023 e 2024, de 67,5% para 68,6% do PIB, e avançar um pouco menos até 2029 – 9,1 pontos, para 77,7%.
“A expectativa de aumento da dívida do Brasil também é ‘outlier’ [atípica]. Essa história de que todo mundo tem dívida pior… mas a gente tem uma derivada pior. Essa é a exigência do mercado com reformas estruturais, que o ritmo do crescimento diminuia”, diz Srour.
O movimento esperado pelo FMI para a dívida brasileira é contrário ao estimado para os pares da América Latina, cuja dívida deve cair para 59% do PIB da região em 2024, vindo de 67% em 2023, e até 2029 ainda ceder para 53% – as previsões não consideram a Venezuela, além do próprio Brasil.
“Com essa diferença de dívida do Brasil em relação aos emergentes voltando a aumentar, é difícil imaginar que as agências [de risco] farão movimentos sucessivos de ‘upgrade’”, diz Schneider.
Isso significa, segundo ele, que “o idiossincrático fiscal” continua sendo o principal desafio do Brasil. Não existe, porém, perspectiva de convergência do déficit primário brasileiro para superávit, diz Schneider. “As próprias metas fiscais do governo não são para um resultado superavitário que estabilizaria a dívida. Então, a dívida do resto do mundo, grosso modo, vai crescer um ponto [percentual do PIB] por ano, enquanto a nossa vai subir três, quatro pontos, dependendo da combinação de PIB e juro aqui dentro”, estima.
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Os mercados, diz Schneider, têm precificado cada vez mais esse cenário. “Os Estados Unidos também têm um problema fiscal, o Tesouro americano tem de emitir mais dívida. Só que o título americano é o ativo livre de risco. Se você tem mais título livre de risco disponível, por que você vai querer comprar o título de um país emergente com histórico fiscal problemático? Só se o preço desse título for maior, aí, é uma emissão mais cara para o nosso Tesouro, é um desafio maior manter o fiscal equilibrado”, afirma. “Dívida, de forma geral, não é para quem quer, é para quem pode, no sentido de que países desenvolvidos, normalmente, conseguem se financiar a taxas melhores do que emergentes.”
O Brasil também deve ser o terceiro país a mais contribuir para o aumento da dívida dos emergentes até 2029, atrás apenas da China e da Índia, segundo as estimativas do FMI (veja acima). Na ponta contrária, o peso da Argentina – que passa por um forte ajuste promovido pelo governo de Javier Milei – sobre o endividamento do grupo deve cair bastante: de 155% do PIB no ano passado para 51% do PIB em 2029.
China, Índia e Brasil têm em comum estarem entre as dívidas mais altas dos emergentes e o fato de que o financiamento de suas dívidas é, sobretudo, local, observa Schneider. “A diferença é que China e Índia têm alguma forma de controle de capitais, o que a gente não tem. Ou seja, podemos ter mais participação do estrangeiro se a gente retomar o grau de investimento, se mostrarmos que a nossa trajetória fiscal não é explosiva.”
Luciano Telo, executivo-chefe de investimentos (CIO) para Brasil da UBS Global Wealth Management, pondera que o Brasil tem fatores a seu favor na comparação com outros pares. Além de a dívida do país ser quase exclusivamente interna, o Brasil tem expressivo volume das reservas internacionais e um crescimento econômico mais destacado, diz.
“Em termos de indicadores externos, o Brasil é muito melhor do que vários emergentes. Dá até para dizer que a gente poderia ser grau de investimento. O problema está mesmo no fiscal. A grande vulnerabilidade é o nível de endividamento, o ritmo com que isso vai se deteriorar e o custo dessa dívida também”, afirma.
Telo nota que o déficit nominal (combinação do resultado primário com o pagamento de juros) do Brasil está em patamar similar ao de 2015, em meio à recessão. “Só que, logo depois de 2015, teve uma trajetória de correção, aquilo durou pouco. Agora, estamos tendo um movimento de déficit nominal alto e, quando olhamos para frente, ainda não tem essa perspectiva [de correção]. Isso, de fato, destoa.”
“Talvez, a deterioração em 2015 tenha sido mais rápida, mas o nível, hoje, é mais preocupante. E a composição é preocupante também. A dívida/PIB é muito mais pós-fixada, ou seja, está muito mais lìgada à Selic do que no passado. E o cenário externo também é mais preocupante, com juros globais maiores”, completa Srour.
Ribeiro, da BRCG, ressalta que “a culpa” de um déficit nominal beirando dois dígitos no Brasil não é dos juros. “As novas emissões estão ficando cada vez mais pós-fixadas e curtas, o que é absolutamente normal em um momento de estresse como o atual.”
Schneider concorda com a avaliação de que o Brasil tem vantagens em relação a outros países. “Tem uma disposição maior do investidor de vir para cá, acho que falta só essa ‘perna’, esse ‘carimbo’ do ajuste fiscal mais crível. Se conseguir grau de investimento, acho que seria importante para a gente conseguir financiar o fiscal melhor aqui”, afirma.
Para Srour, no entanto, é difícil imaginar a implementação de medidas para a desaceleração estrutural do crescimento da dívida do Brasil em uma segunda metade de gestão federal, como o país entrará em 2025. “Isso é muito mais fácil de se fazer com o capital político vindo de uma eleição e não indo para uma eleição”, diz.
Fonte: Valor Econômico

