Por Nelson Abrahão
25/10/2022 05h02 Atualizado há 3 horas
Neste ano os juros globais estão em forte elevação, refletindo a resposta sincronizada dos principais bancos centrais às maiores taxas de inflação das últimas décadas, o que podemos chamar de “O grande aperto monetário”. Uma pergunta importante nesse processo é até onde vai a taxa básica de juros nos EUA, já que o Fed é a autoridade monetária da maior economia do planeta e emissor da moeda usada como reserva internacional. Qual taxa de juros é suficiente para fazer a taxa de inflação americana convergir para a meta de 2%?
Por trás desta pergunta está o que considero ser a maior incerteza atualmente: qual a taxa de juros neutra da economia americana. Taxa neutra aqui entendida como aquela consistente com a economia crescendo em torno do seu potencial e inflação estável, compatível com a meta. É uma variável não observável, cuja amplitude das estimativas é bastante grande. Para serem restritivos, os juros têm que atingir patamares acima desta taxa neutra. Uma aproximação é a mediana das estimativas dos membros do Fomc do que seria a Fed fund rate no longo prazo. Na reunião de setembro, a mediana permaneceu em 2,5% em termos nominais, ou 0,5% em termos reais, descontando a inflação na meta.
A boa situação financeira do setor privado americano gera dúvidas sobre a sensibilidade da economia americana aos juros mais altos em um contexto de inflação mais persistente, sugerindo que esta taxa neutra pode estar sendo subestimada. Esta é a incerteza fundamental que pesa sobre os mercados financeiros mundiais, já que a taxa de juros americana de curto prazo é uma expressão da taxa livre de risco a partir da qual todos os ativos são precificados. Isto implica uma enorme incerteza no fundamento base dos mercados financeiros.
Tendo ficado atrás da curva, com o mercado de trabalho bem aquecido e os núcleos de inflação muito acima da meta, o BC americano não tem alternativa senão subir os juros rapidamente. Os mercados precificam o quarto aumento de 75 pontos base na Fed fund rate este ano, em novembro. Entre 1971 e 2021, foram apenas quatro altas desta mesma magnitude. Muito se discute se o BC americano aceitará o custo de um aumento mais forte do desemprego que talvez seja preciso para fazer a inflação convergir para a meta de 2%, ou se em 2023, com inflação indo para a casa dos 3% e mercado de trabalho desaquecendo, será declarada vitória prematuramente.
O discurso contundente de Jerome Powell em Jackson Hole em fins de agosto deveria ter encerrado questionamentos quanto ao comprometimento do BC americano no combate à inflação. Powell ressaltou as lições do passado, destacando que a desinflação produzida por Paul Volcker no início dos anos 80 acabou apresentando um custo econômico muito grande, pois foi seguida de múltiplas tentativas malsucedidas de aperto monetário ao longo dos 15 anos anteriores. Terminou o discurso afirmando: “We will keep at it” até que estejam confiantes que o trabalho para a estabilidade de preço esteja feito. Não por acaso, “Keeping at It” é o título da autobiografia de Volcker publicada em 2018.
Existem os riscos inerentes a todo ciclo de elevação dos juros, como as famosas longas e variáveis defasagens da política monetária. Com o foco em indicadores que são notadamente mais defasados, como a taxa de desemprego e a própria inflação corrente, corre-se risco de aperto excessivo. Ainda que a melhora nos gargalos das cadeias de suprimentos e a acomodação dos preços das commodities estejam contribuindo, a diminuição das expectativas de inflação embutidas nos preços dos títulos do Tesouro americano sugere que o Fed dispõe de credibilidade.
Embora o consumidor americano esteja em boa situação, me pergunto se o restante do mundo teria condições de suportar a alta de juros necessária quando considerados outros aspectos além dos econômicos. Será que a economia global aguentaria tamanho choque de juros e alta do dólar? Afinal, o nível de alavancagem e endividamento global é maior do que em ciclos de aperto monetário anteriores, principalmente na esfera governamental, com o aumento das dívidas públicas. Pode existir a tentação política de acomodar uma inflação mais alta que prejudique os credores.
Historicamente, fortes altas de juros e valorização do dólar não costumam acabar bem, muitas vezes produzindo crises em países e setores potencialmente sistêmicos. Tivemos uma pequena amostra neste sentido no Reino Unido, quando, ao final de setembro, o governo anunciou cortes de impostos e aumento do déficit fiscal em meio à subida de juros e inflação alta. Isto fez com que o Banco da Inglaterra tivesse que comprar títulos públicos longos para estancar uma espiral negativa de chamada de margem em fundos de pensão alavancados e, também, evitar disfunções no crédito imobiliário.
Dominância fiscal ou dominância financeira podem comprometer o combate à inflação. Realmente estamos em um ambiente cheio de incertezas cujos desenvolvimentos serão definidores da performance dos ativos financeiros pelos próximos anos.
Fonte: Valor Econômico

