País precisa ter base produtiva sólida no setor de saúde, capaz de atender às demandas do SUS sem dependência excessiva das importações
Por Camila Parise e Anna Bertin
11/01/2024
O governo federal, em 2023, retomou um dos programas considerados prioritários na área da saúde. Com a atual denominação de Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), o objetivo do governo é reduzir a vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS), ampliar o acesso a produtos e tecnologias considerados estratégicos, por meio do desenvolvimento e da absorção de tecnologias e inovação no país, além de frear o crescimento do déficit comercial da saúde que em 2013 totalizava US$ 11 bilhões, e, atualmente, chega a US$ 20 bilhões.
A necessidade de o Brasil estabelecer uma base produtiva sólida no setor de saúde, capaz de atender às demandas do SUS sem dependência excessiva das importações, é um tema recorrente. Segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 90% da matéria-prima utilizada no Brasil para produção de insumos como vacinas e medicamentos é importada. Na área de equipamentos médicos a produção nacional atende apenas 50% da demanda local, e no caso dos medicamentos esse percentual é de 60%.
As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), lançadas em meados de 2008, foram a primeira iniciativa concreta do governo que tinha o objetivo de utilizar o poder de compra do Estado para gerar inovação no setor de saúde. Entretanto, as fragilidades e problemas vivenciados durante a implementação das parcerias, bem como a falta de estímulo do governo em investir no programa, fizeram com que perdessem atratividade.
Com a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do CEIS o governo federal pretende reconstruir a capacitação local de fornecimento de insumos farmacêuticos ativos, medicamentos, vacinas e soros, hemoderivados, produtos biotecnológicos, dispositivos médicos e tecnologias digitais, bem como contribuir para que o CEIS seja capaz de suportar emergências e necessidades em saúde. O investimento estimado para a estratégia até 2026 é de R$ 42 bilhões, e considera aportes previstos no novo programa de investimentos coordenado pelo governo federal, participação do BNDES, Finep, além de aporte da iniciativa privada em parcerias estratégicas.
Em linhas gerais, o Ministério da Saúde definiu uma lista dos desafios em saúde a serem enfrentados no âmbito da estratégia, bem como as plataformas, produtos e tecnologias considerados prioritários para atender as demandas no SUS. Estão incluídas na lista determinadas vacinas, medicamentos biológicos, antineoplásicos, terapias avançadas, produtos para saúde e diversas soluções tecnológicas.
Também foram estabelecidos os instrumentos a serem utilizados para estimular a produção nacional e, consequentemente, ampliar o acesso às soluções produtivas e tecnológicas previstos na lista. As Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) e o Programa de Desenvolvimento de Inovação Local (PDIL) são os principais, não só por serem de maior relevância para investimentos e alianças com o setor privado, mas também por poderem ser utilizados para efetivação dos outros programas estabelecidos no âmbito da estratégia, como o de Desenvolvimento Tecnológico para Populações e Doenças Negligenciadas e Preparação em Vacinas, Soros e Hemoderivados.
O PDIL é voltado para atividades de pesquisa e desenvolvimento que objetivem a geração de produtos, processos e serviços inovadores, além da transferência e da difusão de tecnologias em saúde, mas que serão operacionalizados por meio de instrumentos que ainda dependem de regulamentação do Ministério da Saúde, como aplicações de inteligência artificial na saúde. Já as PDPs permanecem com o foco de gerar capacitação produtiva e tecnológica do país por meio da produção local de tecnologias e produtos estratégicos para atendimento às demandas do SUS.
O sucesso da Estratégia para o Desenvolvimento do CEIS depende agora do estabelecimento de regras e critérios claros e objetivos para que as parcerias almejadas possam ser efetivadas. O Ministério da Saúde colocou em consulta pública no final de dezembro as propostas de regulamento das PDPs e do PDIL que ficarão disponíveis para comentários da sociedade até 8 de fevereiro de 2024. O prazo inicial para comentários expirava em 9 de janeiro, mas foi prorrogado diante da complexidade do tema e da necessidade de um maior debate entre o governo e a sociedade.
No caso das PDPs, a proposta de regulamentação possui avanços em relação à norma anterior, muito para sanar questões apontadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em recente acórdão publicado quase que concomitantemente ao lançamento, pelo governo federal, da Estratégia para o Desenvolvimento do CEIS, e após longo processo de avaliação dessas parcerias. Entretanto, alguns pontos estruturais permanecem e, se não sanados, podem, na prática, gerar as mesmas discussões enfrentadas no passado, como a falta de critérios para divisão de mercado entre diferentes PDPs para o mesmo produto, bem como para a definição dos percentuais da demanda de produto para cada parceria.
Se o fortalecimento do CEIS é tão estratégico para o país, uma discussão que ainda não foi enfrentada, mas que deveria nesse momento ser retomada, é se as regras estruturantes deveriam estar previstas em lei federal, e não em normas e regulamentos do Ministério da Saúde. Assim, o fortalecimento do CEIS passaria a ser um programa de Estado e não uma política de governo, ficando, em teoria, mais sólida e menos suscetível a alterações e interesses externos.
Com uma estratégia bem estruturada e bem estabelecida, o parque industrial brasileiro poderá ter capacidade de produzir o maior volume da demanda interna dos insumos necessários para a saúde. Além da economia que essa medida pode gerar para os cofres públicos, bem como gerar empregos e proporcionar o desenvolvimento social do país, o SUS estará mais preparado para, em situações emergenciais, continuar promovendo o acesso a insumos essenciais, e consequentemente, protegendo, a população brasileira. Para tanto, ainda existe um longo caminho de debate, discussão e regulamentação a ser percorrido.
Camila Martino Parise e Anna Luiza Bertin são, respectivamente, sócia e associada de Pinheiro Neto Advogados.
Fonte: Valor Econômico