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O governo federal transferiu para o Ministério da Saúde despesas com sentenças judiciais originadas em ações ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), e passou a considerar esses valores para o cumprimento do piso mínimo constitucional de 15% da Receita Corrente Líquida (RCL). No Orçamento de 2026, R$ 4,7 bilhões em gastos dessa natureza serão contabilizados para atingir o piso, alta expressiva em relação a 2025, quando o montante considerado foi de R$ 452,4 milhões. Em 2023 e 2024, esses valores somaram R$ 184,1 milhões e R$ 141,1 milhões, respectivamente. O piso total exigido para o ano que vem é de R$ 245,5 bilhões.
O aumento de gastos com sentenças judiciais contabilizados no piso da saúde chamou atenção das consultorias de Orçamento do Congresso Nacional. Em nota técnica conjunta, os analistas da Câmara dos Deputados e do Senado alertaram que despesas referentes a anos anteriores não deveriam ser computadas para fins de cumprimento da aplicação mínima constitucional no exercício em que forem pagas. A interpretação, contudo, não é unânime entre especialistas.
A avaliação das consultorias se baseia no princípio de que o piso fixado pela Constituição tem como objetivo garantir o financiamento de ações e serviços de saúde prestados a cada ano, assegurando a continuidade e a qualidade do atendimento à população. “Dessa forma, impedir que débitos de exercícios anteriores sejam computados no exercício vigente garante a estabilidade do financiamento da saúde pública, sem comprometer a capacidade do ente público de atender demandas contemporâneas”, cita o documento.
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Os técnicos do Legislativo apontam ainda que o pagamento de despesas decorrentes de sentenças judiciais não está expressamente previsto na Lei Complementar (LC) 141/2012, que estabelece o piso de despesas para a área, como gasto em ações e serviços públicos de saúde (ASPS). Eles explicam que essa legislação especifica as despesas que podem ser consideradas como ASPS de acordo com a natureza da aplicação, e não com a origem da obrigação judicial.
Na prática, de acordo com os técnicos, para que uma despesa seja computada no piso constitucional deve haver garantia de que os recursos serão efetivamente aplicados em ações de saúde, como vacinas ou medicamentos. A lei em questão estabelece que despesas com ASPS são aquelas “voltadas para promoção, proteção e recuperação da saúde”. No caso das sentenças judiciais, contudo, não é possível saber previamente para qual finalidade da área de saúde o valor será destinado. Outras despesas judiciais, como alguns tipos de benefícios, são excluídas do conceito de ASPS.
A decisão de transferir um volume elevado de sentenças judiciais para o orçamento da Saúde, segundo os técnicos do Congresso, indica que dívidas antes pagas pelo Tesouro Nacional passarão a ser quitadas com recursos do SUS. Na prática, de acordo com eles, valores que poderiam financiar serviços à população serão usados para indenizar entes públicos e privados que venceram ações contra a União.
Por outro lado, ponderam que, quando as ações judiciais têm origem efetivamente em demandas da área da saúde, é legítimo que o Ministério da Saúde assuma os pagamentos. No entanto, essas despesas não devem ser classificadas como ASPS apenas para fins de cumprimento do piso constitucional, dizem.
Caso parte ou a totalidade dos R$ 4,7 bilhões seja desconsiderada para o cumprimento do piso mínimo da Saúde, o relator do Orçamento, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), terá de remanejar recursos de outras áreas e ainda encontrar novas fontes para garantir o atendimento à regra constitucional. Ao Valor o parlamentar disse que esse ponto ainda está em discussão.
“A princípio, realmente conforme as equipes técnicas avaliaram, parte dos valores alocados nas sentenças judiciais não poderia estar enquadrada como ASPS para atendimento do mínimo da saúde”, disse Isnaldo. “Porém, essa decisão ainda não foi consolidada, apenas será [consolidada ou não] durante a deliberação do relatório setorial da saúde [do Orçamento], que poderá de fato concluir se parte dos valores estão classificados indevidamente.”
O economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, tem uma interpretação diferente daquela adotada por técnicos do Congresso. Para ele, gastos da área, independentemente de serem decorrentes de precatórios ou não, devem ser considerados para o cumprimento do piso constitucional – sobretudo em um contexto em que, desde a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, as exigências aumentaram, dado o restabelecimento da vinculação das despesas com saúde à receita. A PEC foi articulada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e aprovada pelo Congresso ainda antes de ele tomar posse, no fim de 2022.
“O pagamento de despesas pretéritas é também garantir a boa provisão dos serviços públicos de saúde, uma vez que representa a honra de compromissos assumidos pelo Estado e, portanto, cria um ambiente propício à preservação dos orçamentos dessa área ao longo do tempo”, diz Salto. “Temos de ter essa interpretação mais sistêmica, dado que a lei não existe no vácuo, mas convive com outras leis complementares e com os próprios comandos constitucionais que determinam a busca permanente da responsabilidade fiscal.”
Procurado, o Ministério do Planejamento e Orçamento informou que parte dos precatórios previstos para 2026, de competência da Justiça Federal, tem origem em ações ligadas ao SUS. O Conselho da Justiça Federal confirmou que, com exceção de um caso, a relação dos precatórios identificados pela pasta se refere a demandas dessa natureza, o que permite que os valores sejam alocados ao Ministério da Saúde, conforme estabelece o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2026.
Além disso, segundo a pasta, após decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que cancelou precatórios expedidos sem trânsito em julgado (ou seja, para os quais cabe recurso), o Judiciário foi instado a revisar os precatórios de 2026 atingidos pela medida. A Justiça Federal então identificou os precatórios sob sua responsabilidade que se enquadravam nessa situação, sendo que havia alguns anteriormente identificados como decorrentes de demandas judiciais relativas ao SUS. Valores referentes a precatórios cancelados pela decisão do CNJ não foram incorporados às dotações do Orçamento 2026, o que resultou no valor alocado no Fundo Nacional de Saúde, que é o gestor dos recursos direcionados ao SUS, para o cumprimento das obrigações.
“Cabe ressaltar que a confirmação do CJF de que os precatórios identificados resultam de demandas judiciais relativas ao SUS confere a segurança jurídica necessária para que tal despesa seja contabilizada como ASPS.”
Já o Ministério da Saúde disse apenas entender que a Lei Orçamentária Anual (LOA) é analisada e aprovada pelo Congresso, que tem o poder de fazer alterações no Orçamento, se considerar necessário. “Depois de aprovada, cabe ao Poder Executivo executar o Orçamento conforme definido pelo Congresso”, diz.
Fonte: Valor Econômico