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Na última década, a saúde mental vem recebendo atenção crescente na mídia, no setor público e no mercado. O aumento da incidência de depressão e ansiedade, a redução do estigma sobre esses transtornos e seu impacto sobre a qualidade de vida elevam a demanda por consultas psiquiátricas, medicamentos e programas de bem-estar.
O evento que pôs o tema definitivamente na ordem do dia foi a pandemia de covid-19, em 2020 e 2021. Nesses anos de isolamento social, marcados pelo medo e pela solidão, a busca por atendimento psicológico e psiquiátrico se expandiu com força. Entre beneficiários de planos de saúde, as despesas com procedimentos de psicoterapia, que até 2019 giravam em torno de R$ 180 milhões por ano, chegaram a R$ 269 milhões em 2022, segundo estudo do Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS), baseado na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). O Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS) também apontou salto de atendimentos em psicologia e psiquiatria na rede pública: de 55 milhões em 2020 para 62 milhões dois anos mais tarde.
O aumento se explica tanto pelo crescimento da incidência quanto pela maior consciência na sociedade, segundo José Cechin, superintendente-executivo do IESS. “Durante a pandemia se falou muito em saúde mental, devido ao isolamento, ao receio de perder o emprego, à quebra de muitos pequenos negócios. Isso tudo deixou as pessoas, no mínimo, com muita ansiedade. E ansiedade prolongada se torna depressão. Foi o que pôs o assunto na cabeça das pessoas. As empresas buscaram criar programas de identificação com os departamentos de recursos humanos, por exemplo”, relata.
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Antes mesmo da pandemia, os números referentes à saúde mental eram preocupantes. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a incidência da depressão na população adulta cresceu 36,7% no Brasil entre 2013 e 2019, passando de 7,9% a 10,8% da população. Ou seja, pouco mais de um a cada dez maiores de idade do país já era afetado pelo transtorno.
“Nesse período, o assunto não estava na mídia e tampouco no radar do setor de saúde e de suas empresas. Foi a PNS que revelou o problema. Isto sugere que, além de mais conhecimento, houve aumento orgânico da incidência, que também podemos associar à melhora dos diagnósticos”, diz Cechin. O retorno às atividades após o fim da pandemia não interrompeu a tendência. Os dados da PNS indicam que a ocorrência de depressão em beneficiários de plano de saúde passou de 11,1% em 2020 para 13,5% em 2023.
Nesse contexto, uma das maiores fontes de preocupação é a saúde mental dos jovens, particularmente afetados pelo isolamento social, justamente no momento da vida em que a socialização é mais intensa. Um estudo do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) apontou crescimento de 6% ao ano nas taxas de suicídio e de 29% nas autolesões entre jovens no Brasil, entre 2011 e 2022.
Nas empresas, quem mais sente a importância do tema da saúde mental são os departamentos de RH. Problemas nessa área são a principal causa de absenteísmo entre trabalhadores, mas, conforme o psiquiatra Wagner Farid Gattaz, diretor-geral da Gattaz Health e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a maior preocupação, na verdade, está no “presenteísmo”. “As desordens emocionais são a segunda maior causa de afastamento do trabalho, mas dois terços do custo de transtornos mentais vêm da perda de produtividade de pessoas que estão em seus postos, mas não conseguem desempenhar”, afirma.
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Por meio da consultoria Gattaz Health, o psiquiatra oferece programas de saúde mental para empresas brasileiras, que recorrem a esse serviço por motivos diversos. O mais grave é a ocorrência de um suicídio, que abala toda a companhia e revela um problema até então oculto. “Felizmente, os profissionais de RH estão se tornando cada vez mais capazes de identificar problemas e lidar com o fenômeno da saúde mental como um todo”, diz Gattaz.
Para incentivar as empresas a intensificar esforços na promoção da saúde mental, foi aprovada em março no Congresso a Lei no 14.831, que institui o certificado Empresa Promotora da Saúde Mental. A lei ainda depende de regulamentação. No ano passado, deputados e senadores fundaram uma Frente Parlamentar Mista para a Promoção da Saúde Mental. Segundo o presidente da Frente, deputado federal Pedro Campos (PSB-PE), a iniciativa visa “enfrentar a crise de saúde mental do país”. Campos cita a informação de que mesmo antes da pandemia o Brasil já era o país com maior prevalência de ansiedade no mundo.
Em escala global, a OMS estima que o custo econômico total dos problemas de saúde mental é de cerca de US$ 3,4 trilhões por ano, valor que deve chegar a US$ 6 trilhões em 2030. Além de despesas com tratamento, o cálculo inclui custos indiretos, como queda da produtividade, faltas e dias de trabalho perdidos por parentes que cuidam de pacientes com depressão. A OMS estima também que condições mentais são responsáveis por um terço dos anos vividos com incapacidade (AVI), indicador que mede o impacto das condições de saúde.
Tanto no setor público quanto no privado, há muito espaço para investir em saúde mental, de acordo com Alberto José Ogata, pesquisador do centro de estudos em planejamento e gestão em saúde (FGV Saúde). Ogata assinala que a área recebe menos de 5% dos recursos dedicados à saúde pelo governo e pelas empresas. O professor da FGV não estima um nível ideal de investimento, mas afirma que deveria estar no mesmo patamar do câncer e de doenças cardiovasculares. “É importante que as operadoras integrem o tema. E isso deve ser feito de maneira articulada, porque são mais de 50 milhões de brasileiros com plano de saúde privado, que dependem desse trabalho”, afirma. A FGV Saúde trabalha em parceria com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para produzir um roteiro de atendimento à saúde mental voltado às operadoras de planos de saúde.
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Outro gargalo indicado por Ogata é a oferta de psiquiatras, que se situa em 6,5 por 100 mil habitantes no país, de acordo com o estudo Demografia Médica no Brasil. A taxa está abaixo dos 10 por 100 mil recomendados pela OMS. Uma das consequências é a falta de diagnósticos para condições como a depressão e a ansiedade, o que leva ao excesso de consumo de remédios mais facilmente acessíveis. “Como não há tantas pessoas para acompanhar os pacientes, verificamos um uso exagerado, totalmente inadequado, de Lexotan, Rivotril e semelhantes. Esse abuso pode exacerbar o quadro psiquiátrico de uma pessoa”, alerta.
De fato, junto com a incidência e os diagnósticos tem crescido o consumo de remédios, como mostram levantamentos periódicos do Conselho Federal de Farmácia sobre a venda de medicamentos ligados à saúde mental. No ano passado, o consumo de antidepressivos e estabilizadores de humor aumentou 11%. Entre 2017 e 2021, a alta foi de 58%. Parte dela se explica pela melhor capacidade de diagnosticar as doenças, mas outra parte consiste em automedicação.
Uma das principais respostas do mercado à crescente demanda por tratamentos de saúde mental foi a incorporação de novas metodologias, com destaque para ferramentas digitais, como teleatendimento. Assim como videoconferências e educação a distância, consultas por vídeo se popularizaram durante a pandemia e não foram abandonadas com o retorno à normalidade. Ao contrário, como a consulta não precisa de exame físico, o recurso ao digital é visto como particularmente conveniente. Operadoras como Amil, Bradesco, Unimed e SulAmérica recorrem amplamente às consultas virtuais em seus programas de atenção à saúde mental. Cechin aponta que o teleatendimento também aumenta o total de consultas psicológicas e psiquiátricas.
A preocupação das empresas reflete o vínculo entre a saúde mental e as condições de trabalho, reiterado a cada nova pesquisa. Desemprego, relações abusivas no ambiente profissional, medo de perder o posto e excesso de atribuições são alguns dos determinantes sociais mais citados para transtornos como ansiedade e depressão, além do burnout, que não é considerado doença, mas afeta 20% dos trabalhadores brasileiros, segundo Gattaz.
Captar esses determinantes é a intenção do Panorama da Saúde Mental publicado semestralmente pela ONG Instituto Cactus, em parceria com a empresa de pesquisas Atlas Intel. O instituto desenvolveu o Índice Contínuo de Avaliação da Saúde Mental (Icasm), que, a partir de entrevistas, agrega três indicadores diretamente ligados à saúde mental: confiança, foco e vitalidade. “O índice lida com os comportamentos, hábitos e estruturas relacionadas aos determinantes sociais de saúde”, explica Mariana Rae, coordenadora de projetos da ONG. “São fatores que afetam a saúde mental, mesmo se não parecem ser do campo da saúde. É o caso das questões financeiras, o contato com amigos, a qualidade do sono, que são fatores de risco para a saúde mental.”
Os indicadores estão em linha com a definição da OMS para o conceito de saúde mental. Trata-se de “um estado de bem-estar que permite às pessoas lidar com os momentos estressantes da vida, desenvolver todas as suas habilidades, aprender e trabalhar bem e contribuir para a melhoria de sua comunidade”. Esse estado é também considerado “direito humano fundamental” e “elemento essencial para o desenvolvimento pessoal, comunitário e socioeconômico”.
“A saúde mental é multifatorial, muito mais do que as doenças físicas, como o câncer. Questões como renda, violência urbana, habitação, nível educacional, precarização do trabalho, tudo isso influencia a saúde mental das pessoas”, diz Ogata. Por isso, pesquisadores enfatizam a diferença entre pensar nela pelo ângulo dos determinantes sociais ou pelo prisma dos transtornos.
De acordo com Rae, é preciso abordar a saúde mental com foco muito mais vasto do que os transtornos, porque uma série de condições cotidianas pode conduzir a uma piora do quadro, tornando-se problema mais grave, a ponto de exigir medicação ou internação. “É por isso que o Icasm trata da saúde mental como saúde propriamente, e não pelo ângulo de diagnosticar uma patologia. Não se trata de monitoramento epidemiológico, mas de identificar áreas em que é possível agir com antecipação”, explica. Colhido semestralmente desde o ano passado, o índice deverá fornecer uma série histórica do estado mental dos brasileiros.
O período em que a saúde mental entrou para o centro da pauta coincide com um momento de transformações nas políticas públicas para a área, segundo Dayana Rosa, especialista em relações institucionais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Em 2001, foi adotada uma reforma psiquiátrica que tornou a internação dos pacientes o último recurso terapêutico. A partir de então, floresceram no âmbito do SUS os Centros de Apoio Psicossocial (Caps), que, em conjunto, configuraram a Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
Em torno de 2017, uma série de portarias do Ministério da Saúde reintroduziu a ideia da internação como primeira alternativa. Rosa aponta duas medidas como mais significativas nesse processo. A primeira foi o aumento do valor recebido pelos hospitais por internações, que chegou a 60%. A outra foi a mudança da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), que reduziu o espaço do atendimento à saúde mental. “Só que a atenção primária é o principal lugar para prevenção e promoção de saúde mental, porque a maior parte dos problemas não é grave, não exigem internação psiquiátrica. São os chamados transtornos mentais leves”, diz a pesquisadora. “Quem lida com o cotidiano das pessoas, as situações de sofrimento e estresse, é a atenção primária. Ou seja, os postinhos, com a equipe de saúde da família.”
Em comparação com a Raps, a atenção à saúde mental pelo setor privado no Brasil é fragmentada, o que o torna menos eficiente, na avaliação de Ogata. Falta comunicação entre os médicos da família que fazem o primeiro atendimento e os psiquiatras, para quem os pacientes são encaminhados. “Não existe um sistema ambulatorial de saúde mental, com terapeuta ocupacional, psicólogo, enfermeiro, como na Raps. São só psiquiatras e psicólogos em seus consultórios, e os psicólogos não têm treinamento para fazer o diagnóstico”, lamenta. “É preciso integrar as especialidades com centros multiprofissionais, capazes de fazer tratamentos leves e intensivos, com ou sem internação.”
Fonte: Valor Econômico