Mais uma vez uma eleição na Argentina escancara a fragilidade política e econômica do país. Da mesma forma que Mauricio Macri em 2019 e Alberto Fernández em 2023, o presidente libertário Javier Milei se vê diante do risco de crise cambial, que traz de volta o fantasma de um default soberano, depois de sofrer um revés nas urnas no domingo. Mas diferentemente de seus antecessores, que enfrentaram a turbulência eleitoral no fim de seus governos, Milei se vê diante de uma perigosa crise na metade de seu mandato, intensificada pelo escândalo de corrupção envolvendo sua irmã, Karina Milei – que também ocupa o posto de secretária-geral da Presidência.
Em 2019 e 2023, a derrota do governo incumbente nas Paso (eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias) foi o estopim para uma corrida ao dólar, escalada da inflação e dos juros, que culminaram nos dois casos com a derrota de Macri e de Fernández nas eleições gerais subsequentes.
Este ano, na ausência das Paso, o recado dos eleitores foi dado na eleição legislativa da província de Buenos Aires, realizada no domingo. A vitória de 13 pontos da Fuerza Patria, a coalizão de oposição, sobre a aliança entre o partido de Milei, La Liberdad Avanza (LLA), e o PRO, partido do ex-presidente Macri, surpreendeu negativamente governo, investidores e analistas, ao revelar o renascimento do peronismo/kirchnerista, que muitos davam como praticamente extinto.
“Muita gente achava que o peronismo estava morto. Mas o governo Milei está sendo uma máquina de fazer peronista, gente que não era kirchnerista está se transformando em kirchnerista”, observou uma jornalista de Buenos Aires na sexta-feira antes da eleição.
A ampla vantagem da oposição revelou o cansaço dos argentinos com sua política de rigidez fiscal, que produziu um surpreendente superávit nas contas do governo e algum controle da inflação, mas que tem falhado em gerar empregos e trazer alívio nas ruas, em especial a população mais pobre.
Apesar das expectativas de um crescimento econômico da ordem de 5% este ano, esse número representa mais um efeito estatístico de uma baixa base de comparação do que uma retomada vigorosa do crescimento e, consequentemente, da renda dos argentinos. Ao contrário, dados mensais de atividade econômica apontam para um cenário de recessão. Segundo a agência nacional de estatística (Indec), a atividade econômica contraiu 0,7% em junho em relação a maio, dando sequência a uma contração de 0,2% em maio em relação a abril.
Ao mesmo tempo, a política de combate à inflação, principal bandeira do governo Milei, mostra sinais de esgotamento. Depois de atingir a mínima de 1,5% no mês em maio, o índice de preços ao consumidor subiu a 1,6% em junho e avançou para 1,9% em julho. Em termos anuais, a inflação segue em um nível ainda elevado, de 36,6% em julho. O dado de agosto, esperado para esta quarta-feira, pode superar os 2% no mês, como resultado da pressão cambial.
Milei reconheceu a derrota na noite de domingo e prometeu corrigir os erros, mas ele e seu ministro da Economia, Luis Caputo, reafirmaram que não haverá mudanças no plano econômico. Mantendo uma postura desafiadora, Milei disse que irá “aprofundar” sua agenda de reformas. Porém crescem as dúvidas sobre a sua capacidade de impor suas medidas sem o respaldo do Congresso – no último mês o presidente sofreu duas derrotas que colocam pressão sobre o superávit fiscal, principal pilar de sua política econômica.
O retrospecto dos ciclos eleitorais de 2019 e 2023 sugere que os 49 dias até a eleição legislativa nacional poderão ser perigosamente turbulentos no país. A reação dos ativos argentinos ontem reforça a percepção de elevada incerteza no curto prazo.
Fonte: Valor Econômico

