Por Tom Mitchell, Sun Yu e Eleanor Olcott — Financial Times, de Cingapura, Pequim e Hong Kong
18/10/2022 05h01 Atualizado há 4 horas
Tanques de peixes foram abandonados, campos de bambus e flores foram arrancados. Xi Jinping quer que os agricultores da China cultivem arroz e trigo.
No período que antecedeu o Congresso do Partido Comunista chinês, no qual Xi, 69, deverá ser nomeado para um terceiro mandado, agricultores de toda a China enfrentam ultimatos indesejados das autoridades locais.
Segundo a determinação de Xi de reforçar a segurança alimentar da China diante do que ele vê como um Ocidente hostil liderado pelos EUA, eles foram instruídos a desviar recursos de agronegócios lucrativos para produtos básicos.
Esses decretos representam um distanciamento das reformas agrícolas históricas que, no fim dos anos 70 e começo dos anos 80, estabeleceram a base para a rápida transformação da China na segunda maior economia do mundo.
Também mostram o tipo de país que a China se tornou sob Xi, o líder mais poderoso do PC desde seu herói revolucionário, Mao Tsé-tung. A recondução de Xi para um terceiro mandato representará o ápice de sua implacável centralização do poder na última década, que deu a ele mais liberdade para agir mais decisivamente que seus antecessores – e políticos democraticamente eleitos no Ocidente.
Mas essa centralização veio com riscos enormes. Ela poderá diminuir o dinamismo que tem sido a marca registrada da China desde que as reformas econômicas começaram há mais de 40 anos. E poderá privar a China dos mecanismos de autocorreção implementado pelo PC nas últimas décadas – expondo a vida de uma nação de 1,4 bilhão habitantes aos caprichos de um único líder.
Políticas de Xi, líder mais poderoso desde Mao Tsé-tung, revertem reformas que tornaram a China em uma potência
Os novos editais agrícolas estão em linha com outras decisões políticas em áreas que vão de tecnologia e imobiliária à covid-19, em que os custos parecem cada vez mais superar os benefícios.
Crescem as evidências de que o domínio de Xi sobre o partido – desde que ele subiu ao poder em 2012 – e o domínio cada vez maior do partido sobre a economia e a sociedade civil, tornou muito mais difícil para a China modificar, quanto mais reverter, decisões potencialmente danosas.
Lance Gore, especialista em China do East Asian Institute da Universidade Nacional de Cingapura, afirma que Xi está “indo na direção errada”. “Quanto espaço você dá ao mercado e aos burocratas de escalões mais baixos, quanta liberdade você permite que os indivíduos tenham – estas são ainda mais fundamentais do que certas questões políticas”, afirma ele. “Com o passar do tempo, as consequências vão aparecer.”
Para seus admiradores, Xi é o líder certo no momento certo – um sábio e corajoso “timoneiro” que rejuvenesceu um partido fraco dominado por grupos de interesses corruptos e enfrentou o que eles veem como os esforços liderados pelos EUA para conter a China.
Na visão dessas pessoas, a repressão de Xi ao movimento pró-democracia em Hong Kong e os exercícios militares sem precedentes ao redor de Taiwan em agosto foram todas medidas necessárias para proteger os interesses de segurança nacional do país da interferência dos EUA e outras “forças estrangeiras hostis”.
“Xi teve muitas conquistas em seus dois primeiros mandatos e elas serão reconhecidas durante o congresso do Partido Comunista”, diz Tam Yiu-chung, defensor de Pequim em Hong Kong e o único representante do território no comitê permanente do parlamento chinês, o Congresso Nacional do Povo. “Quando nossa soberania é desafiada e quando nossos interesses de desenvolvimento são prejudicados, a segurança nacional precisa ser enfatizada e protegida.”
Centralização do poder torna mais difícil modificar ou reverter decisões danosas, como a política de covid zero
Para os apoiadores de Xi, sua insistência e acabar com todo e qualquer surto de covid poderá ter um enorme custo econômico, mas eles afirmam que esse é o preço que a China precisa pagar para salvar milhões de vidas – algo que os políticos dos EUA não são capazes ou não têm disposição para fazer.
Os críticos de Xi rebatem afirmando que sua aparente força, na verdade, sinaliza o enrijecimento do sistema político da China dominado pelo Partido. “A centralização de poder de Xi criou muitos problemas”, afirma um acadêmico de alto escalão e assessor politico do governo em Pequim. “Na superfície, Xi e o governo central têm a palavra final sobre tudo”, acrescenta ele. “Mas como um líder pode controlar 1,4 bilhão de pessoas? É impossível você espiar o que todo mundo está fazendo e pensando.”
O “Financial Times” conversou com mais de duas dezenas de agricultores, executivos, autoridades do governo, assessores do governo e acadêmicos chineses para esta reportagem. A maioria pediu para não ter o nome revelado, citando possíveis repercussões por dizer qualquer coisa percebida como crítica a Xi e suas políticas.
Sem saída fácil. Sob Deng Xiaoping, que emergiu como o líder da China após a morte de Mao em 1976, os agricultores receberam mais liberdade para cultivar o que queriam em busca de lucro – o começo de um processo de acúmulo de capital que financiaria a ascensão de muitas indústrias manufatureiras imbatíveis no cenário global. Ao mesmo tempo, Deng buscou melhorar as relações com os EUA, seus ricos aliados asiáticos e da Europa ocidental, enquanto abria a China ao comércio global.
Esse consenso de política externa já estava se desfazendo antes de Xi assumir o poder, mas em sua primeira década como principal líder do PC, ele abandonou esse e muitos outros princípios econômicos e geopolíticos de Deng.
As iniciativas de política interna de Xi de restringir o poder de empreendedores de tecnologia do setor privado, como Jack Ma, da Alibaba, ao mesmo tempo em que controlava os preços desenfreados no setor imobiliário, paralisaram dois dos motores mais importantes do crescimento econômico.
As duas políticas são parte da agenda mais ampla de “prosperidade comum” de Xi, que visa resolver finalmente a desigualdade crônica de riqueza e reduzir os insustentáveis níveis altos de endividamento. Os apoiadores dessa agenda afirmam que a supervisão mais rígida das grandes empresas de tecnologia era necessária há tempos e também seria consistente com as tendências reguladoras nos EUA e União Europeia. Eles acrescentam que a bolha imobiliária da China era insustentável e precisava ser esvaziada.
“As empresas de tecnologia e a Alibaba em particular, estavam no radar do governo porque ficaram grandes demais”, diz um investidor em tecnologia de Xangai. “O governo deve impor regras para garantir a competição no mercado e proteger os compradores.”
Quanto ao controle do setor imobiliário, Michael Pettis, professor de finanças da Universidade de Pequim, diz que “isso deveria ter sido feito dez anos atrás”, dada a dependência excessiva da China de atividades movidas a endividamento para o seu crescimento.
“Mas não há uma saída fácil”, diz Pettis. “Há apenas uma ruim e uma pior. Uma parte muito grande do crescimento da China foi impulsionada pelos gastos com infraestrutura e imobiliários, portando é bom que as autoridades tenham contido o setor imobiliário.”
A repressão de Xi sobre as empresas de tecnologia também coincidiu com o endurecimento das políticas para Hong Kong e Taiwan que intensificaram as tensões com os EUA, que responderam restringindo o acesso de empresas chinesas a semicondutores e outros componentes críticos.
“Xi tem uma relação tensa com os EUA”, afirma Gore da Universidade Nacional de Cingapura. “Não sei quanta inovação a China pode ter quanto você está competindo no nível mais alto com os EUA e não tem aquele tipo de vitalidade e criatividade. Espero que ele possa se ajustar.”
Mas há alguns sinais de que Xi quer ajustar sua abordagem. E para alguns críticos, isso significa que ele poderá dobrar o que já parecem ser grandes riscos políticos.
Alguns especialistas apontam para os muitos paralelos entre a política de covid zero de Xi e a infame política do filho único, lançada em 1979. Ambas foram fiscalizadas brutalmente e arbitrariamente por autoridades locais, reagindo a diretrizes políticas claras mas vagas, exercendo um poder descontrolado em seus domínios. As duas políticas se mostraram desastrosas para a economia – a da covid zero no curto prazo e a do filho único no longo prazo, dadas suas consequências demográficas.
“Há muitos paralelos que mostram o quanto será difícil reverter a covid zero no curto prazo”, afirma Wang Feng, sociólogo e especialista em China da Universidade da Califórnia em Irvine. “Na época, o tamanho da população da China era considerado uma emergência nacional e todas as medidas foram tomadas para reduzi-la por meio de esterilizações forçadas e abortos. Foi muito difícil para o governo recuar nessa política, apesar dos excessos que ela causou, por causa da enorme burocracia estabelecida para aplicá-la.”
Semelhante à política do filho único, a covid zero gerou uma ampla e lucrativa infraestrutura de testagem e centros de quarentena com demandas enormes por suprimentos médicos. Autoridades locais também estão sendo julgadas principalmente – ou mesmo exclusivamente – pela maneira como implementam essa política.
Mas as reservas que os pares de Xi têm com suas políticas não provocaram fortes reações políticas porque eles temem as possíveis consequências pessoais de enfrentar o líder supremo, especialmente dada a intensidade de sua longa campanha contra a corrupção. Joseph Torigian, especialista em política de elite da China e da era soviética da American University de Washington, observa que a China tem um “sistema extraordinariamente amigável ao líder”, especialmente quando comandado por uma figura poderosa como Xi ou Mao. “Simplesmente não há um gatilho para um líder ser afastado do poder por ele ter se saído mal.”
Também temem minar o partido e seu controle do poder, o que representa a garantia suprema dos privilégios extraordinários de que eles e suas famílias gozam – um medo encapsulado, segundo Torigian, pela expressão chinesa “tou shu ji qi”, que pode ser traduzida como “se você atirar no rato, pode acertar o vaso”.
“Mesmo quando reclamam, as pessoas de dentro do partido entendem que ter um líder forte – alguém com a autoridade para bater na mesa e tomar decisões – é um fator estabilizador”, diz Torigian. “Mao e Deng cometeram erros catastróficos, mas havia um efeito de mobilização mesmo que essas crises tenham sido criadas por decisões políticas ruins”, acrescentou.
Conflito no campo. O impacto – e os potenciais perigos – de se ter um líder todo poderoso é evidente nos decretos entregues aos agricultores. Parte da motivação dos esforços de Xi para melhorar a segurança alimentar foi a guerra comercial com os EUA iniciada em 2018, durante a qual seu governo impôs tarifas retaliatórias ao trigo, soja e outras commodities agrícolas americanas.
Também se encaixou em um esforço maior para aumentar a autossuficiência da China. As autoridades chinesas ficaram alarmadas com a capacidade do presidente dos EUA, Joe Biden, de reunir os aliados de Washington em uma “frente unida” em uma série de questões, como confrontar Pequim e se opor à invasão da Ucrânia pela Rússia.
Mas ao fazer isso, Xi está retrocedendo campanhas anteriores para rejuvenescer as áreas rurais e eliminar a pobreza. No ano passado, Xi declarou que a guerra do Partido contra a pobreza havia sido vencida. Um empreendedor rural da província de Hubei, no centro do país, disse ao “FT” que demitiu 20 de seus 40 funcionários neste ano, depois que as autoridades lhe ordenaram para transformar seus viveiros em arrozais. “Oito deles estavam vivendo na pobreza quando os contratei. Agora, eles estão pobres novamente, graças ao esforço de segurança alimentar do presidente Xi”, disse ele.
Uma autoridade da província de Zhejiang, onde Xi atuou como principal funcionário do Partido de 2002 a 2007, diz que ele e outros não tiveram escolha a não ser implementar a política de segurança alimentar do governo – e que vai tentar descobrir como melhorar seus impactos negativos mais tarde. No segundo trimestre, essa autoridade e seus colegas do condado de Wencheng destruíram as mudas de um tipo de bambu dos agricultores locais, prometendo a eles uma compensação que equivale e menos de 10% dos lucros que esperavam ter com a colheita.
“Converter campos para grãos é uma política nacional que todos devem seguir”, afirma a autoridade. “Os interesses pessoais dever dar lugar ao objetivo nacional da autossuficiência em alimentos. Vamos examinar meios para tornar o cultivo de arroz mais lucrativo.”
Para pelo menos um agricultor em Jinhua, uma cidade da província de Zhejiang famosa pelo seu setor de flores, o líder chinês é ainda mais poderoso do que o clima. “Desde os tempos antigos o clima sempre foi a maior preocupação dos agricultores”, diz ele, que foi forçado a fechar seu viveiro de árvores e de plantas de 40 hectares em Jinhua neste ano, e passou a cultivar arroz. “Agora nosso maior risco é a política do governo. Você nunca sabe quando sua fazenda, que até poucos anos atrás recebiam apoio, se tornarão ilegais.”
Um executivo de investimentos chinês disse que as operações do fundo soberano do país, o China Investment Corporation (CIC), também foram afetadas pelos esforços de segurança alimentar de Xi, assim como por sua insistência de que o Partido assuma um papel de liderança em todas as esferas da economia e da sociedade civil. “Há alguns anos, o CIC buscava ativamente oportunidades de investimentos agrícolas no exterior – agora, está focado em garantir o abastecimento interno”, diz ele.
“O presidente do CIC não precisa participar das reuniões do comitê de investimentos, mas ele estará presente em cada reunião do comitê do PC e os funcionários devem passar por um teste escrito sobre o desenvolvimento do Partido para serem considerados para promoções… A suposição é de que bons membros do Partido também serão investidores sábios.”
Desmond Shum, empresário chinês que tinha negócios com algumas das famílias mais poderosas do país e hoje vive no Reino Unido, prevê que essa centralização no PC continuará no terceiro mandato de Xi. “Dado o quanto Xi mudou a China na última década, é bastante assustador pensar que ele poderá ser ainda mais radical.”
Rejeitando tais críticas, Victor Gao, um ex-diplomata chinês e tradutor de Deng, argumenta que a China precisa de um período prolongado de liderança decisiva que Xi provou ser capaz de oferecer.
“O Partido está mais unido do que nunca sob a liderança suprema de Xi Jinping”, diz Gao. “A China precisa de um líder forte que não ceda às pressões dos países estrangeiros e possa defender os interesses nacionais da China no cenário global. Xi Jinping mostrou ser o líder que a China precisava.”
Gao acrescenta que pode até imaginar Xi sendo nomeado para um quinto mandato como presidente em 2033, quando fará 80 anos. “Por que não?”, pergunta Gao. “Quando Deng tinha 80 ele estava no auge de sua carreira.” (Tradução de Mario Zamarian)
Fonte: FT / Valor Econômico

