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Em 1977, um grupo de estudantes de física do Novo México, nos Estados Unidos, tentou financiar seus projetos de pesquisa de um jeito nada convencional. Armados de um chip rudimentar escondido na sola de um sapato e um receptor de sinais no arame de um sutiã, desenvolveram um algoritmo para prever o resultado do jogo de roleta. Mas a iniciativa logo foi abortada, quando os jovens perceberam que seguranças dos cassinos começavam a desconfiar.
Um dos participantes da iniciativa foi J. (James) Doyne Farmer, que considera o episódio o primeiro momento em que se interessou por temas ligados à economia. A história é contada no livro “Making Sense of Chaos: a Better Economics for a Better World” (Dar sentido ao caos: uma economia melhor para um mundo melhor), que Martin Wolf elegeu como um dos melhores livros de economia do primeiro semestre no “Financial Times”. Hoje, Farmer dirige o programa de economia da complexidade do Instituto para o Novo Pensamento Econômico, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Farmer conta que passou da física à economia na década de 1980, quando trabalhou no Laboratório Nacional de Los Alamos, com uma bolsa Oppenheimer, e no Instituto Santa Fé, no Novo México. Em 1987, esta última instituição organizou a conferência “A economia como sistema evolutivo complexo”, que reuniu dez físicos e dez economistas. O evento ficou conhecido pela dificuldade de comunicação entre os dois grupos, mas, para Farmer, foi o momento que o instigou a mergulhar em temas econômicos.
Desde então, o físico tornado economista se dedica a aplicar as ferramentas das teorias da complexidade e a modelagem baseada em agentes à finança e ao comércio, recorrendo ao crescente poder de processamento dos computadores. Ciclos econômicos, avanços tecnológicos e choques de oferta foram objeto de modelização, usando as bases de dados cada vez mais completas disponibilizadas por governos e empresas. No limite, diz, seria possível colocar toda a economia global dentro de uma simulação, ajudando a planejar políticas públicas e a evitar novas crises.
Em 2020, no início da pandemia, a equipe de Farmer calculou os efeitos do isolamento social na economia, dependendo de sua duração. O resultado ficou próximo ao que de fato aconteceu, diz o pesquisador. Outra simulação toma as condições econômicas da década de 2000 e mostra que, em poucos anos, uma crise ocorreria. Hoje, as principais simulações dizem respeito à transição ecológica, para a qual Farmer demonstra otimismo: com o rápido avanço da energia sustentável, já vale a pena mudar para uma economia de baixo carbono, mesmo sem levar em conta os custos do aquecimento global.
Valor: Sua equipe fez vários trabalhos na pandemia. Em Nova York, mostrou que um isolamento antecipado salvaria vidas. No Reino Unido, enfatizou setores críticos para manter o impacto baixo. Sabemos o que fazer quando vier a próxima pandemia ou cada caso é um caso?
J. Doyne Farmer: Um pouco dos dois. Se tivermos outra pandemia, saberemos melhor como lidar com ela. Teremos melhores ferramentas e também experiência. Por outro lado, cada incidente é diferente. Ao longo da vida, lembro de crises como a estagflação nos anos 70, a bolha tecnológica, o crash de 2008, a pandemia. Todas muito singulares. Só que a história pode não se repetir, mas tem seu jeito de rimar. Nós aprendemos com esses eventos. E agora podemos tirar vantagem de big data e computadores, que nos orientam melhor, coletivamente. Os seres humanos são uma espécie peculiar. Podemos ser muito inteligentes individualmente. Coletivamente, fazemos coisas incríveis em certos contextos e, em outros, somos idiotas completos. A mudança climática é um exemplo, porque todos sabemos que precisamos lidar com ela, mas não conseguimos.
Valor: Mas seu argumento sobre o clima é otimista. O sr. diz que, com a tecnologia atual, mesmo sem mudança climática seria economicamente vantajoso fazer a transição para as energias renováveis.
Farmer: Totalmente. A narrativa está se alterando e espero fazer parte dessa transformação. A mudança climática deixa de ser uma batata quente que passamos de mão em mão nas reuniões da COP e se torna uma oportunidade de investimento e desenvolvimento, algo em que as pessoas queiram se envolver. Quem entender isso primeiro é que mais vai se beneficiar.
Valor: É por causa do barateamento de fontes como a solar e a eólica?
Farmer: Isso é importante e o barateamento vai continuar. Todo período de transição cria perigos e oportunidades. Também aumenta a necessidade de administrar as coisas com cuidado. Há o perigo da transição desordenada, em que todas as empresas de combustíveis fósseis quebram ao mesmo tempo, causando uma crise. Ou se aposentarmos os combustíveis fósseis rápido demais, ficando sem energia de reserva. Não estou tão preocupado com isso, mas é uma possibilidade e devemos ter cuidado. É claro que vamos encalhar muitos ativos, mas neste momento é um desperdício continuar construindo infraestrutura de combustíveis fósseis. Perfurar novos poços de petróleo é insensato.
Valor: E quanto ao avanço tecnológico?
Farmer: Estamos trabalhando em novas modelagens, para prever onde estaremos, e quando, na transição. As tecnologias seguem uma curva em “S” que é notavelmente regular. Coletamos dados sobre 47 tecnologias diferentes, de morteiros a mísseis, ferrovias a celulares. Todas seguem tendências muito semelhantes, em que o avanço começa devagar, depois cresce exponencialmente antes de chegar ao máximo. Nas renováveis, nem chegamos à taxa máxima de mudança.
Valor: A sua startup, a Macrocosm, faz previsões para empresas. O que atrai o interesse dos clientes?
Farmer: Neste momento, temos trabalhado muito com a transição climática. Um cliente é uma seguradora preocupada com apólices das cadeias de suprimentos. O modelo que usamos na pandemia também ajuda a pensar os riscos e efeitos indiretos de crises de cadeia de suprimentos. Quando um desastre acontece no Japão, por exemplo, o choque atinge algumas empresas; se elas fornecem peças para outras, estas também são afetadas. É um efeito dominó.
Valor: Convivemos com choques de suprimento desde 2022.
Farmer: Certo. Usamos esse modelo para prever coisas assim. Muitas empresas se preocupam com a transição. Os bancos estão preocupados com quanto capital devem deixar em reserva para o caso de uma transição desordenada causar uma crise financeira. As empresas individuais se preocupam com a estratégia a adotar, a tecnologia em que devem investir.
Valor: Com modelos baseados em agentes podemos prever, a partir das condições dos anos 2000, que viria um crash como o de 2008. Com as condições atuais, podemos prever a próxima crise?
Farmer: Podemos prever muitas coisas, mas nem tudo. Sempre podemos ser pegos de surpresa, mas acho que muitos problemas que enfrentamos eram previsíveis. Os que vêm de dentro da economia são mais previsíveis que os de fora, claro. A covid teria sido imprevisível para um modelo econômico. Mas a crise de 2008, com as ferramentas certas, seria previsível. Um aspecto da nossa capacidade de prever e decidir é que, quando a crise é prevista, acaba sendo menos dramática, porque tomamos as medidas necessárias. É difícil dizer o que aconteceria se a decisão não fosse tomada. A prova dos noves virá se pudermos fazer a economia funcionar melhor prevendo gargalos e evitando-os.
Valor: Se lançarmos no modelo a inflação e os juros mais altos, podemos receber resultados que nos mostrem o que devemos temer ou esperar?
Farmer: Gostaria que nosso modelo fosse desenvolvido o suficiente para responder. Desenvolver o modelo macroeconômico a ponto de estarmos convencidos de que tudo funciona bem, para que possamos fazer esse tipo de pergunta, esse é o nosso objetivo.
Valor: O sr. evoca a ideia de modelar toda a economia global. Temos o poder de processamento para fazê-lo?
Farmer: Já fazemos isso até certo ponto. O modelo de William Nordhaus para a mudança climática é um pouco assim. Mas há um agente representativo, uma só família, que toma decisões sobre quanto investir a cada ano. É um modelo do mundo, mas a questão é a resolução. Hoje, já construímos um modelo com resolução setorial de milhões de agentes, para diferentes demografias em diferentes países. Está em desenvolvimento, ainda faz coisas que sabemos serem erradas. Mas é viável, dentro de alguns anos vamos usá-lo rotineiramente. Já passamos do nível do setor para o da empresa, mas não temos uma boa amostra de empresas. Não entendemos bem como elas se conectam, quem fornece insumos para quem. Mas temos trabalhadores, que trabalham para as empresas. As famílias consomem as coisas que as empresas produzem. Imitamos tudo que acontece na economia real.
Valor: Os exemplos que o sr. apresenta envolvem uma boa dose de política pública. O sr. as vê como ferramentas de planejamento?
Farmer: Vejo, de fato, mas é preciso qualificar essa afirmação. Eu jamais proporia um retorno à economia com planejamento central. Há muitos detalhes que não dá para planejar, além dos incentivos. Mas poderíamos ter mais orientação. Por exemplo, para entender aonde leva tal ou tal decisão de política econômica. Se tal política for adotada, qual será o resultado? E tal outra? Com isso, é possível apresentar os resultados aos cidadãos, para que decidam qual é melhor. Quem costuma tomar essa decisão são os representantes eleitos, mas muitas vezes sem saber aonde a política vai levar. Se tivermos ferramentas melhores, poderemos planejar de forma mais eficaz.
Valor: O sr. passou dez anos escrevendo o livro. O que o motivou?
Farmer: Eu quis escrevê-lo para me comunicar com um público maior. É difícil fazer com que nosso trabalho penetre na economia convencional, então pensei que o melhor seria contorná-la. Essa é minha estratégia atual: não me preocupo mais em convencer os economistas.
Valor: Mas suponho que alguns leiam o livro. Houve retornos?
Farmer: Não sinto que estejam lendo o livro, para ser honesto. Alguns amigos e colegas economistas estão interessados no trabalho. O livro foi endossado por [Lawrence] Summers. Isso me surpreendeu. Enviei o livro antecipadamente a ele, para me certificar de que ele não tinha reservas quanto à maneira como descrevi as cenas onde seu nome aparece. Ele respondeu e, para meu espanto, tinha lido o livro. Disse que gostou e que os argumentos são bons. Corrigiu alguns erros em minhas descrições da economia convencional. Outros amigos, como John Geanakoplos e Andrew Lo, deram endossos. Tive respostas positivas, mas não sinto que o livro seja amplamente lido entre economistas. A principal reação ao que estamos fazendo, entre economistas, é ignorar.
Valor: O sr. conheceu Summers em 1987, na conferência que reuniu economistas e físicos. Relatos do evento dão conta de que os físicos detestaram o modo como os economistas trabalham, inclusive as ferramentas matemáticas. Foi assim mesmo?
Farmer: Grosso modo, está certo. Mas não foi a matemática que incomodou os físicos. Na verdade, foram os pressupostos e fundamentos. As expectativas racionais, por exemplo, eram algo a que todos os físicos reagiam de forma bastante alérgica. A noção de equilíbrio também. Em retrospecto, posso dizer que os físicos, e naquela época eu era um deles, não entendiam o equilíbrio em economia. Houve um momento em que [Philip] Anderson disse a um economista: “Você não acredita nisso de verdade, acredita?”. Mas foi uma interação interessante e teve um grande impacto em mim. Até então, eu nem sonhava em me envolver com economia.
Valor: O sr. diz que a economia resiste a adotar as ferramentas da complexidade. Por quê?
Farmer: Uma razão importante é que a economia foi colonizada por matemáticos, e não por físicos. Até cerca de 1960, a economia era um campo mais discursivo. Houve alguma matemática introduzida por pessoas como [Alfred] Marshall. Mas [Paul] Samuelson era um matemático. [Kenneth] Arrow e [Gérard] Debreu eram matemáticos. Já a biologia, por exemplo, foi colonizada por físicos, o que afeta o tipo de linguagem e raciocínio dos biólogos. Os economistas também temem que os físicos tentem colonizar sua disciplina.
Valor: Por quê?
Farmer: O que os físicos instintivamente fazem quando começam a trabalhar em economia é diferente da maneira como os economistas abordam as coisas. Eles introduzem noções sutis que levam a conclusões contraintuitivas. Ao contrário dos átomos, as pessoas pensam. No livro, falo sobre o mundo inexplorado da racionalidade limitada e o fato de que pessoas reais são complicadas, e complicadas de jeitos variados. Como modelar um mundo de pessoas pensando de tantos modos diferentes? Os economistas fizeram uma hipótese ousada: que todos têm expectativas racionais. É possível usá-la em várias previsões úteis, sobretudo em situações simples. Já os físicos entram pela “porta dos fundos da inteligência zero”, supondo que as pessoas agem pela tentativa e erro. Em seguida, refinam as previsões adicionando inteligência. Ambas as perspectivas são úteis no mundo selvagem da racionalidade limitada. O ideal é achar o meio-termo entre elas.
Valor: Desde a década de 1970, quando o sr. foi parte de um grupo que tentou usar computadores para prever o resultado da roleta, o jogo não mudou, mas a tecnologia avançou muito. Hoje, pode haver gente vencendo os cassinos?
Farmer: É possível. Lembro de um relato, alguns anos atrás, de alguém que conseguiu um ganho enorme na roleta, e havia suspeita de manipulação. Hoje, a tecnologia é muito melhor. Só que, quando tivemos nossa ideia, era algo desconhecido. Os cassinos não estavam alertas. Quem for usar nosso método precisa adotar uma série de comportamentos e os cassinos podem identificá-los. É preciso apostar no último instante e espalhar a aposta em alguns números próximos, reduzindo o risco de que a bolinha caia na casa de um lado ou outro. Embora fosse novidade, quando estava no cassino enviando os dados para quem fazia as apostas, cheguei a ouvir um detetive sussurrando suspeitas sobre minha colega. É claro que entrei em pânico e fomos embora. Hoje, o nível de alerta deve ser bem maior. Outra coisa é que a roleta mudou sutilmente. As bolas quicam mais do que no passado, o que as torna mais aleatórias.
Fonte: Valor Econômico

