Companhias dos ramos de alimentos, vestuário, bares e restaurantes, planos de saúde e até de luxo podem ser impactados com uma redução de preços da caneta emagrecedora
PorJuliana Steil
Valor — São Paulo
A popularidade do Ozempic (semaglutida) tem o potencial de impactar diversos setores na economia brasileira, de vestuário ao mercado de luxo, passando pelos alimentos — em especial os ultraprocessados —, nos próximos anos. Pelo menos, é isso o que diz o relatório da Ace Capital, ao qual o Valor teve acesso, e que analisa os efeitos de uma possível redução de preço da caneta injetável emagrecedora a partir da queda da patente do princípio ativo, prevista para 2026 no Brasil.
No Brasil, 20,3% dos brasileiros adultos eram obesos em 2019, com aumento observado tanto no sexo feminino quanto no masculino nos últimos anos, conforme o relatório do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2023.
Em uma projeção da World Obesity Federation (Federação Mundial de Obesidade, em português), o Brasil deve ter 41% da população adulta com obesidade em 2035, caso os números continuem com a tendência atual. O impacto do sobrepeso no PIB nacional em 2035 será de 3%, considerando os gastos com assistência médica, podendo chegar a US$ 75,8 bilhões (cerca de R$ 375,4 bilhões no câmbio atual). A projeção considera que o PIB brasileiro será de US$ 2,54 trilhões naquele ano.
Do outro lado, canetas emagrecedoras
Em 2023, a receita da farmacêutica Novo Nordisk para o mercado privado fechou em R$ 3,7 bilhões. Muito de seu sucesso não vem da indicação principal de uso, no combate à diabetes tipo 2, mas do uso “off label”, para emagrecimento em pouco tempo.
A demanda pela semaglutida é tão alta não só no Brasil, como ao redor do mundo, que o princípio ativo está na lista de drogas em falta mantida pela Food & Drug Administration (FDA), agência reguladora equivalente à Anvisa nos Estados Unidos.
A Novo Nordisk diz que não endossa o uso off-label e alerta, em nota enviada ao Valor: “aprovado e comercializado no Brasil para o tratamento do diabetes tipo 2, [Ozempic] não possui indicação aprovada pelas agências regulatórias nacionais e internacionais para o tratamento de obesidade”.
No Brasil, hoje, uma caixa de Ozempic custa em torno de R$ 1.000 nas principais redes de varejo, mas o preço pode chegar a até R$ 1.280,87, conforme estabelecido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), sendo que cada caixa dura aproximadamente um mês. O valor máximo do remédio é uma fatia de 90% do salário mínimo brasileiro, hoje em R$ 1.421.
Com a queda da patente, o dono dela, neste caso a farmacêutica Novo Nordisk, não tem mais o direito exclusivo de produzir o medicamento. Outros laboratórios, desde que autorizados pela Anvisa, podem passar a fabricar remédios genéricos, que chegam a custar até 50% do preço do fármaco de referência.
Mais baratos e, consequentemente, acessíveis a parcelas maiores da população, a expectativa dos analistas da Ace Capital é que o Ozempic e seus genéricos se tornem ainda mais populares no país.
Impactos em diversos setores
A projeção aponta que o consumo calórico de toda a população somada não deve ter redução relevante, mas que alguns tipos de produtos e serviços podem ter o consumo mais afetado que outros.
Apesar de focar no Ozempic pela sua popularidade, a análise leva em consideração, também, medicamentos antiobesidade semelhantes que já estão no mercado brasileiro: liraglutida (Victoza e Saxenda, da Novo Nordisk) e tirzepatida (Mounjaro, da Eli Lilly).
Sobre a projeção, a Ace destaca:
- O varejo alimentar pode ser afetado caso as pessoas deixem de comer certos tipos de alimentos (como os mais calóricos) e passem a preferir os mais saudáveis. Assim, o consumo de snacks (chocolates, biscoitos e ultraprocessados que substituem refeições) pode diminuir, enquanto o de alimentos saudáveis deve ter sua demanda aumentada;
- O segmento de bares e restaurantes pode ser negativamente afetado a partir da redução do consumo de álcool e da alimentação fora de casa;
Estudos mostram que o uso de medicamentos antiobesidade pode levar a redução de consumo de álcool. “Porém, o mecanismo de ação parece ser outro, agindo sobre mecanismos relacionados a vícios — e isso poderia contribuir também para o tratamento do tabagismo”, diz o relatório. Há projeção de impacto também por conta da redução de alimentação fora de casa.
- O varejo de vestuário pode se beneficiar, já que as pessoas devem renovar seus guarda-roupas para se adequar ao novo peso;
É esperado que indivíduos perdendo de 15% a 20% do peso corporal tenham propensão a comprar novas peças de roupa, diz o relatório.
Com um ticket médio entre R$ 400 (vestuário masculino) e R$ 450 (feminino), conforme números da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) de 2022, a classe A tem um consumo muito superior de vestuário comparado às outras classes de renda.
Sendo esta a classe alvo dos emagrecedores em questão, a ampliação de seu uso provavelmente irá beneficiar varejistas de moda voltados a classes de rendas superiores.
- O setor de “bens aspiracionais” pode se beneficiar com a redução de despesas com alimentação (em consequência da redução de apetite causada pelo medicamento);
A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE mostrou que historicamente os gastos com manutenção do lar, joias, aquisição de veículos, viagens e planos e/ou seguros saúde aumenta de duas a sete vezes conforme a renda familiar cresce.
“Assumimos que a sobra de renda será gasta com bens ou serviços com características aspiracionais, que podem ser identificados como aqueles cujas despesas como proporção da renda aumenta conforme o indivíduo fica mais rico”, diz o relatório. Sob esse aspecto, se beneficiariam os setores de material de construção, joalherias, indústria automobilística, agências de viagens e empresas ligadas à saúde.
- Planos de saúde enfrentarão um dilema sobre subsidiar ou não tais medicamentos.
Isso porque a perda de peso corporal em quem tem obesidade reduz as chances de o paciente desenvolver comorbidades associadas ao nível de gordura no corpo a longo prazo. A possibilidade de economizar com o sinistro pode se tornar atrativo para os convênios.
Segundo a Novo Nordisk, as comorbidades que podem melhorar a longo prazo com a perda de peso são:
- até 5% de perda de peso: hiperglicemia e pressão alta;
- 5% a 10%: síndrome do ovário policístico, doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica, diabetes tipo 2 e colesterol alto;
- 10% e 15%: artrose de joelho, apneia do sono, refluxo gastroesofágico, esteatohepatite e doenças renais;
- mais de 15%: remissão da diabetes tipo 2, insuficiência cardíaca, mortalidade cardiovascular e doenças cardiovasculares.
Impactos são condicionais
Os impactos projetados dos setores listados na análise da Ace Capital dependem do cumprimento ou não de certas condições. Alguns eventos são mais prováveis que outros de acontecer, segundo admite o relatório, mas seus efeitos sobre o consumo não devem ser ignorados para a análise.
Isso, principalmente, devido ao alto custo do medicamento hoje em dia. “Com o alto custo do tratamento, assumimos que a adoção será majoritariamente por classes de renda mais alta, de modo que pode haver efeitos concentrados em alguns setores da economia”, diz o relatório.
Desta forma, para que a semaglutida ganhe espaço entre as classes menos favorecidas, seria preciso, de acordo com a projeção, principalmente o fim da patente da semaglutida no Brasil por parte da Novo Nordisk — abrindo caminho para a produção de genéricos que fariam o preço cair.
Procurada pelo Valor, a Novo Nordisk explicou que a patente da semaglutida estava inicialmente prevista para expirar em 2029 pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
“No entanto, o setor farmacêutico foi impactado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2021 (ADI 5529), impondo efeitos retroativos às patentes de empresas inovadoras em saúde”, diz em nota. Por conta disso, o prazo foi encurtado em três anos, até 2026.
Essa licença varia conforme cada país em que a farmacêutica atua. Os prazos estão todos disponíveis no Annual Report da Novo Nordisk Global:
- Brasil: expira em 2026;
- Estados Unidos: 2032;
- Japão: 2031;
- União Europeia: 2031 na maioria dos países;
- China: 2026.
O princípio ativo liraglutida, por outro lado, perde patente já neste ano no Brasil.
Além da perda de patente, os seguintes fatores impulsionariam os resultados descritos:
- Incorporação da semaglutida nos planos de saúde — com os convênios médicos cobrindo os custos pelo tratamento. Com a redução dos custos, o tratamento preventivo às doenças relacionadas ao sobrepeso pode fazer sentido econômico para os planos de saúde a longo prazo;
- Adição do medicamento ao rol do de Procedimentos e Eventos da Agência Nacional de Saúde (ANS), forçando os planos médicos a ofertarem;
- Oferta de medicamentos genéricos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) pelo programa Farmácia Popular, com desconto ou altamente subsidiado. Atualmente, o único tratamento para obesidade coberto pelo SUS é a cirurgia bariátrica.
EUA já sentem impactos no varejo de alimentos
Não muito longe do Brasil, nos Estados Unidos — onde se estima que 1,7% da população tenha recebido prescrição de um medicamento à base de semaglutida no ano passado, segundo estudo da Epic Research —, as grandes varejistas de alimentos já estão de olho nesse movimento.
Em outubro passado, o CEO da Conagra, Sean Connolly, disse a analistas de Wall Street que a companhia fará os ajustes necessários se os clientes passarem a comer menos e a querer outros tipos de alimentos, segundo a “CNN”.
Naquele mesmo mês, John Furner, CEO do Walmart, disse à “Bloomberg News” que já está notando que clientes consumidores de medicamentos antiobesidade estão comprando menos alimentos. Esses medicamentos reduzem a ingestão calórica diminuindo o apetite.
Estudos apontam que há redução de 24% no consumo total de calorias em indivíduos tomando doses de 1 mg de semaglutida semanalmente.
Fonte: Valor Econômico