Por Colby Smith — Financial Times
31/10/2022 05h03 Atualizado há 6 horas
Em um discurso de oito minutos pronunciado ao pé da cadeia de montanhas rochosas do Estado de Wyoming, no fim de agosto, Jerome Powell tentou sanar as dúvidas que demoravam em se desfazer sobre o grau de compromisso do banco central dos EUA em combater a pior inflação já registrada em décadas.
Invocando o legado de Paul Volcker – um de seus antecessores que derrotou a inflação na década de 1980 -, o atual presidente prometeu que o Federal Reserve “não desistiria da tarefa” até conseguir colocar as pressões nos preços sob controle.
Mas, passados dois meses, está longe de ser óbvio o que exatamente “a tarefa” exigirá. Permanecem enormes incógnitas em torno da rapidez com a qual a inflação assumirá um ritmo mais moderado, do grau das perdas de postos de trabalho, em vista do desaquecimento da economia americana promovida pelo BC do país, e da possibilidade de o sistema financeiro conseguir ou não digerir a rápida escalada dos custos dos empréstimos.
Para o Fed, essa falta de certeza deu início a um amplo debate sobre suas táticas e em que momento saberá ter feito o suficiente.
“Estamos, sem dúvida, entrando em uma nova fase, e a mensagem é muito mais complicada”, diz Julia Coronado, ex-economista do Fed que atualmente dirige a MacroPolicy Perspectives. “Uma coisa é começar do zero e correr atrás do prejuízo… outra é estar num território em que se está, claramente, mais próximo de uma posição restritiva e em que a economia e os mercados globais estão reagindo.”
Até esta altura do ano, o Comitê Federal do Mercado Aberto (Fomc, o comitê de política monetária do BC americano) aumentou sua taxa básica de juros de níveis próximos a zero para 3%, ao adotar apressadamente aumentos de 0,75 ponto percentual em suas três últimas reuniões, num movimento que se tornou uma das campanhas mais agressivas para endurecer a política monetária em sua história de 109 anos. Para fortalecer seus esforços, começou também a encolher seu balanço de quase US$ 9 trilhões.
Crescente grupo de economistas tem chamado a atenção para o risco de o Fed acelerar demais o aperto
O Fomc deverá implementar seu quarto superaumento consecutivo da taxa de juros nesta semana, poucos dias antes das eleições que trazem o risco de quebrar o controle dos democratas sobre o Legislativo e de modificar essencialmente o âmbito das possíveis realizações de Joe Biden no segundo semestre.
Com a popularidade abalada pela alta dos preços e pelos temores de uma recessão, Biden estimulou o Fed a usar seus instrumentos num momento em que seu governo afirma que a inflação é sua “prioridade econômica máxima”.
Mas, com a aproximação do espectro de uma grave retração econômica, os detratores do Fed reforçaram suas críticas. Os democratas estão alertando que o BC corre o risco de pôr em perigo o destino de milhões de americanos ao levar a economia a uma recessão. Crescente grupo de economistas adverte contra uma supercorreção, ao chamar a atenção para o risco de acelerar demais seus movimentos e de quebrar alguma coisa.
A direção estratégica assumida pelo Fed tem colossais repercussões globais, não apenas para o número de BCs que se baseiam nos sinais emitidos pelo dos EUA para combater a inflação como também para as economias em desenvolvimento endividadas, que estão diante de uma inadimplência potencial com a disparada do dólar americano.
Ajustes de política monetária levam algum tempo para alcançar todos os níveis da economia
“[O Federal Reserve está] num lugar incrivelmente difícil”, diz Daleep Singh, que anteriormente encabeçou o grupo de mercados do Fed de Nova York, antes de atuar como vice-diretor do Conselho Econômico Nacional de Biden. “Todo dirigente de banco central no mundo inteiro está realmente se sentindo nervoso, aflito e temeroso de que pode pôr a perder décadas de credibilidade no combate à inflação duramente conquistadas.”
Na superfície, a economia dos Estados Unidos ostenta alguns sinais de força. Mas, com os prejuízos iniciais já causados pela terrível inflação e pelo alto custo do crédito, surgiram fissuras.
O mercado de trabalho continua a registrar aumentos notáveis. Até o atual momento de 2022, foram criados 420 mil novos empregos, em média, a cada mês, número inferior aos 562 mil do mesmo período do ano passado, mas, mesmo assim, bem superior ao que os economistas consideram sustentável. A taxa de desemprego, por seu lado, segue em sua baixa recorde do período pré-pandemia, de 3,5%.
Apesar dos nascentes sinais de afrouxamento, o mercado de trabalho ainda está entre os mais apertados da história do país. Ainda há quase dois postos de trabalho vagos para cada pessoa desempregada. Em muitos Estados, em todo o país, há três. Para superar isso, os empregadores tiveram de aumentar os salários rapidamente, com o ritmo das elevações tendo começado a cair apenas recentemente.
Mas os aumentos de salários foram em grande medida ultrapassados pela inflação, que alcança atualmente a taxa anual de 8,2%. De maneira alarmante, mensurações do núcleo, que excluem itens voláteis como alimentos e energia e incluem categorias como custos com serviços e com habitação, continuam em aceleração, o que sugere que as pressões sobre os preços estão ficando mais difíceis de eliminar.
Qualquer otimismo residual com relação à economia foi ofuscado pela intensidade dos choques dos preços. Embora o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) tenha se recuperado no terceiro trimestre, depois de encolher no primeiro semestre do ano, há sinais claros de que a demanda do consumidor está perdendo força.
O nível da atividade econômica dos EUA também sofreu um baque, ao contrair em outubro pelo quarto mês consecutivo, quando indústrias de transformação e prestadoras de serviços ficaram cada vez mais pessimistas. Isso contribuiu para aliviar as paralisações na ponta da cadeia de suprimentos e empurrou para baixo os custos de transporte marítimo.
Em primeiro plano está o mercado residencial, que está sendo comprimido, num momento em que as taxas de juros do crédito imobiliário de 30 anos superaram os 7% na semana passada, maior percentual desde 2002. Os preços em todo o país entraram em colapso, mas as quedas foram maiores em cidades que vivenciaram os maiores surtos de crescimento desde o início da pandemia.
Os economistas preveem que as fissuras ficarão ainda mais evidentes quando os efeitos da campanha de aperto do Fed começarem a se propagar. Ajustes de política monetária levam tempo para alcançar todos os níveis da economia, e se fazem sentir nos dados muito depois de instaurado o prejuízo. Essa defasagem leva a concluir que o grosso das medidas tomadas pelo Fed até agora – que desencadearam significativa valorização do dólar e diminuíram a demanda por ativos de risco – não se concretizou plenamente até agora.
Também chama a atenção para os custos da lentidão com que o Fed reagiu à inflação, que pensou, inicialmente, ser “transitória”.
“O Fed dificultou grandemente sua tarefa ao esperar até março para começar a elevar as taxas de juros”, diz Randal Quarles, o ex-vice-presidente de supervisão do Fed que saiu da instituição no fim de 2021 e que apoiou que as taxas de juros fossem elevadas no quarto trimestre do ano passado. “Se tivéssemos feito isso, em vista dos descompassos da política monetária, já poderíamos ver quais seriam os efeitos desses aumentos das taxas de juros”, diz.
Muitos agora acreditam que a inflação alcançou seu pico e que é provável que haja uma recessão no ano que vem, o que acalora uma discussão tanto interna no Fed quanto externamente sobre o quanto a instituição deveria apertar mais a economia.
As autoridades mais graduadas deram indícios de ter aumentado a preocupação sobre ter feito muito pouco, em vez de ter agido com exagero, rememorando erros cometidos na década de 1970 que lançaram as sementes da inflação desenfreada. Para evitar uma reedição, o Fed disse que vai esperar se manifestarem sinais significativos de que a inflação voltou a cair na direção de sua meta de 2% antes de suspender temporariamente os aumentos das taxas.
Mas o ritmo dessas elevações tem perturbado alguns. “Cada elevação adicional de 0,75 ponto percentual me faz sentir que o avião vai cair, em vez de pousar suavemente”, diz Ellen Meade, consultora sênior da diretoria do banco central até 2021. “Existe um motivo para andar um pouco mais devagar, que é poder observar e reagir aos efeitos que a sua política tem. Com este ritmo rápido, não se ajudam em nada.”
Algumas autoridades do Fed já começaram a preparar as bases para elevações menores das taxas, como o banco central do Canadá fez na semana passada e o da Austrália no início do mês. “Agora é a hora de começar a planejar um recuo”, disse a presidente do Fed de São Francisco, Mary Daly, na semana passada.
Dezembro pode marcar uma redução do ritmo para incrementos de 0,50 ponto, mas isso dependerá dos dados sobre empregos e inflação que serão divulgados um pouco antes. Também ainda não há um consenso claro entre os responsáveis pela política monetária, e alguns deles se preocupam com a possibilidade de se deixarem enganar por previsões incorretas sobre uma moderação da inflação.
Se fizerem essa redução, as autoridades podem optar por elevar a projeção da taxa básica para o próximo ano para além do nível mediano de 4,6% previsto anteriormente, para prevenir que investidores voltem a precificar prematuramente um distanciamento da política de aperto. Os mercados futuros da taxa de fundos do Fed apontam hoje para um pico de cerca de 5%.
À medida que o Fed segue em frente, a pressão política pesada deve se intensificar. Senadores democratas já subiram o tom de suas críticas – na semana passada, Sherrod Brown, presidente da comissão bancária, e John Hickenlooper (Colorado), juntaram-se a Elizabeth Warren (Massachusetts) e Bernie Sanders (Vermont) nos apelos para que o banco central reconsidere os seus planos.
A preocupação deles é com o nível de emprego. A projeção da maioria das autoridades do Fed é a de que a taxa de desemprego suba para 4,4%, mas muitos economistas de Wall Street e acadêmicos acreditam que essa previsão é otimista demais.
O Deutsche Bank estima que levar a inflação de volta para a meta vai exigir que a taxa de desemprego passe de 5,5%. Laurence Ball, da Universidade Johns Hopkins, argumenta que uma estimativa mais realista é acima de 7%.
Perdas de emprego tão significativas, e a recessão que elas trariam, provocaria mais sofrimento justamente entre aqueles que são menos capazes de suportá-las, o que reverteria a maior parte – senão todos – dos ganhos acumulados na recuperação pós-pandemia.
“Uma das verdades mais lamentáveis da situação atual é que as pessoas que realmente sofrem com a inflação alta – os domicílios de baixa renda – também são as pessoas que vão enfrentar as consequências do aperto”, afirma Stephanie Aaronson, ex-funcionária do Fed que hoje está na Brookings Institution. “Esta é uma situação em que não há como ganhar.”
Outro medo é o de que aconteça uma turbulência financeira que ameace a estabilidade do sistema como um todo.
“Ainda somos o gorila de 400 quilos na economia internacional e, na parte financeira dela, somos o gorila de 4 toneladas”, diz Alan Blinder, que foi vice-presidente do Fed nos anos 1990.
As mais vulneráveis são as economias emergentes e em desenvolvimento mais endividadas, que são afetadas pela alta do dólar e pela elevação rápida dos custos para tomada de crédito. Com 60% dos países de baixa renda em dificuldades com suas dívidas ou perto disso, calotes serão “inevitáveis”, como alertou a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) no mês passado.
A angústia também cresce na Europa, que está diante de uma crise aguda de energia ligada à guerra na Ucrânia. Mesmo que a economia esteja à beira de uma recessão, o Banco Central Europeu (BCE) voltou a seguir o Fed na última quinta-feira e elevou sua taxa referencial em 0,75 ponto percentual para combater a disparada dos custos.
Blinder observa que o impacto de acontecimentos no exterior sobre os EUA ainda é pequeno, mas reconhece que “não é zero”.
A turbulência nos mercados financeiros do Reino Unido no mês passado, embora tenha resultado de erros políticos, é um alerta sobre como acontecimentos imprevistos podem crescer rapidamente e exigir intervenções custosas. “Você não quer estar no lugar do Banco da Inglaterra”, disse Coronado.
Um fator a aumentar as preocupações é a fragilidade do mercado de dívida do governo dos EUA, de US$ 24 trilhões, que é a fundação do sistema financeiro mundial. As condições do comércio de bônus raramente foram tão voláteis e hoje a liquidez flutua em níveis que não eram vistos desde o derretimento de março de 2020.
Na época, o Fed interveio para assegurar que os deslocamentos não provocassem uma crise aberta. Desta vez, o Tesouro discute a possibilidade de recompra de parte de seus bônus para melhorar a liquidez, apesar de sustentar que o mercado como um todo está funcionando.
Tal política exigiria uma explicação clara de que essas intervenções são apenas para garantir a saúde do mercado e não transmitem “nenhum sinal sobre a posição apropriada da política [do Fed]”, disse Singh, da PGIM Fixed Income.
Para outras ex-autoridades, um discurso franco do Fed também seria crucial nos próximos meses, especialmente porque as opiniões têm divergido internamente.
Quarles adverte que o maior desafio para o Fed, que provavelmente surgirá no primeiro trimestre de 2023, será superar uma possível “fratura de mensagem” à medida que os indicadores se tornem menos claros. Para Andrew Levin, um veterano de duas décadas do Fed, o que é mais crítico nesta etapa é que o banco central dos EUA seja claro sobre as dificuldades que vêm pela frente. “Ele deve ao público explicações como aquelas de uma equipe médica, e dizer ‘esta é uma doença muito grave; teremos que levar você para cirurgia e a recuperação será lenta, mas achamos que isso é essencial para a recuperação da sua saúde’”, afirma. (Colaborou Caitlin Gilbert)
Fonte: Valor Econômico

