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O economista brasileiro José Alexandre Scheinkman observa mais uma campanha eleitoral americana de uma posição privilegiada. Professor da Universidade Columbia, em Nova York, e professor emérito da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, ele acompanha desde a década de 70, ao lado de acadêmicos laureados dos EUA, as mudanças de posturas dos democratas e dos republicanos, as apostas em medidas mais ou menos liberais, as divergências e semelhanças dos dois campos.
Neste ano, suas atenções estão bastante voltadas para um cenário de volta do “negacionismo climático” à Casa Branca associado a um populismo de direita, no caso de uma eleição de Donald Trump.
O ex-presidente faz hoje seu discurso na convenção do Partido Republicano. É o momento mais esperado do evento iniciado na segunda-feira em Milwaukee, no Wisconsin. Ao avaliar o legado de Joe Biden e sua candidatura, Scheinkman diz que o democrata retomou uma tradição de mais intervenção do Estado na economia, que vai bem na agenda de clima – apesar das contradições – mas que não deveria buscar um segundo mandato.
“Eu acho que seria melhor que os democratas tivessem outro candidato. Não por causa das questões econômicas, mas por causa da capacidade dele de debater e de ganhar a eleição.” A seguir, os principais trechos da entrevista que Scheinkman concedeu, de Nova York, ao Valor:
Valor: Trump tem como uma de suas principais promessas na seara econômica a criação de tarifas de importação de 10% para todos os produtos que entrarem nos EUA. E de até 60% para todos os produtos da China. É uma receita, segundo os republicanos, para fortalecer a indústria americana. Se Trump for eleito e se essas ideias saírem do papel, quais serão os efeitos?
José Scheinkman: Tivemos uma experiência recente quando o governo Trump impôs muitas proteções tarifárias. Alguns setores se deram muito bem. Por exemplo, o setor do aço. O aço importado fica mais caro e o setor tem um pouco mais de atividade aqui. Mas empresas que fabricam geladeira, por exemplo, e que precisam de aço, passam a ter que pagar mais pelo insumo e transferem a produção para o Canadá. É o mesmo o que acontece com doces. Os Estados Unidos têm uma proteção enorme contra o açúcar. É caro nos Estados Unidos. Então as fábricas estão no Canadá ou estão no México ou no Caribe, lugares que têm acesso ao mercado americano e cujos produtos entram sem impostos.
Valor: Um efeito inevitável dessas eventuais tarifas seria nos preços ao consumidor americano?
Scheinkman: Isso certamente produziria um aumento dos preços e por isso pode ser que Trump, se eleito, não imponha de repente essa cobrança generalizada de 10%, porque aumentaria o preço de muitos produtos. A indústria americana é relativamente pequena em relação ao total da economia. Tem uma participação de cerca de 8%. Então é preciso pensar em todos os outros setores que vão sofrer por conta dessas novas tarifas.
Valor: Uma imposição de tarifas em um governo Trump afetaria as vendas do Brasil?
Scheinkman: Embora impostos adicionais prometidos por Trump possam afetar exportações de alguns bens como aço, a maioria das exportações brasileiras são de insumos como soja, petróleo, minério de ferro e outros, que não devem ser afetados.
Valor: O que mais lhe chama atenção nas promessas de Trump para a economia americana?
Scheinkman: Tem outro aspecto que também parece controverso. Trump, assim como fazem os republicanos desde Ronald Reagan, propõe novamente cortar os impostos daqueles que pagam mais. A tese é ativar a economia, estimular mais investimentos, com mais gastos desses que pagam mais. Só que isso nunca funcionou. Pode até estimular o aumento de produtividade no curto prazo, mas nunca foi suficiente para melhorar a situação fiscal, que é uma marca da ideologia republicana. Mas não há evidência de que isso ocorra. Isso é algo que está sendo tentado não só nos Estados Unidos desde os anos 80, mas também em outros países. Tem um efeito de curto prazo às vezes, mas no longo prazo o que há é uma perda de receita, aumento do déficit fiscal, efeito na política monetária, na taxa de juros. É isso que sempre se viu.
Valor: Que pontos da agenda Trump parecem agradar ao mainstream dos economistas?
Scheinkman: Nessa questão dos impostos, há um debate entre o maisnstream dos economistas sobre se o nível de impostos é ou não muito alto. Acho que há uma unanimidade que alguns gastos do governo são gastos de má qualidade. Nenhum economista sério vai dizer que vale a pena subsidiar carvão neste momento, mas este é um dos gastos do governo. Há também os que avaliam que seriam necessários incentivos para as pessoas deixarem mais cedo o seguro-desemprego e votarem ao mercado de trabalho. Há uma discussão sobre isso e sempre teve muitos economistas bons mais alinhados aos republicanos. O problema é que os republicanos mudaram.
Valor: De que maneira?
Scheinkman: Ficaram muito mais populistas. O governo de George W. Bush tinha ótimos economistas como conselheiros. Ben Bernanke, por exemplo, que saiu de Princeton para o conselho de Bush. Já o governo Trump reuniu nomes muito mais fracos, menos reconhecidos em comparação aos conselheiros típicos dos outros presidentes, sejam eles democratas ou republicanos. Sempre teve um debate sensato baseado em dados, em ideias e estudos empíricos.
Valor: E hoje?
Scheinkman: O problema é que pelo perfil atual dos republicanos parece que não tem uma discussão muito profunda. ‘É ruim ter importação, os Estados Unidos têm que se isolar do mundo’. Colegas que trabalharam para governos republicanos anteriores, a grande maioria deles não conseguiu votar no Trump nas últimas eleições. Não sei agora.
Valor: Trump, no entanto, empolga alguns setores importantes do empresariado americano…
Scheinkman: Onde Trump ficou particularmente popular aqui nos EUA é entre os chamados libertários do Silicon Valley, que não acreditam em Estado. O governo Trump misturou uma certa malevolência com incompetência e para esses libertários a incompetência do Trump fez com que ele não fizesse muita coisa, não se metesse [em temas que afetam negócios das empresas de tecnologia]. Agora, o candidato a vice-presidente [o senador J.D. Vance] é um ex-venture capitalist e é muito identificado com esse grupo.
Valor: Sobre o presidente Joe Biden. Seu governo tem exibido números positivos sobre geração de novos empregos, o PIB americano cresce mais do que de outras economias desenvolvidas e a inflação que teve um pico de 9% há dois anos está numa trajetória de queda. Mas muitos americanos não parecem partilhar dessa percepção positiva. Por que os números não se traduzem em um ambiente de bem-estar para grande parte das famílias dos EUA?
Scheinkman: Eu acho que tem dois fenômenos importantes. Um deles é o das redes sociais. Grande parte das pessoas não se informa hoje. Escuta opiniões e as repete. Não me lembro em nenhum outro momento de tal diferença entre fatos e versões. Os republicanos ficam repetindo que o quadro da economia está muito pior, que o equivalente ao IBGE aqui nos EUA está mentindo, que o Fed [o BC americano] está mentindo, que os bancos estão mentindo e que a grande imprensa também mente com exceção, para muitos eleitores republicanos, da Fox News. Esse é um aspecto. Outro aspecto é que, de fato, os preços subiram na época da pandemia e também nos primeiros dois anos do governo Biden. E não é possível tentar recuar os preços ao que eram. A última vez que um país grande tentou voltar ao nível de preços anterior, não apenas reduzir a inflação, mas voltar aos preços anteriores, foi com [Winston] Churchill. Ele não era ainda o premiê [britânico], estava no comando da economia. Tentou voltar aos preços de antes da Primeira Guerra Mundial, quando houve uma forte inflação porque faltavam produtos. Ele achava que seria possível fazer uma política tão apertada que os preços poderiam voltar. Causou uma recessão enorme na Inglaterra. Não há um economista insano o suficiente para dizer ‘Vamos retornar aos preços de antes’. Mas o fato é que as pessoas se lembram o quanto pagavam por alguns produtos e percebem que hoje é muito mais caro.
Valor: Qual é a diferença mais marcante entre Biden e Trump?
Scheinkman: Para mim, a principal diferença neste momento é a questão do clima. Existe uma diferença enorme na atitude em relação ao aquecimento global. Tanto Trump quanto seu candidato a vice são negacionistas do clima. O vice diz que a mudança climática acontece, mas não por causa da atividade humana. Ou seja, um absurdo, e ele é bem formado. A mulher dele é educada em Cambridge e em Yale. Portanto, quando ele diz que a mudança climática não é provocada pelo petróleo, ele tem que estar mentindo. Não há outra explicação.
Valor: O que o senhor vê como ponto forte da gestão Biden e de sua candidatura?
Scheinkman: As medidas que ele está tentando implementar relacionadas à transação energética. Isso é importante. Tem muita gente entendendo que a situação do clima é séria e que é preciso fazer alguma coisa. Essa postura parece ser um aspecto bastante positivo na gestão Biden.
Valor: Apesar de posturas diferentes nesse campo e dos incentivos à energia limpa, Biden não deixou de apoiar os combustíveis fósseis.
Scheinkman: Biden, de fato, tem tido comportamento contraditório em relação ao petróleo. Ele aprovou o projeto Willow para produzir no Alasca e depois vetou expansão no Ártico. Do lado da demanda, os democratas desistiram de propor uma taxação adicional em combustíveis. Hoje, a melhor forma de lidar com aquecimento, que é taxação dos combustíveis, tem-se mostrado muito impopular. Em vez disso, a administração Biden resolveu subsidiar a produção de alternativas – solar, eólica, carro elétrico – mas isto, além de afetar o fiscal, vai tomar tempo para realmente diminuir a demanda nos EUA.
Valor: Biden subiu fortemente as tarifas de importação de placas solares equipamentos para energia eólica e também de carros elétricos vindos da China, como forma de apoiar a indústria local contra a concorrência externa. Trump já tinha adotado medidas desse tipo. Os dois se alinham quando no que pode ser visto como protecionismo?
Scheinkman: Os dois. Aqui sempre houve um partido que era mais a favor de uma economia liberal, o Republicano; e outro, o Democrata, que acreditava em um modelo de maior intervenção do Estado na economia. Isso sempre foi claro. Mas isso acabou. O Partido Democrata, com [Bill] Clinton, se tornou um pouco menos intervencionista do que era antigamente. Ele e [Barack] Obama tiveram uma política mais liberal. Biden voltou um pouco para uma postura de intervencionismo. E o Partido Republicano hoje é um partido populista de direita, é o partido do Trump e o populismo de direita nunca foi liberal.
Valor: Se essa fórmula vencer, que país os Estados Unidos se tornarão sob um novo governo com a marca de populismo de direita?
Scheinkman: Acho que os Estados Unidos vão se tornar um país menos eficiente e, eventualmente, mais pobre. Nunca vi um governo populista de direita que deu certo no longo prazo. O histórico do populismo de direita, assim como o histórico do populismo de esquerda, é sempre ruim para a economia.
Fonte: Valor Econômico

