O fim de 2024 foi marcado por uma forte onda de estresse nos mercados domésticos, que obrigou o Tesouro Nacional e o Banco Central (BC) a promoverem intervenções em série para conter uma espiral negativa nos preços. De lá para cá, o dólar saiu da faixa dos R$ 6,30 para R$ 5,40; o Ibovespa passou dos 120 mil pontos para 143 mil pontos; e a taxa dos contratos de DI para 2029 recuou de 15,70% para 13,35%. Por razões macroeconômicas e técnicas, no entanto, os juros reais extraídos das NTN-Bs não experimentaram alívio algum.
Para além dos problemas fiscais do país, profissionais apontam que há sinais de um mercado que lida com um excesso de oferta de títulos, seja pelos leilões volumosos promovidos pelo Tesouro ao longo do ano ou pela forte concorrência das emissões privadas que contam com benefícios fiscais.
No fechamento da sexta-feira, a taxa da NTN-B com vencimento em 2032 voltou a subir e marcou 7,98% no fim do dia, perto da pior marca de 2025 e próxima ao auge da crise do fim do ano passado. Como medida de comparação, no leilão de recompra que o Tesouro precisou promover no fim de 2024, a taxa dos papéis foi negociada a 8,01%.
O estrategista-chefe de macro e dívida pública da Warren Investimentos, Luis Felipe Vital, avalia que ainda persiste o volume muito grande de instrumentos incentivados e que acabam sendo emitidos em um trecho específico da curva.
“No fechamento de 2024, tínhamos o dólar a R$ 6,30 e a NTN-B 2032 a 7,90%. Hoje, o dólar voltou para R$ 5,40 e a NTN-B permanece no mesmo nível. Era um cenário muito diferente, de tensão generalizada e que afetava os diferentes ativos. Atualmente a dificuldade está concentrada apenas nas NTN-Bs”, nota.
Ainda que os leilões extraordinários [“off the run”] neste ano possam ter trazido pressão extra às taxas, já há algumas semanas o Tesouro Nacional vem reduzindo o tamanho dos leilões semanais de NTN-Bs, oferecendo um tempo para a recuperação do mercado.
“Mas a continuidade do benefício [fiscal] segue pressionando a curva. Ainda que o Tesouro faça a parte dele, talvez a sociedade precise discutir esse benefício fiscal. O aspecto da rolagem da dívida o Tesouro já ajustou, já retirou a possibilidade de novos leilões ‘off the run’, mas as [debêntures] incentivadas continuam sendo uma fonte de pressão”, afirma.
De acordo com dados compilados pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), até outubro, o volume emitido de debêntures era de R$ 273 bilhões, dos quais R$ 97 bilhões eram de instrumentos incentivados. Como medida de comparação, nos últimos 12 meses, a emissão de NTN-Bs pelo Tesouro foi de R$ 277 bilhões.
“O mercado de NTN-Bs concentra emissões menores, de maneira geral. Do ponto de vista do Tesouro, é algo como R$ 280 bilhões por ano. Quando você tem R$ 100 bilhões de crédito privado com um benefício fiscal agressivo, acaba pressionando as taxas”, diz Vital.
Outro profissional, em condição de anonimato, afirma que os títulos incentivados acabam fazendo com que o Tesouro Nacional “pague a conta” duas vezes: ao dar a isenção e ao precisar rolar a dívida a taxas muito mais elevadas.
Para Norberto Alves, gestor de renda fixa ativa da Reach Capital, a sobreoferta de títulos gerada pelo Tesouro e pelas emissões privadas criou um ambiente técnico desfavorável no mercado dos papéis atrelados ao IPCA.
“A maioria dos multimercados estão aplicados [aposta em queda das taxas], seja em juros reais ou nominais. É complicado todo mundo sair ao mesmo tempo, gera dúvida sobre quem vai ser o comprador marginal”, diz. No passado, era comum que fundos de pensão absorvessem ondas vendedoras de NTN-B, mas mesmo esses players já estão bastante alocados e, por isso, a saída de investidores desses papéis acaba produzindo um estresse como o das últimas semanas.
Visão similar é compartilhada por Gilberto Kfouri, diretor de investimentos (CIO) da BNP Paribas Asset Management. Segundo ele, o mercado de NTN-B está sem um comprador claro, já que os fundos de pensão não têm confiança de aumentar a exposição aos juros reais mesmo no patamar historicamente elevado em que as taxas se encontram.
“O fator técnico piorou muito”, diz Kfouri, que ainda pontua que esse quadro poderia ter se agravado mais caso o Congresso aprovasse a Medida Provisória (MP) 1.303, que mantinha a isenção das debêntures incentivadas ao passo em que aumentava a tributação, de 15% para 18%, de investimentos de longo prazo. “Do ponto de vista da distorção do mercado, foi bom que essa MP não tenha passado.”
Para ele, essa pressão vinda do mercado de crédito privado sobre as NTN-B não deve arrefecer tão cedo, tendo em vista a enorme vantagem que os investidores carregam ao preferirem os títulos isentos de imposto aos juros reais, mesmo com os rendimentos brutos dos papéis atrelados ao IPCA em patamares bem mais altos.
Do lado da oferta, Alves lembra que só o ano de 2021 registrou uma emissão tão robusta de NTN-B em tempos recentes. Ainda que o Tesouro tenha desacelerado bastante o ritmo neste mês, isso não é suficiente para gerar qualquer alívio nos juros reais. “Não é uma coisa que vai ser aliviada depois de dois leilões pequenos. As ofertas demoram para ser absorvidas, mesmo que haja demanda do mercado pelas NTN-B no momento da venda. É um risco adicionado [dv01] muito grande”, diz o gestor da Reach, que lembra do leilão de 4,5 milhões de NTN-B fora do calendário regular de emissões, realizado em setembro e que gerou uma forte pressão sobre as taxas.
“Talvez [o Tesouro] tenha exagerado um pouco a dose em NTN-B”, corrobora Kfouri, ainda que o executivo da BNP Asset reconheça a necessidade da entidade de ampliar o caixa após ter começado o ano “bem errado” em termos de métricas da gestão da dívida pública.
O gestor de renda fixa da Inter Asset, Ian Lima, concorda que a situação tem tornado mais difícil a vida do Tesouro Nacional. “Pensando em um CDI de 15%, o investidor tem mais de 2 pontos percentuais de retorno excedente só por estar em um incentivado. Ao se observar empresas de qualidade e sem problemas de solvência no radar, com baixa volatilidade, parece um ‘Sharp’ [medida de risco e retorno] muito bom para as pessoas. Não digo que não há riscos à frente, mas, pelo retrovisor, parece ter sido uma alocação boa, e isso é algo que afeta o investidor médio”, afirma.
Lima também lembra que boa parte do desempenho positivo dos ativos brasileiros foi impulsionada pelo investidor estrangeiro. Historicamente, a alocação dessa classe de investidor em NTN-Bs é muito pequena, o que também ajuda a explicar a performance inferior aos demais ativos domésticos.
Além disso, à medida que se consolida a perspectiva no mercado de que o BC, de fato, irá buscar uma inflação de 3%, a autoridade monetária precisará trabalhar com um juro real mais alto.
“Você tem 15% de CDI, o que dá aproximadamente 10% de juro real. Isso vemos nas taxas mais curtas das NTN-Bs, mas, nos vértices intermediários, o juro real já é de 8%. Então, carregar esses títulos acaba sendo doloroso e limita o apetite para comprar NTN-B. Sem falar na implícita, que está ao redor de 5,20% e também exibe um prêmio grande em relação à meta perseguida pelo BC”, afirma.
No entanto, sem uma política fiscal mais equilibrada no horizonte dos investidores, as NTN-B continuarão sem achar um comprador marginal que possa levar ao recuo dos juros reais, alerta Kfouri, da BNP Paribas Asset. “E não tem muita perspectiva de que isso ocorra tão cedo”, diz ele, que não espera uma discussão fiscal já no período de campanha eleitoral no ano que vem.
Fonte: Valor Econômico

