Por Cristiano Romero — De Brasília
29/04/2022 05h01 Atualizado 29/04/2022
Quando o Plano Real foi lançado, em 1994, Felipe Salto tinha 7 anos, mas uma imagem daquele dia segue viva em sua memória. Era 1º de julho e sua professora entrou na sala, entusiasmada, e mostrou nota de 1 real. Mesmo sem ter certeza quanto ao futuro da nova moeda, afinal, todas as que o Brasil lançou sucessivamente desde 1986 perderam rapidamente seu valor, corroído pela hiperinflação, a professora disse algo como “esta nota é a nova moeda e vale muito”.
Não foi ali que Salto despertou para a Economia. Apesar de excelente aluno em matemática, considerou ao longo de sua vida de estudante outras profissões, inclusive, a de jornalista, influenciado pelo avô, leitor compulsivo de jornais. Quando chegou o ano do vestibular, passou para engenharia civil na federal de São Carlos e em Economia, na FGV de São Paulo.
A FGV tem a tradição de oferecer coquetel aos aprovados em seu vestibular. Quis o destino que, naquele ano, o cicerone dos estudantes aprovados para economia fosse o professor Yoshiaki Nakano. Salto expôs o dilema: “Felipe, você quer calcular a resistência de materiais ou ser ministro da Fazenda?”.
Na segunda, Felipe Salto, paulista de Laranjal Paulista, 35 anos, assumiu o comando da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, função que Nakano desempenhou mais de uma vez em governos tucanos. Ainda não é o Ministério da Fazenda, mas é o segundo maior orçamento do país. Na IFI, foi substituído por Daniel Couri, outro especialista em orçamento.
Salto não tem vinculação com partidos políticos, mas não nega de ninguém sua propensão à vida pública. Ele ganhou projeção depois de assumir, há pouco mais de cinco anos, a diretoria-executiva da Instituição Fiscal Independente (IFI), que, como o próprio nome diz, existe para informar ao público, sem arremedos e eufemismos, a verdadeira situação das contas públicas. Basicamente, a IFI, a exemplo das melhores experiências internacionais, nasceu para ser inconveniente no país onde reina o patrimonialismo, isto é, a tendência de grupos específicos da sociedade de considerar o Estado uma propriedade sua.
Ao deixar o cargo, Salto explicou ao Valor que, por causa da nova regra de pagamento dos precatórios, que adia parte do pagamento para anos seguintes, a dívida pública, que já se encontra em nível altíssimo – em torno de 80% do PIB – vai aumentar. A razão: o Banco Central terá que contabilizar imediatamente na dívida os montantes não pagos. É o que determina o parágrafo 7º do artigo 30 da LRF. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Do ponto de vista das contas públicas e de seus efeitos na economia, qual era o Brasil de 2016, quando a IFI foi criada?
Felipe Salto: 2016 foi um dos piores momentos da economia e das contas públicas na história do país. Tanto foi assim que a resposta do governo Michel Temer foi propor o teto de gastos [que limitou, por 20 anos, a variação das despesas primárias (tudo, menos juros da dívida) à inflação, tendo como referência o orçamento de 2016]. Foi uma resposta ao período da chamada ‘contabilidade criativa’. A dívida vinha crescendo desde 2014, o déficit público também e o crescimento da economia não veio. A promessa [do governo Dilma Rousseff] era: ‘Vamos fazer mais gastos públicos, mais desonerações, o [resultado] primário [receitas menos despesas, sem incluir o gasto com juros da dívida] piora um pouco temporariamente, mas a economia vai crescer’. Aconteceu o contrário. Em 2015 e 2016, o PIB teve um tombo acumulado de quase 7%.
Valor: A IFI foi criada, então, nesse contexto?
Salto: Sim, foi a resposta institucional a esse quadro. O Senado decidiu criar um órgão para que essas coisas não se repitam mais.
Valor: De quem foi a ideia?
Salto: Do senador José Serra (PSDB-SP), com quem trabalhei de 2015 a 2016 em Brasília. Ele tinha a ideia de tirar do papel o Conselho de Gestão Fiscal (CGF). Paulo Bijos, consultor do Câmara na área orçamentária, fez estudo, em 2015, sobre o funcionamento de instituições fiscais independentes em vários países. Na época, Renan Calheiros (MDB-AL) presidia o Senado e lançou a ‘Agenda Brasil’, com uma série de propostas muito boas na área fiscal, como a fixação de limite para o crescimento da dívida pública. Com o apoio crucial do Renan, a criação da IFI foi aprovada.
A IFI não é tribunal como o TCU, mas é uma espécie de cão de guarda que não morde, mas late bastante e, por isso, incomoda”
Valor: O CGF seria um novo órgão?
Salto: O CGF está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com base na Constituição, mas nunca saiu do papel. Sua missão seria harmonizar as estatísticas dos Estados, municípios e União. Leonardo Ribeiro, assessor do senador e funcionário da carreira de consultor em orçamento do Senado, propôs que, além da CGF, Serra propusesse a criação da IFI.
Valor: Qual é a principal referência no mundo?
Salto: A mais conhecida é o CBO (Congressional Budget Office). O Reino Unido tem o OBR (Office for Budget Responsibility), menor e mais parecido com o nosso.
Valor: Por que o CGF não sai do papel?
Salto: É mais difícil porque envolve a Federação, que, no Brasil, surgiu de cima para baixo. A meu ver, a única disparidade entre as reuniões do país que justifica a existência do Estado Federativo é a disparidade de renda e riqueza, que é muito grande. É diferente de outros países, onde o federalismo vem de baixo para cima porque já há diferenças entre as regiões e, aí, elas se unem num país federativo. Como o nosso modelo de federação veio de cima [do governo central] para baixo, nunca conseguimos ter um pacto federativo efetivo, em que haja a arbitragem do governo central quanto aos interesses de cada região.
Valor: Que exemplo ilustra a ‘falha’ da nossa Federação?
Salto: Estamos no meio de uma guerra fiscal, não conseguimos aprovar uma reforma tributária relevante, então, na questão federativa, criar o CGF seria muito bom para que a LRF fosse cumprida.
Valor: Os Estados não a cumprem?
Salto: O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, contabiliza gasto com pessoal sem incluir os terceirizados. O Ceará faz de outra forma, São Paulo, idem.
Valor: Afinal, algum Estado segue o que determina a LRF?
Salto: Todos vão lhe dizer que seguem. O problema é que os tribunais de contas dos Estados (TCEs) acabam dando interpretações heterogêneas. Por isso, o CGF é que deveria fazer essa articulação. Seria uma instância decisória, com representantes dos Estados, dos municípios e da União. Seria um colegiado que, assim como o Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária], que trata das questões tributárias, cuidaria de tudo relacionado a normas fiscais.
Estamos no meio da guerra fiscal, não conseguimos aprovar uma reforma tributária relevante”
Valor: Quem faz isso na ausência do CGF?
Salto: O Tesouro Nacional, como determina a lei, exercerá esse papel enquanto o CGF não for criado. E o Tesouro faz o seu trabalho. Recentemente, inclusive, houve um avanço grande.
Valor: Qual?
Salto: Priscila Santana, subsecretária que cuida de entes sub-nacionais, passou a publicar boletins com dados dos entes da Federação. A coisa está melhorando, mas acho que a regulamentação do CGF traria um ganho importante.
Valor: Qual é a importância da IFI?
Salto: Produzir informação para aumentar a transparência das contas públicas e a disciplina fiscal. O único poder das IFIs é produzir informação. Não é tribunal como o TCU, não tem poder judicante. É uma espécie de cão de guarda, que não morde, mas late bastante e, por isso, incomoda. Uma das nossas missões é justamente calcular os impactos de decisões dos três Poderes, inclusive, do Banco Central, cuja atuação nas áreas monetária e cambial têm efeito fiscal. Se é relevante, a IFI tem que calcular.
Valor: Mas, quem decide o que é relevante?
Salto: O conselho diretor, integrado pelo diretor-executivo e os dois diretores, sendo que, no total, nove pessoas trabalham na IFI. É claro que o CBO, a IFI americana, existe desde a década de 1970, tem 300 funcionários, mas os EUA têm tradição democrática, o costume de respeitar estudos independentes. São coisas que o Brasil está construindo e a IFI foi um passo importante.
Valor: Sofreu alguma pressão nestes quase 5,5 anos de gestão?
Salto: Várias. Falamos que a PEC dos Precatórios foi mal desenhada, que vai dar calote no pagamento dos precatórios e que o teto de gastos está correndo risco. Se for efetiva em sua missão de informar, a IFI deve incomodar. Se for se alinhar ao Poder Executivo ou mesmo a lideranças políticas, então, não servirá para nada.
Valor: Houve mais problemas com governos ou com políticos?
Salto: No começo, tivemos resistência grande dentro do Senado. Havia preocupação de que a IFI produziria informações que iam atrapalhar. Fizemos, por exemplo, nota técnica em 2017 que falava do teto de gastos por poder da República e por órgão. A Emenda 95, que criou o teto, incide sobre o gasto de cada órgão público. Na tabela, estava o Senado. Isso gerou incômodo, foi nosso primeiro teste.
Valor: Alguma corporação do setor público reagiu a algum estudo da IFI?
Salto: Sim. Fizemos estudo sobre gastos com Defesa a partir de sugestão do professor Edmar Bacha. Ele propôs porque existe o argumento de que o Brasil gasta muito pouco com Defesa.
Valor: Alega-se que o país não tem inimigos externos nem está envolvido em disputas geopolíticas. Os militares ponderam, porém, que podemos vir a ter. Qual foi a conclusão da IFI?
Salto: Fizemos comparações com vários países, usando econometria e controlando para nações que são mais beligerantes vis-à-vis nações que não são beligerantes, como a nossa. O resultado é que o Brasil está na média, não gasta pouco nem muito. A segunda conclusão é que gastamos muito, na área militar, com pessoal, inclusive, com aposentados, que é um problema geral de todo o serviço público no país.
Valor: Causou sensibilidade no meio militar?
Salto: Causou. Recebemos mensagens, comentários, mas sempre de forma muito respeitosa. Entraram em contato para discutir o assunto e oferecer informações. Foi uma reação interessante porque abriu-se um diálogo.
Valor: Quem mais resistiu à criação da IFI?
Salto: No começo, como a IFI era uma coisa nova no país, pedimos audiência ao então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Ele nos atendeu prontamente e fomos recebidos por ele e os então secretários da Receita Federal, Jorge Rachid, e de Acompanhamento Econômico, Mansueto Almeida. Meirelles disse que a iniciativa era muito boa e nos assegurou que o que precisássemos em termos de informação teríamos.
Valor: E se algum órgão público se negar a dar informações?
Salto: A resolução criou mecanismo que permite à IFI requerer informações via Mesa do Senado.
Valor: Fizeram isso?
Salto: Nunca precisou. George Kopits, teórico em organizações fiscais independentes, diz que uma entidade como a IFI é poderosa se pedir informação a um órgão público e for atendida sem contestação. Isto significa que ela tem credibilidade.
Valor: Como tem sido a busca de dados em outros órgãos
Salto: No Tesouro Nacional, por exemplo, trocamos informações com frequência, já fizemos reuniões com as duas equipes. O mesmo eu posso dizer da Secretaria de Orçamento Federal (SOF). Na Receita Federal, cito o Claudemir Malaquias [chefe do centro de estudos tributários], um servidor que sempre foi parceiro e que respeita os trabalhos da IFI. No TCU, tivemos excelente diálogo com o Leonardo Albernaz, que foi do núcleo de macroeconomia do tribunal e, agora, é o secretário-geral. Esse apoio que conseguimos amealhar, lembrando que havia oposição no início, é uma conquista.
Valor: A IFI assessora o Senado?
Salto: Não. Estamos, claro, dentro de uma casa política. A indicação dos diretores é política. São três diretores, um deles, executivo, cargo que ocupei desde novembro de 2016. A escolha do ocupante deste cargo é prerrogativa do presidente do Senado.
Valor: Quem indica os outros dois diretores?
Salto: As comissões de Assuntos Econômicos e de Transparência do Senado. Os três passam por sabatina e, depois, precisam ser aprovados pelo plenário. A independência da IFI está aí porque o mandato, de seis anos, vem do plenário do Senado. Quem está dizendo que um diretor da IFI pode falar o que ele acha que tem que falar, com base na lei, é o Senado da República.
Valor: O fato de a IFI ter sido criada por resolução não a torna fraca do ponto de vista institucional?
Salto: Inicialmente, Serra e sua equipe fizeram um projeto de lei complementar, depois mudou para uma PEC. O problema é que a PEC teve muito oposição da esquerda.
Valor: Por quê?
Salto: Alegou-se que seria criada para empregar afilhados políticos. Como o Serra tem muita credibilidade na área fiscal e tinha o apoio do Renan, propôs, então, o projeto de resolução do Senado, algo que juridicamente é mais frágil porque pode ser alterado pelo próprio Senado. Mas, acho que, no fim, foi bom porque sabíamos que era um plano piloto e acabou dando certo. Logo no começo, com muito esforço, conseguimos bolar os produtos, a nos relacionar com a imprensa. Na divulgação do nosso primeiro relatório, praticamente todos os veículos de imprensa estavam presentes. E os políticos se sensibilizam com o que sai na imprensa.
Valor: O Senado e a Câmara têm as áreas de consultoria e o TCU, a missão precípua acompanhar e fiscalizar o desempenho das contas públicas. Não houve reação?
Salto: Rapidamente, as consultorias entenderam e se tornaram parceiras da IFI. As consultorias ajudam a elaborar projetos de lei, minutas de PEC, estudos, a pedido de senadores e deputados. A IFI produz informações que também podem ser utilizadas pelos parlamentares, e são. Mas o nosso público é a sociedade.
Valor: Cinco anos e meio depois de criada a IFI, qual é a situação fiscal?
Salto: É uma situação ainda muito ruim. A dívida está em torno de 80% do PIB, o déficit primário ainda é relevante e ainda vai levar alguns anos para voltarmos a ter superávit.
Valor: Mas, no ano passado não houve um pequeno superávit?
Salto: Pois é, a inflação, que é uma velha camarada dos governos, fez o seu papel em 2021. Cerca de 90% do efeito que tivemos sobre a dinâmica da arrecadação e do PIB – porque a relação entre dívida é influenciada pelo deflator, que por sua vez é a dinâmica da própria inflação real da economia. A dívida-PIB é auxiliada pela receita do governo no numerador e pelo PIB mais alto no denominador. Cerca de 90% dessa dinâmica foi influenciada por aumento de commodities, pela desvalorização cambial e pela inflação, que está relacionada aos dois primeiros fatores. A inflação, que a ajuda o governo porque corroi as despesas, é sempre ruim. Em maio, fizemos um relatório dizendo: ‘Cuidado com melhora fiscal decorrente de inflação’. Porque, ato contínuo, como o Banco Central é independente e é assim que tem que ser, ele aumenta os juros para combater a inflação e piora fiscal, eleva a despesa com a dívida.
Fonte: Valor Econômico

