Descritas por Jonathan Stokes, um dos cientistas envolvidos, como um patógeno “notoriamente desafiador”, cepas de “Acinetobacter” tornaram-se resistentes a antibióticos nas últimas décadas, o que lhes permite atacar pacientes hospitalares debilitados e deixar médicos impotentes em tratá-los.
Foi necessário não mais do que uma hora e meia – o tempo de um almoço prolongado – para que a Inteligência Artificial (IA) encontrasse um novo antibiótico potencial, uma oferta para um mundo às voltas com a ascensão dos chamados “supermicróbios”: bactérias, vírus, fungos e parasitas que passam por mutação e deixam de reagir aos medicamentos que temos.
Depois de a IA ter identificado o composto, os pesquisadores o refinaram de modo a torná-lo mais poderoso. Em seguida, testaram-no em camundongos, e descobriram que ele tinha capacidade de eliminar as bactérias presentes em infecções resultantes de feridas. Serão necessários vários anos para testar a droga em humanos e para apurar se a IA fez realmente uma descoberta preciosa.
A resistência antimicrobiana (AMR, nas iniciais em inglês) – que abrange todos os micróbios, e não apenas as bactérias, combatidas por antibióticos – é às vezes mencionada como sendo uma “pandemia silenciosa”. Patógenos resistentes mataram 1,26 milhão de pessoas em 2019, segundo análise publicada na revista médica “The Lancet”. “Toda a medicina contemporânea é baseada na capacidade de controlar doenças infecciosas. Se não conseguirmos controlar a infecção, não poderemos ministrar quimioterapia, fazer cirurgias invasivas e um parto prematuro torna-se muito mais desafiador e arriscado”, diz Stokes.
Além da prescrição exagerada em humanos, antibióticos também estão presentes na cadeia alimentar
O problema está se agravando com o tempo. Em 2016, uma análise britânica chefiada por Jim O’Neill, economista e ex-Godman Sachs, previu que o número de mortes anuais decorrentes de resistência antimicrobiana aumentaria para 10 milhões até 2050 – aproximadamente o número de pessoas que morre atualmente de câncer. Mas, com base em dados mais recentes, ele agora considera que nada menos do que duas vezes esse contingente poderá morrer em decorrência dessa resistência.
A indústria farmacêutica e os governos não estão investindo o suficiente na substituição dos antibióticos mais velhos por novas drogas às quais as bactérias não sejam resistentes, o que arrisca gerar crises em que os clínicos – seja os que tratam um paciente ou os que atuam em uma pandemia – poderão constatar que o armário de remédios está, na prática, vazio.
Tecnologias como a IA poderão contribuir para combater a resistência, ao reduzir o tempo e o custo da fase inicial da descoberta de drogas, enquanto a tecnologia de sequenciamento genômico portátil poderá ajudar os médicos a escolher o antibiótico certo para cada patógeno no consultório ou no hospital.
Mas, mesmo quando um novo antibiótico promissor é descoberto, ele ingressará em um mercado disfuncional. Para evitar estimular ainda mais resistência, novos antibióticos devem ser usados com parcimônia, portanto eles não tendem a ser os produtos mais vendidos para os laboratórios farmacêuticos. Os governos e sistemas de saúde acostumados com antibióticos genéricos baratos não vão gastar o suficiente em drogas novas a ponto de tornar o desenvolvimento de antibióticos vantajoso. O custo de lançar um novo antibiótico no mercado é de aproximadamente US$ 1,5 bilhão.
São poucos os investidores privados ou grandes laboratórios farmacêuticos dispostos a financiar os caros testes clínicos exigidos pelas autoridades reguladoras. Os investidores perderam cerca de US$ 4 bilhões em empresas de biotecnologia que desenvolvem antibióticos, segundo a investidora de impacto the AMR Action Fund. As startups ou faliram ou foram vendidas a baixo preço ou migraram para áreas mais lucrativas.
Um bilhão de dólares parece muito dinheiro, mas não é suficiente para todos os testes clínicos”
— Henry Skinner
No que se refere à mudança climática e a futuras pandemias, ninguém está assumindo responsabilidade suficiente pela ameaça global eternamente presente da resistência antimicrobiana, dizem os cientistas. O Reino Unido, os EUA e a União Europeia (UE) estão trabalhado em formas de incentivar as empresas farmacêuticas a criarem antibióticos melhores, mas, até agora, faltam coordenação e urgência a seus esforços.
O’Neill diz que a pandemia de covid-19 demonstrou o quanto pode ser “devastadora” uma doença infecciosa não controlada. Mas, na medida em que as pessoas tentam voltar à normalidade, segundo ele, tornou-se “fadada ao fracasso” qualquer iniciativa das autoridades de “bombardear as pessoas com perspectivas apavorantes do futuro o tempo todo”.
Uso exagerado e resistência. Quando o cientista britânico Alexander Fleming pronunciou seu discurso de aceitação como ganhador do prêmio Nobel de 1945 por ter descoberto a penicilina, ele alertou sobre os perigos da resistência crescente. “Pode chegar a hora em que a penicilina poderá ser comprada por qualquer pessoa nas lojas. Haverá então o perigo de que a pessoa ignorante possa, com facilidade, submeter-se a uma dose insuficiente e, ao expor seus micróbios a quantidades não letais da droga, torná-los resistentes”, disse.
Fleming tinha presciência. O uso exagerado de antibióticos é o grande fator que contribui para a resistência antimicrobiana, especialmente no mundo em desenvolvimento, onde muitas vezes se tem acesso a drogas sem receita.
Quanto mais as bactérias ficarem expostas aos antibióticos, mais desenvolverão formas de evitar seus mecanismos letais e sobreviver. Além da prescrição exagerada em humanos, as bactérias são expostas a antibióticos na cadeia de suprimentos alimentar, onde os animais recebem grandes doses dessas drogas para evitar doenças em condições de espaço físico limitado e, em alguns casos, para impulsionar seu crescimento.
Mas mesmo clínicos conscientes do problema e que querem receitar antibióticos de maneira mais direcionada enfrentam dificuldades devido à falta de diagnóstico – testes capazes de identificar precisamente qual é o patógeno. Eles tendem a contar com antibióticos conhecidos como de amplo espectro, que supostamente dão conta de uma série de bactérias, mas que têm o grave efeito colateral de desenvolver resistência mesmo nas bactérias não visadas por eles.
Incentivando a pesquisa. Para manter os laboratórios de pesquisa abertos e em busca de novos antibióticos, os filantropos e investidores de impacto vêm tentando preencher o vácuo deixado pelos “venture capitalists”.
Em 2016, um consórcio sediado nos EUA chamado CARB-X começou, com dinheiro do governo e de uma fundação, a acelerar o desenvolvimento de novos antibióticos, vacinas e diagnósticos rápidos. Naquele ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas criaram o GARDP, uma parceria voltada para acelerar o desenvolvimento de tratamentos para infecções resistentes a drogas. Em 2020, a indústria farmacêutica investiu cerca de US$ 1 bilhão no AMR Action Fund, com o objetivo de lançar de dois a quatro novos antimicrobianos nos dez anos seguintes.
Os pesquisadores da McMaster e do MIT deram sua potencial droga à Phare Bio, um empreendimento social que captou US$ 25 milhões do The Audacious Project, que associa o financiamento da TED (conhecida pelos vídeos TED Talks) aos de outras instituições sem fins lucrativos. Ela está testando o potencial medicamento em estudos com animais e espera se associar às grandes empresas farmacêuticas para conseguir que ele seja submetido a testes clínicos.
“Pelo fato de termos investimentos filantrópicos que nos ajudam a passar por essa fase de maior risco, sentimos que isso nos possibilitará ter sucesso e de uma maneira que as empresas que são financiadas apenas comercialmente, mesmo nas fases iniciais, podem não conseguir”, explicou Akhila Kosaraju, uma médica que é atualmente CEO da Phare Bio.
Mas, apesar de todo o otimismo, Henry Skinner, CEO da AMR Action Fund, diz que a IA é “útil, certamente, mas não transformadora”, porque pouco faz para enfrentar a questão dos custos verdadeiros: os dos testes clínicos. Ele acha que mesmo o seu fundo é, “no melhor dos casos, um quebra-galho, uma solução parcial”. “Temos um alto grau de responsabilidade. Um bilhão de dólares parece muito dinheiro, mas está longe de ser suficiente para o trabalho, muito caro, da última fase”, diz ele.
Para criar incentivos melhores, as atenções se voltam para mudar a maneira pela qual os sistemas de saúde compram antibióticos. Neste ano, o Reino Unido propôs expandir seu novo modelo de receitas, para que a indústria farmacêutica receba nada menos que 20 milhões de libras esterlinas por ano (mais de US$ 25 milhões) para vender antibióticos inovadores, independentemente de quanto – ou quão pouco – sejam receitados.
O programa-piloto começou com medicamentos desenvolvidos pela Pfizer e pela japonesa Shionogi no ano passado. Mark Hill, diretor global de acesso ao mercado da Shionogi, acha que se trata de “um modelo muito promissor”, que estimula mais investimento, porque você consegue provar aos acionistas que vai conseguir retorno.
Patrick Holmes, diretor de política de inovação global da Pfizer, elogiou o Reino Unido por tentar valorizar os novos antibióticos com base, parcialmente, em como eles afetarão as taxas de resistência no futuro.
A UE pretende dar aos laboratórios farmacêuticos que trouxerem um novo antibiótico ao mercado um vale (ou comprovante de crédito) que poderá ser usado para prorrogar os anos de exclusividade de mercado para outro medicamento, presumivelmente mais lucrativo, que, segundo estima, terá o valor de cerca de € 440 milhões.
Mas muita coisa depende da possibilidade de os EUA, o maior mercado farmacêutico mundial, conseguir aprovar sua Lei Pasteur, o que criará um modelo de estilo de receita, com contratos avaliados entre US$ 750 milhões e US$ 3 bilhões. A tramitação da lei não está sendo fácil. Ela foi originalmente introduzida em 2020 e o orçamento já foi cortado, de US$ 11 bilhões para US$ 6 bilhões.
Mas, após ter sido reintroduzido, em abril, Mark McClellan, diretor do Duke-Margolis Centre for Health Policy, espera que o projeto de lei seja aprovado ainda em 2023. “Visamos um programa de vários bilhões de dólares nesse caso, o que poderia parecer muito dinheiro, mas trata-se, na verdade, de uma soma baixa se comparada aos custos atuais e projetados de não se ter acesso a antibióticos capazes de tratar os organismos resistentes mais importantes que existem hoje”, diz ele.
O’Neill, o autor da análise britânica, dá cautelosamente as boas-vindas ao progresso feito nesse campo durante os últimos seis meses, com “leve grau de surpresa” após anos de pouco impulso. Ele acha que a expansão do programa de receitas britânico, da proposta da UE e especialmente o tamanho da potencial Lei Pasteur poderão estimular investidores a voltar a apoiar a pesquisa pioneira.
Mas ele defende maior urgência. “As autoridades não podem ficar impassíveis, propagando essas ideias sem nunca ir até o fim”, diz ele. Caso contrário, adverte, a resistência antimicrobiana gerará uma crise que fará com que a covid-19 pareça “fichinha”. (Tradução de Rachel Warszawski)
Fonte: Valor Econômico