O número de pessoas físicas que investem em títulos de renda fixa – sejam eles instrumentos bancários ou negociados no mercado de capitais – aumentou 15% em 2023, para 17,1 milhões, a despeito da crise gerada após os casos de Americanas e Light. Esse crescimento, porém, pode ser afetado neste ano considerando uma mudança nas regras de emissão de títulos populares entre esse público: os certificados de recebíveis imobiliários e do agronegócio (CRI e CRA) e as letras de crédito do agronegócio (LCA) e imobiliário (LCI).
Em um primeiro momento, há a possibilidade de investidores pessoa física (PF) se afastarem da renda fixa, mas é provável que isso não aconteça, diz Guilherme Maranhão, presidente do fórum de estruturação e mercado de capitais da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
“Acredito que haverá uma realocação entre os diversos perfis de investidores. Mesmo com uma maior restrição do mundo de emissores de CRIs e CRAs, por exemplo, as pessoas físicas ainda encontrarão papéis para diversos gostos no mercado.”
Essa restrição de emissores de CRI e CRA é esperada após o Conselho Monetário Nacional (CMN) determinar que só poderão emitir esses papéis as empresas que atuam nos setores imobiliário e no agro. Nos últimos anos, companhias de outras áreas – como bancos, varejistas de alimentos, redes de lanchonetes e redes de hospitais – impulsionaram a oferta desses títulos aproveitando uma flexibilização de regras.
As maiores limitações do lastro tendem a impactar a disponibilidade de ativos para o investidor, pelo menos no curto prazo. O volume de emissões de CRA caiu 83% nos primeiros 26 dias de fevereiro em comparação à média dos últimos seis meses. Em relação ao CRI, a queda foi de 59%, segundo cálculos que aparecem em relatório do Itaú BBA.
No ano passado, o investimento de pessoas físicas em CRAs praticamente dobrou, chegando a R$ 28,9 bilhões. Desde 2019, o valor subscrito aumentou 250%, segundo levantamento da Anbima feito a pedido do Valor. O volume investido em CRIs também cresceu em 2023. O avanço foi de 57%, para R$ 19,3 bilhões. Em cinco anos, a alta foi de 338%.
Há uma expectativa de que a redução das ofertas dos dois instrumentos seja de certa forma compensada pelas emissões de outros títulos de dívidas isentos, como as debêntures incentivadas. Esses ativos, no entanto, podem ficar menos atrativos considerando a compressão das taxas vista recentemente no mercado secundário.
“A diferença entre a rentabilidade líquida de debêntures isentas e não isentas é a menor desde o primeiro semestre de 2021, o que significa que mesmo pagando impostos o investidor pode conseguir obter um retorno competitivo ou até melhor em comparação aos investimentos isentos”, afirma Odilon Costa, estrategista de renda fixa e crédito privado do Grupo SWM.
Em 2023, 471 mil pessoas físicas investiram em debêntures. É um pouco mais do que os investidores em CRA, que somaram 462 mil, 51% mais que um ano antes. As pessoas físicas que investem em CRI somaram 307 mil, 53% mais que no fim de 2022, conforme dados da B3.
Outra mudança importante é em relação às regras para a emissão de ativos bancários isentos, como LCA e LCI. O vencimento mínimo da LCA de 90 dias foi ampliado para nove meses, “de forma a induzir o alongamento dos prazos de captação”, conforme a própria resolução que tratou do tema. Esse prazo pode chegar a 12 meses caso o título seja atualizado por índice de preços. Já o vencimento da LCI e da LIG de 90 dias passou para 12 meses na maioria dos casos.
Pelo menos até agora, não houve diminuição relevante na demanda dos investidores por esses papéis, segundo a analista de renda fixa da XP Mayara Rodrigues, mesmo com o aumento do prazo de carência. “Podemos entender que uma parcela considerável dos investidores classificados como private tem apetite por esse prazo”, diz.
O volume de novas LCAs e LCIs depositadas na B3, porém, caiu. Em comparação com a média dos últimos seis meses, essa redução foi de 54% e 69%, respectivamente, segundo o Itaú BBA.
No fim de 2023, 2,3 milhões de pessoas físicas investiam em LCI, o que significa um aumento de 58% ante o ano anterior. Em LCA, o avanço foi de 29%, para 1,7 milhão, segundo a B3.
A psicóloga e profissional de recursos humanos Morgana Ledesma, de 27 anos, é uma delas. O interesse por renda fixa começou há cerca de dois anos, quando ela trabalhou em uma instituição financeira, e continuou a assistir a palestras sobre investimentos e ter acesso a consultoria especializada. “Escolhi a renda fixa por ser mais segura e mais fácil de mexer. Eu confesso que não sei mexer muito bem nas plataformas na parte de renda variável. Foi mais pela segurança e facilidade”, diz a investidora.
Ledesma diz que não pretende deixar de investir em letras de agronegócio e imobiliário tão cedo, mas diz que pode repensar sua estratégia considerando as novas regras para os prazos. “[A mudança do prazo] vai influenciar, mas não tanto. Depois dessa mudança eu ainda apliquei em LCA e LCI porque eu achei propostas melhores comparando com o CDB, mas eu repenso mais por conta do tempo que o dinheiro fica aplicado”, explica.
O volume total investido por pessoas físicas em LCI cresceu 52% em 2023, para R$ 357,1 milhões, enquanto que em LCA o aumento foi de 37%, para R$ 457,9 milhões.
Pensar em uma migração em massa de investidores pessoa física para ativos de renda variável ainda é algo muito distante, avalia Rodrigues, da XP, principalmente porque a cultura do brasileiro é gostar da renda fixa.
“São investimentos muito diferentes, são fundamentos diferentes, e o apetite a risco diferente. É um investidor que está acostumado a ter a remuneração pactuada, tem o seu cupom semestral. Na nossa visão, é um movimento não óbvio por conta dessa rentabilidade”, destaca.
Uma possibilidade é que parte das pessoas físicas migre para fundos. Essa opção, porém, depende do perfil do investidor, considerando a taxa de administração e o histórico recente de rentabilidade negativa, diz Rodrigues. Os com menor apetite ao risco ou preocupados com a liquidez de curto prazo podem aumentar os investimentos em CDBs.“Há opções interessantes para o CDB que, ainda que não seja isento do Imposto de Renda, também traz a segurança do investimento e com cobertura do FGC (Fundo Garantidor de Créditos)”, afirma a analista da XP.
Traçar o perfil de quem investe em renda fixa no Brasil não é tarefa das mais fáceis. Os dados disponíveis, por exemplo, não distinguem do todo quem são os investidores “profissionais” e “qualificados” – que alocam mais de R$ 1 milhão – e quem investe valores menores por meio de plataformas de bancos. Os dados também não trazem recortes sobre gênero e idade.
“Hoje o investidor pessoa física tem um perfil bem diverso”, afirma Marianne Moraes, gestora de crédito privado da Inter Asset. Ela lembra que, com o surgimento das plataformas de investimento e a redução do tamanho da alocação mínima em alguns instrumentos, pessoas que antes só aplicavam na poupança começaram a ter contato com novos produtos.
“O processo foi de democratização, com os investimentos chegando ao investidor final. Antes, o sistema de investimento era muito focado no atendimento bancário. O gerente oferecia um mix de produtos. Depois houve uma migração para o agente autônomo. Esse processo foi importante para o investidor começar a ter contato. Com o tempo, as carteiras foram ficando mais maduras”, explica.
Além da maior educação financeira, outros fatores fizeram com que a renda fixa atraísse mais gente, como o aumento da taxa Selic e a captação líquida negativa da poupança, diz Rodrigues, da XP. “Desde 2021, essa taxa sobe muito, o que naturalmente atrai para a renda fixa. O famoso ‘1% ao mês garantido’, o que o brasileiro gosta muito, assim como qualquer investidor, já que oferece rentabilidade muito atrativa.”
Em 2023, a caderneta de poupança registrou saque líquido pelo terceiro ano consecutivo, o que não acontecia há mais de duas décadas. Segundo o Banco Central (BC), as retiradas superaram os depósitos em R$ 87,8 bilhões.
No ano passado, o mercado se perguntou se as pessoas físicas fugiriam da renda fixa – sobretudo dos títulos corporativos – após as crises da Americanas e da Light que impactaram diretamente esse público.
Logo após o susto, muitos resgataram recursos e correram para os títulos bancários, mas assim que o cenário ficou mais claro houve uma realocação para o mercado incentivado, que inclui debêntures incentivadas, CRI e CRA.
“A pessoa física está mais familiarizada com esses instrumentos do mercado de capitais e isso facilitou uma recuperação mais rápida”, afirma Maranhão, da Anbima. “O que aconteceu no ano passado demonstra um pouco a melhora da maturidade e de como a venda para esse investidor tem sido cada vez mais bem-feita, ou seja, como o investidor está mais educado.”
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— Foto: Pexels
Fonte: Valor Econômico

