O mercado de capitais vem ganhando importância como fonte de financiamento das empresas brasileiras e, no ano passado, alcançou participação recorde na dívida corporativa. Apesar das mudanças de governos e ciclos econômicos, esse tipo de operação tem visto sua fatia crescer no volume captado pelas companhias nas duas últimas décadas, à medida que caem a fatia do BNDES e dos bancos.
Analistas afirmam que avanços regulatórios e o chamado “financial deepening” – quando os mercados ganham mais abrangência e volume – significam que esse é um caminho sem volta. No entanto, o Brasil ainda está longe da situação de países desenvolvidos, onde essas fontes de financiamento são bem maiores que o crédito bancário.
A participação de recursos provenientes do mercado de capitais na dívida consolidada das companhias, que era de 21,5% em 2012, praticamente dobrou para 42,4% em 2023, maior patamar histórico. Os dados fazem parte de novo estudo do Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec-Fipe). Enquanto isso, a fatia do crédito bancário livre caiu de 42,8% para 37%, no mesmo período, e a dos recursos tomados no BNDES baixou de 28,2% para 10,2%, o menor nível desde o início da série, em 2005.
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Olhando de uma forma mais abrangente, o mercado de capitais respondeu por 55,5% da captação doméstica líquida das empresas em 2023 – nesse caso, incluídas na conta não apenas emissões de títulos de dívida, como debêntures, mas também ofertas de ações. Nos últimos três anos, esse volume teve uma média de 63,1%, após cair muito em 2020 com a explosão do crédito bancário causada pelas medidas para combater os efeitos da pandemia de coronavírus.
Na primeira metade do ano passado, as operações no mercado ficaram quase paralisadas diante da crise provocada pelos casos Americanas e Light, o que explica a queda de participação em 2023. Houve uma retomada nos meses seguintes.
“O acelerado crescimento do mercado de capitais a partir de 2016 coincide com a redução da oferta de recursos subsidiados do BNDES e a queda das taxas de juros de mercado, que atingem seu nível mínimo em 2021”, diz Carlos Antonio Rocca, coordenador do Cemec-Fipe. Para ele, ao longo desse período, o BNDES deixou de ser um competidor para passar a explorar complementaridades e sinergias com os mercados de capitais.
Em 2018, entrou em vigor a Taxa de Longo Prazo (TLP), que substituiu a TJLP em operações do BNDES e é referenciada em taxas de mercado.
Rocca pondera que, apesar da crescente importância das operações no mercado de capitais, o Brasil ainda está longe do que se vê em países desenvolvidos. “Nos EUA, no Japão, no Reino Unido, os mercados de capitais são quatro, cinco vezes maiores que o crédito bancário”, diz. “Existem razões para acreditar os padrões de transparência e governança das empresas participantes desses mercados criam condições para aumentar a eficiência econômica da alocação de recursos, contribuindo assim para elevar a eficiência funcional do sistema financeiro brasileiro.”
Desde as eleições de 2022, há receio de parte dos analistas de que o governo Lula (PT) possa novamente estimular os bancos públicos e que uma maior presença deles, especialmente do BNDES, poderia inibir as operações de mercado, como ocorreu mais fortemente entre 2012 e 2016. A gestão atual do BNDES, comandada por Aloizio Mercadante, vem sinalizando que vai ampliar os desembolsos de 1% do PIB para 2% até 2026.
Apesar disso, Claudio Gallina, diretor sênior de instituições financeiras da Fitch, afirma que houve um avanço na governança e que as administrações atuais dos bancos têm deixado claro que não farão nada que prejudique seus resultados. “Se um eventual crescimento do BNDES vai ofuscar outros mercados vai depender muito não só da expansão dele, mas do apetite dos ‘players’ [competidores] privados, da taxa de juros interna, do ambiente externo”, diz.
O BNDES afirma, em nota ao Valor, que não concorre com o mercado de capitais, e sim atua de forma complementar. No entanto, o banco ressalta que destina os desembolsos a projetos que contribuem para o aumento da capacidade produtiva do país, enquanto a maioria dos recursos do mercado de capitais são para capital de giro e refinanciamento de passivos – cerca de 60% do total. “Isso significa que a redução do BNDES e o aumento do mercado de capitais pode gerar um efeito negativo na taxa de investimento”, diz.
O banco estatal também afirma que há diferenças entre o perfil de seus desembolsos e dos feitos pelo mercado de capitais em períodos de crise. “Exemplo recente dessa distinção foi a crise das Americanas, em que houve uma aversão ao risco e o BNDES atuou de maneira decisiva na aquisição de debêntures incentivadas, com valores superiores a R$ 16,5 bilhões (cerca de 25% das emissões) no ano passado.”
O BNDES ressalta que, além de adquirir os papéis como “forma de apoio financeiro às empresas”, tem atuado como agente estruturador de emissões. “Dessa forma, contribui para o sucesso na atração de investidores, por meio da prestação de garantia firme, e para ancorar as emissões e dar liquidez ao mercado.” Ainda assim, a atuação do BNDES no mercado de crédito privado foi alvo de críticas em algumas ocasiões, com agentes que atuam na estruturação de ofertas alegando que o banco estatal estaria ocupando um espaço que o mercado poderia preencher.
Eduardo Correia, professor do Insper, lembra que a restrição no uso da TJLP diminuiu a disponibilidade de linhas subsidiadas e, com isso, reduziu a chance de haver um “crowding out”, ou seja, que empresas troquem captações privadas pelo crédito do BNDES. Ele tem uma visão semelhante à de Gallina. “Não acho que o BNDES voltará a ficar tão grande quanto era. Os mercados se desenvolveram muito no Brasil nos últimos anos. Mas tudo depende da trajetória mais longa para os juros, de ter um cenário mais claro para as empresas tomarem crédito”, diz.
O economista-chefe do Banco Pine, Cristiano Oliveira, lembra que no ano passado os mercados de capitais foram afetados pelo caso Americanas e problemas com bancos médios nos EUA e o Credit Suisse, na Europa. “Houve um alívio no segundo semestre e a Selic começou a cair, mas ainda está em um patamar elevado”.
Estudos mostram que, elevando o crédito em relação ao PIB, isso contribui para o crescimento econômico”
— Eduardo Correia
A taxa de juros é, naturalmente, um fator que influencia a escolha das fontes de financiamento pelas empresas – e ela, por sua vez, está relacionada à trajetória da Selic. De acordo com Cemec, o custo de capital próprio das empresas tem forte correlação negativa com as ofertas de ações (-0,8642). Isso significa que, quando os juros caem, IPOs (sigla em inglês para ofertas iniciais de ações) e operações de “follow-on” (de empresas já listadas na bolsa) aumentam. A correlação com a emissão de debêntures também existe, mas é mais fraca (-0,5290).
“No período de 2012 a 2016 fatores negativos para o desenvolvimento do mercado de capitais teriam combinado grande oferta de recursos subsidiados do BNDES, dirigido principalmente para empresas grandes com condições de acesso a esse mercado, ao mesmo tempo em que ocorre aumento da taxa de juros de mercado, aumentando dessa forma o diferencial de condições favoráveis às operações do BNDES”, diz o estudo.
Na visão de Gallina, da Fitch, para o Brasil chegar a um nível de importância dos mercados de capitais como nos EUA ainda há uma “caminho longo pela frente”. Segundo ele, o país tem avançado em termos de arcabouço regulatório, mas ainda precisa melhorar na segurança jurídica. “É preciso reconhecer que os reguladores vêm tomando atitudes corretas nessa linha de incentivar os mercados.”
Correia, do Insper, ressalta que também é preciso avançar na proteção dos direitos de investidores minoritários. “Estudos do Banco Mundial mostram que, elevando o volume de crédito em relação ao PIB, isso contribui para o crescimento econômico. Óbvio que tem a questão da origem do crédito, e nisso o Brasil melhorou nos últimos anos, porque mesmo no crédito bancário os players privados têm sido mais ativos.”
André Magalhães, sócio de consultoria financeira da Deloitte, observa que o perfil financeiro de muitas empresas mudou no pós-pandemia. Ele diz que várias tiveram acesso a crédito fácil, mas não estavam acostumadas a operar de forma tão alavancada, e agora ainda lutam para refinanciar suas dívidas. “O que a gente observa neste ano é uma continuidade de uma dificuldade geral das empresas, que estão tentando fazer a gestão de caixa, buscando produtos para refinanciar suas dívidas”, afirma. “No segmento bancário há crédito disponível, mas ao mesmo tempo os bancos estão mais seletivos.”
David Holanda, que também é sócio de consultoria financeira da Deloitte, aponta que muitas vezes o BNDES ou outras instituições regionais de fomento acabam entrando no mix de financiamento das empresas, ainda que com uma parcela menor. “A gente tem apoiado muitas empresas com novos investimentos e captações e às vezes alguns fundos constitucionais têm taxas 20%, 30% menores que o BDNES. Nunca é uma única fonte de financiamento, é sempre um mix, junto com os mercados de capitais. As debêntures de infraestrutura, por exemplo, têm ganhado uma relevância grande.”
A pesquisa do Cemec mostra que o exigível financeiro externo das companhias chegou a recorde de US$ 372,5 bilhões em 2023. Ainda assim, Rocca afirma que o indicador não preocupa, já que o aumento recente é explicado em grande pare pela variação do câmbio e 71,1% do total são de empréstimos intercompanhias.
Fonte: Valor Econômico

