Indagado se o avanço da inteligência artificial generativa (IA) seria uma tecnologia muito mais traiçoeira do que a descoberta da máquina de imprensa, Noyal Harari respondeu: “Essa ideia de que a descoberta da máquina de imprensa propiciou o despertar da ciência moderna é um mito. Foram necessários dois séculos entre a criação da imprensa e a chegada da revolução científica. Nesse ínterim, o que ela fez foi fomentar guerras religiosas…. Ninguém se interessava por descobertas de Galileu Galilei ou cálculos de Copérnico, enquanto os manuais de caça às bruxas se tornaram bestsellers da época.” Independente se Harari está ou não demasiado pessimista em relação à IA em seu livro “Nexus”, está a usar técnicas de cenários. Nestes trabalhos, há duas perguntas cruciais: Qual o seu maior sonho? Qual o seu pior pesadelo?
Cenários não pretendem acertar o porvir – tarefa, por definição, impossível. Pretende-se explorar situações limites, a partir dos sinais do presente. Trata-se de desenhar o futuro (não necessariamente os mais prováveis, mas plausíveis) para iluminar a tomada de decisões. Objetiva construir um plano. O que precisa ser feito hoje para fazer dos sonhos realidade e destruir os piores pesadelos?
Embora ninguém ainda tenha descoberto como obter lucro real com IA, o entusiasmo é tanto que sinais do presente, ainda incertos, estão sendo tratados como se “tendências” fossem.
Trabalho e Produtividade: diversas projeções apontam como se fosse tendência a destruição líquida de milhares de postos de empregos, porém daí se espera advir forte crescimento da produtividade. Por ora, não estão disparando nem as taxas de desemprego, nem a produtividade, mas sim a desigualdade de renda – com os grandes ganhos de IA concentrados numa elite profissional. Se aceitarmos que se trata de incerteza crítica, deveríamos perguntar: a IA será capaz de impulsionar a produtividade e serão realizados programas capazes de realocar trabalhadores dispensados pelas novas tecnologias ou assistiremos a um forte aumento das taxas de desemprego, da precarização e do subemprego?
Serviços Públicos: Afirma-se que a saúde será das atividades mais impactadas, com novos procedimentos e medicamentos, com robôs que antecipam diagnósticos. O ensino deverá ampliar o acesso a locais remotos e atingir maior qualidade, com tutores virtuais. A segurança pública será beneficiada pela exploração de imagens e dados, em larga escala. No caso da saúde, por exemplo, perguntamos: a IA permitirá reduzir filas e ampliar o acesso a serviços de saúde de qualidade para todos ou serão ampliadas as diferenças entre uma medicina de ricos (customizada, com interação médicos-tecnologia) e uma medicina precária para pobres, com risco de falhas de diagnósticos e escassez de atendimento humanizado?
Democracia: Muitos afirmam como tendencia a IA potencializar a disseminação de mentiras, discursos de ódio, criando instabilidades para as democracias. Incerteza crítica: a regulação será capaz de conter e punir a disseminação de conteúdos nocivos e discriminatórios, tornar mais rentável disseminar a informação verdadeira e racionalizar a gestão pública ou assistiremos cada vez mais a situações em que a desinformação impulsiona abusos de poder?
Sustentabilidade: a expansão da IA poderá auxiliar na prevenção a desastres climáticos, mas gera incremento absurdo do consumo de energia e de água. Incerteza: Serão realizados os investimentos necessários para que a IA seja alimentada de forma sustentável podendo auxiliar na prevenção a desastres climáticos ou serão acentuados problemas de segurança hídrica e energética?
Tendências são elementos presentes em todos os cenários, incertezas é que, combinadas, geram cenários distintos. O principal são as perguntas que se sucedem. Como chegamos nesse cenário? Quais foram as ações (ou inações) que levaram ao cenário distópico? Qual o plano para concretizar o cenário normativo? Cenários explicitam dilemas e nos forçam a contar uma história de como os problemas foram sendo superados, ao longo do percurso. Recentemente, muitos avanços foram feitos.
O Plano Brasileiro “IA para o Bem de Todos” reúne ações de impacto imediato em curso ou que já possuem financiamento garantido. Soma investimentos públicos de R$ 23 bilhões no período 2024-2028. Isto é bem menos do que os EUA (R$ 63 bi) e do que a China (R$ 306 bi), mas próximo ao que Alemanha (R$ 29 bi) e Reino Unido (R$ 18 bi) estão fazendo. Na mesma direção, em setembro, o BNDES lançou linha de R$ 2 bilhões para data centers, priorizando aqueles com fontes de energia renovável, nas regiões Norte e Nordeste, com esforços de adensamento de cadeia e geração de empregos.
Está em discussão o projeto de lei que regulamenta a IA no Brasil. O PL 2338/23 estabelece critérios em áreas críticas, como saúde e segurança pública, determina que os sistemas tenham transparência e explicabilidade e reforça a necessidade da proteção de dados. A regulamentação ainda sofrerá diversas mudanças até sua aprovação, para evitar um texto muito restritivo que proteja os brasileiros, mas que também não tire o Brasil do jogo competitivo.
Como no exemplo da máquina a imprensa, tecnologias não são em si perversas – o seu uso é que pode ser, ou não. O futuro da IA não pode ser decidido por um conjunto pequeno de empresas. Até agora, há muito mais incertezas do que tendências em temas fundamentais. O Plano da IA busca o sonho, mas o horizonte é curto. Será preciso detalhar, dar continuidade e escalonar diversas ações, cujos recursos parecem insuficientes para o tamanho dos desafios. Já o PL é oportunidade para sociedade civil, empresas e especialistas evitarem nossos piores pesadelos. Aprimoramentos virão, mas já temos: plano, estratégia e regulação. Hora de despertar.
Lavinia Barros de Castro é membro da Comissão de Assuntos Estratégicos do BNDES e professora do IBMEC.
José Roberto Afonso é coordenador da Comissão de Assuntos Estratégicos do BNDES e professor do IDP.
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Fonte: Valor Econômico