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Se o juramento proferido por todo médico recém-formado implicasse nutrir hábitos alimentares modestíssimos, o infectologista Esper Kallás provavelmente não decepcionaria Hipócrates.
Da sala também austera de onde dirige o Instituto Butantan, a centenária instituição paulista chave no combate à pandemia de covid-19 no Brasil, mas muito antes fundamental na sobrevivência de pessoas atacadas por cobras e escorpiões, ele comanda 3.800 colaboradores, entre pesquisadores, biólogos, pessoal administrativo e das fábricas, incluídos aí os 3.300 funcionários da Fundação Butantan, que dá apoio ao instituto. E é nessa sala que realiza boa parte de suas refeições, sempre frugais, exceto talvez pela oferta numerosa de pimentas.
O almoço de que participaram os repórteres deste “À Mesa com o Valor” não fugiu do script. Como era uma quarta-feira, emulou o que qualquer restaurante por quilo serviria no dia: beterraba, cenoura e outros poucos legumes, arroz branco, uma tentativa de feijoada, batata gratinada e carne assada. Latas de refrigerante decoravam a mesa.
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Não fossem os convidados, arroz e feijão seriam ociosos, posto Esper, como todos o chamam, não comê-los desde 2019, quando, com a pressão alterada e 15 quilos acima do peso atual, cortou-os de sua dieta. As pimentas na mesa eram cinco, mas não havia entre elas a síria, condimento tão familiar ao médico, filho de pai libanês e de mãe brasileira filha de libaneses.
Mineiro de Itajubá de 58 anos, Esper passou grande parte de sua vida profissional nas salas da Faculdade de Medicina da USP, em que é professor titular, no momento licenciado, do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias no complexo do Hospital das Clínicas.
Desde o começo de 2023 diretor do Butantan, instituição subordinada à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, tem ali um desafio diferente. Se a missão expressa do instituto é conhecida – “pesquisar, desenvolver, fabricar e fornecer produtos e serviços para a saúde da população” -, a visão parece bastante ousada: “estabelecer competências visando tornar-se o principal fabricante global de produtos biológicos e terapias avançadas”.
Ser um player global exige um esforço apreciável, mas não está em desacordo com a vocação da entidade, na opinião do médico. “A vocação de produção de imunobiológicos surgiu nos primórdios do Butantan, quando muitos imigrantes europeus, do Oriente Médio e do Extremo Oriente chegaram aqui com o intuito de trabalhar na agricultura, adentrar à fronteira agrícola brasileira, que era o estado de São Paulo, e passaram a sofrer acidentes de cobra e de escorpião”, diz.
Claro que o atual momento é muito distinto dos tempos de Vital Brazil, o primeiro diretor do Butantan, na aurora do século XX, e hoje nome da avenida que lhe dá acesso.
A distinção não é de natureza filosófica ou programática, mas de escala. O Butantan segue a produzir imunobiológicos, mas agora para toda a população brasileira – o Ministério da Saúde é seu principal cliente – e eventualmente para outros países.
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Bastante vitaminada nos últimos anos por causa da projeção do governo paulista no enfrentamento da covid-19, a instituição se estabeleceu como o maior produtor de vacinas e soros da América Latina. No Brasil, entrega, por exemplo, 100% das vacinas contra o vírus influenza utilizadas nas campanhas de imunização.
É bem verdade que o setor, no Brasil, é restrito, contando com apenas um outro grande player estatal, a Fiocruz, ligada ao Ministério da Saúde. A concorrência privada é insignificante e isso se deve, especula Esper, ao retorno de investimento muito longo e à falta de uma política pública contínua de estímulo ao setor.
Resta enfrentar ou se alinhar às grandes farmacêuticas transnacionais, pois raras são as companhias ou países que conseguem estabelecer capacidade de produção totalmente independente. Há sempre alguma dependência externa em esta ou aquela etapa do processo produtivo, seja em insumo, seja em tecnologia ou matéria-prima.
O Brasil, diz Esper, está longe de gabaritar em várias dessas etapas, a começar por sua dependência de matérias-primas importadas. Mobilizando recursos de didática, enumera: “A gente tem produção de equipamentos de alta tecnologia para produzir vacinas e medicamentos? Muito pouco. Produção de meios de cultura? Uma química fina forte para os sais de medicamentos? Ainda muito pouco. Precisamos avançar em todas essas áreas”.
No caso da mpox, por exemplo, cujo surto fez a Organização Mundial de Saúde declarar emergência global, o Brasil está procurando importar 25 mil doses por meio da Organização Pan-Americana da Saúde, como informou o Ministério da Saúde, que se somariam a doses remanescentes de um lote comprado para campanha em 2023.
A vacina tetravalente da dengue, 100% brasileira e que deve ser aprovada para uso ao longo deste semestre, é um bom exemplo de como as coisas nesse setor demoram a “virar” no Brasil, mas, ao mesmo tempo, um indicador da liderança notável que o Butantan assumiu. A vacina demorou 30 anos para se tornar realidade desde que o já falecido ex-diretor Isaias Raw “vislumbrou potencial muito grande” no imunizante que começava a ser desenvolvido no National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos.
Era, contudo, imperativo tropicalizar algumas de suas características para que pudesse ser ofertado nas campanhas de vacinação por aqui. A necessidade de congelamento a 70 graus negativos, um obstáculo logístico intransponível em tantos rincões do Brasil, foi, por exemplo, derrubada com a liofilização, feita no Butantan.
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Em relação aos imunizantes disponíveis comercialmente, sobretudo o Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda, que chegou neste ano ao Sistema Único de Saúde (SUS), a vacina do Butantan é superior, entre outros motivos, por exigir apenas uma dose. A taxa de eficácia geral é de 79,6% (89,2% para quem já havia contraído dengue antes; 73,5% para quem não teve contato prévio com o vírus). Os brasileiros deverão começar a recebê-la em 2025, e o instituto, cumpridos os protocolos regulatórios de cada país, tende depois a exportá-la para os vizinhos sul-americanos.
Com o aquecimento global, o mercado potencial, segundo Esper, é de 3 bilhões de pessoas. A dengue, outrora uma das chamadas “doenças negligenciadas” por farmacêuticas e instituições científicas de países desenvolvidos por não acometer seus cidadãos, agora é uma realidade planetária, com registros no Japão e Alemanha, entre outros países.
O Brasil viveu uma explosão histórica de casos em 2024. Mas o combate à dengue é só um dos alentos a mover o Butantan. Outras vacinas estão no “prelo”, como a da chikungunya, esta desenvolvida em parceria com a farmacêutica franco-austríaca Valneva, objeto de acordo de transferência de tecnologia celebrado em 2020. O imunizante já foi aprovado para uso nos EUA, e no Brasil depende da autorização da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária).
Ainda não há vacina, e portanto Esper não tem boas notícias a dar sobre o combate à febre oropouche, que tem sintomas parecidos com os da dengue e os da chikungunya, fez suas duas primeiras vítimas fatais em junho na Bahia e já conta mais de 7 mil casos no Brasil em 2024 contra 832 de 2023 inteiro. Há inícios de estudos com “candidatos” a imunizantes, mas esse é um processo longo. A preocupação do médico não é de hoje: antes mesmo da pandemia de covid-19, ele já alertava em sua mensagem de WhatsApp: “Lá vem o oropouche”.
Sobre a mpox, ele diz: “O aumento de casos […] na África traz preocupações, visto que já vivemos um surto significativo no Brasil, principalmente em 2022, de transmissão por contato íntimo. […] O acesso à vacina é limitado, o que dificulta o enfrentamento. A USP está participando de um projeto internacional para avaliar o tratamento da doença”.
Mais surpreendente é o sendero de terapia celular em que o Butantan avançou. A instituição chefia pesquisa para desenvolvimento de células por tecnologia de engenharia genética CAR-T para tratamento de cânceres de sangue – linfomas não Hodgkin e leucemias – em consórcio com universidades públicas paulistas. Utilizada em países desenvolvidos, a terapia é ainda experimental por aqui.
A tecnologia é replicável, mas o custo é um impeditivo: pode chegar a R$ 2 milhões por paciente, segundo Esper. O Butantan pretende fornecer o produto para o SUS já em 2025, que o repassaria gratuitamente para o paciente. Estima-se que anualmente ocorram no Brasil cerca de 23 mil casos de linfomas não Hodgkin e leucemias.
O cenário parece jubiloso, mas se dependesse de verbas públicas paulistas, dificilmente o Butantan teria saído da produção do soro antiofídico que lhe deu fama mundial muitas décadas atrás. A dotação orçamentária é de cerca de R$ 164 milhões, suficiente para folha de pagamento e algumas contas de custeio. A cobra só ganha sua asa proverbial quando se enxerga o faturamento operacionalizado pela Fundação Butantan, de R$ 3,01 bi em 2023.
Crê-se que o modelo da fundação, de direito privado e sem fins lucrativos, dá mais agilidade na comercialização dos soros e vacinas e na compra de insumos de fornecedores privados. Talvez mais importante, essa fórmula tira os cofres do Estado do caminho das receitas do Butantan.
O modelo já foi questionado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, mas, utilizado também pela Faculdade de Medicina da USP, implica uma saudável manutenção integral dos recursos nas entidades. Eventual remuneração de controladores é vetada. Assim, o sistema é normalmente defendido pelos governadores de plantão, que não raro aproveitam-se dele para aliviar os repasses.
No momento, a propósito, há uma discussão para a possível absorção pelo Butantan da Furp, a decana Fundação para o Remédio Popular, vinculada à Secretaria de Saúde, quando não de sua privatização pura e simples. O governador Tarcísio de Freitas já se queixou de que o custo de produção de antibióticos, antirretrovirais, imunossupressores e outras classes de remédios é muito superior ao do mercado. A Furp é tida como a maior fabricante pública de medicamentos do continente.
Para Esper, o modelo de fundação é ideal por garantir que todo o faturamento será reinvestido no instituto – não há, diz, acionistas a ser remunerados; e também por permitir que produtos sejam feitos com “margens compatíveis com a realidade do SUS”, a estrutura responsável por distribuir os produtos do Butantan para os brasileiros, “os reais donos do que fazemos aqui”.
“A gente tem a vantagem de lidar com um orçamento mais independente gerado pela receita do que comercializamos. Isso nos permite fazer investimentos internos em pesquisa e inovação mais do que outros institutos pares dentro da estrutura do estado de São Paulo”, diz Esper.
Gato escaldado tem medo de água fria, reza o ditado, sobretudo quando se trata de financiar ciência no Brasil. Mesmo assim, o médico relativiza, durante o almoço, a possibilidade de remanejamento de 30% da verba orçamentária destinada à Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como indica projeto de lei enviado pelo Executivo paulista e aprovado na Assembleia Legislativa neste ano.
O corte de R$ 600 milhões pode ou não ser endossado na confecção da Lei Orçamentária Anual (LOA) paulista de 2025, ainda por ser redigida e votada. Para Esper, que se considera um otimista, caráter que teria herdado do pai, “há sensibilidade de todos os setores para reconhecer a importância do desenvolvimento e pesquisa”. A coisa, portanto, crê, teria um desfecho feliz.
“O estado de São Paulo sempre capitaneou investimentos, a gente vê aqui concentrada quantidade muito grande da inovação brasileira. Participei de um evento em que a cidade de São Paulo foi citada como a 26ª de maior inovação do mundo [trata-se de um ranking de ‘ecossistema de startups’]. Temos aqui uma aglomeração de massa crítica.”
Diante da pergunta inevitável de qual é seu sentimento por fazer parte de um governo chefiado por alguém que volta e meia tem de afirmar laços com o bolsonarismo – com todo o passivo que essa corrente política tem em campanhas de vacinação -, Esper reage prontamente, quase à pavloviana. “O governador Tarcísio [de Freitas] é comprometido com os programas de vacinação. Quando ele veio aqui em março de 2023, fez um discurso eloquente em defesa da vacina e do desenvolvimento científico.”
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Pudera: a ocasião marcou a inauguração do novo Museu da Vacina, na área visitável do instituto, e o governador em sua fala aludiu inclusive ao que chamou de “guerras contra notícias falsas” enfrentadas por “muitos” da história do Butantan. “Não podemos permitir a volta da varíola, da poliomielite, do sarampo. Esse dia é para homenagear os que lutaram, desenvolveram vacinas, os pesquisadores, que trabalharam uma vida inteira para nos proporcionar saúde e esperança”, discursou.
Esper chegou ao Butantan num momento particularmente rumoroso, substituindo Dimas Covas. O médico hematologista e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP ganhou notoriedade durante a pandemia de covid-19, quando expandiu, via Fundação Butantan, áreas-fim como a de produção de vacinas e assumiu simultaneamente os postos máximos do instituto e da fundação. Uma configuração corporativa que, embora não inédita, não se repetiria com Esper.
O Butantan esteve na vanguarda da campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil, quando o ex-governador paulista João Doria, antecipando-se às hesitações federais, decidiu trazer da China a CoronaVac, primeiro imunizante contra a doença utilizado por aqui. Coube ao Butantan produzi-lo em suas instalações.
Covas tornou-se ubíquo nas entrevistas coletivas semanais no Palácio dos Bandeirantes que tinham Doria como “âncora” e chegou mesmo a participar da CPI da Covid do Senado, quando foi interpelado pelo senador Eduardo Girão (Novo-CE) se a CoronaVac valia-se de células de fetos abortados.
Covas acabou por pedir demissão do instituto, mantendo por mais algumas semanas o comando da fundação. Ao desgaste que acumulou pela repercussão de gastos supostamente extravagantes na construção de um edifício-garagem para o Butantan somou-se o desacordo do secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde da época, David Uip, com o duplo comando do subordinado. Houve ainda a contestação, pelo TCE, de um contrato celebrado sem licitação entre a fundação e a transnacional SAP, para utilização de um software de gestão (ERP).
O uso do ERP da SAP seria necessário, dado que, como a fundação disse em nota à “Folha de S.Paulo”, que levantou o caso na ocasião, “18 dos 20 maiores produtores mundiais de vacinas estão executando sua produção em soluções SAP, que cobrem o processo de ponta a ponta, desde a produção, passando pela distribuição controlada, administração, até a monitorização pós-vacina”. O Valor tentou contato com Covas em Ribeirão Preto, mas ele se encontrava licenciado e não respondeu aos pedidos de entrevista.
Esper disse ao Valor que, ao entrar no Butantan, em 2023, “o contrato estava assinado” e que lhe coube “fazer a avaliação e a defesa da implantação”. “O calendário já estava correndo havia algum tempo, se nada fosse feito haveria custos adicionais já em maio [de 2023]. Tínhamos de fazer aquilo acontecer”. Ele confirma que o sistema da SAP é utilizado por “90% das empresas farmacêuticas do mundo” e que, portanto, sua escolha é uma maneira de “salvaguardar processos”.
A possibilidade de vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas de novembro motiva em dado momento da conversa o gesto tão brasileiro das três batidinhas sucessivas no tampo da mesa. Esper teme que o ex-presidente e novamente presidenciável volte, caso vitorioso, a emascular instituições multilaterais como a Organização Mundial de Saúde.
Muitos programas que visam prevenir doenças comuns a diversos países são multilaterais, e o histórico de Trump joga contra essa cooperação. “Os colegas acadêmicos com quem me relaciono nos Estados Unidos nutrem um pouco de receio com a atenção que deve ser dada ao investimento em ciência no caso de um governo republicano.”
Sem cooperação mundial, muitas das lições da covid-19 seriam, em certo sentido, inutilizadas. E uma nova pandemia, para muitos, não é questão de “se”, mas de “quando”. Esper, sem esse alarmismo que jamais combinaria com seu figurino, aquiesce. “Sim, pode aparecer um vírus com grande letalidade para causar nova pandemia. Uma coleção deles vive na natureza, e eles podem fazer o que chamamos de ‘grande salto’, passar para humanos e estabelecer transmissão entre humanos.”
Nada parece incomodar mais a Esper, contudo, do que um discurso comum dos líderes populistas, a rejeição à imigração, quando não à xenofobia pura e simples. Não parece uma reação às dificuldades enfrentadas pela própria família libanesa – sua avó foi trazida para o Brasil fugida da Guerra Civil e centenas de parentes seguem no Líbano -, mas uma raison d’être.
Ele cita uma passagem de “Desconstruindo Harry” (1997), filme de e com Woody Allen, em que o próprio Allen, num diálogo, amplia o alcance da expressão “my people” para muito além do judaísmo. “Não importa de onde você veio, se veio do Haiti, da África do Sul, da Alemanha, do Líbano ou de Portugal. Todos somos um povo só. Me dá dor no coração”, diz Esper.
“O mais impressionante é que esse não é um pensamento pragmático. Ouvi um podcast sobre o tema, dizia-se ali que a imigração era a nota de US$ 100 largada na calçada. Ninguém quer pegar, mas você volta dali a duas décadas e a economia cresceu.”
Fonte: Valor Econômico