Por Anaïs Fernandes e Álvaro Fagundes — De São Paulo
06/03/2023 05h01 Atualizado há 4 horas
A inflação brasileira fechou o ano passado pela primeira vez abaixo da dos EUA e da zona do euro. Essa trajetória pode e tem sido usada para pressionar o Banco Central para cortar a taxa de juros, mas um olhar para os núcleos da inflação aqui e nos países avançados mostra uma história menos benigna para o cenário brasileiro.
O núcleo da inflação (medida que elimina itens como alimentos e combustíveis) no Brasil ficou acima do de EUA, zona do euro e de uma mediana de países praticamente todo o tempo desde 2019, mostra documento do Fundo Monetário Internacional (FMI) de janeiro. A conclusão é que a inflação de núcleo do Brasil não roda abaixo da dessas outras nações.
Isso só aconteceu em relação aos EUA e à mediana de países em julho, agosto e setembro de 2020, ano marcado pelo início da pandemia. Nesses meses, a inflação de núcleo brasileira acumulada foi de 1,3%, 1% e 1,2%, pela ordem, ante 1,5%, 1,7% e 1,7% da americana e 1,6%, 1% e 1,3% dos demais países.
Os núcleos são medidas mais “limpas” para a inflação, porque excluem itens mais voláteis e sobre os quais bancos centrais têm menor poder de manobra, como alimentos e energia. “O núcleo é um termômetro mais preciso de onde está a pressão da inflação”, explica Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do Goldman Sachs.
Em setembro de 2022, pela primeira vez na série analisada pelo FMI, a inflação brasileira cheia (7,1%) foi menor do que a americana (8,2%) e a da mediana de países (7,5%). Em relação à zona do euro, a mudança ocorreu um mês antes, em agosto, quando o Brasil registrou 8,6%, e os europeus, 9,1%.
Nos dados do FMI, que vão até novembro do ano passado, a inflação cheia do Brasil estava em 5,9%, ante 7,1% dos EUA e da mediana de países e 10,1% da zona do euro. A Armor Capital e a Tenax Capital atualizaram os dados até janeiro de 2023 para os países identificados pelo FMI.
A vantagem do Brasil diminuiu, mas a inflação cheia brasileira ainda rodava em 5,8%, abaixo da americana (6,4%) e da europeia (8,6%). Na inflação de núcleos, no entanto, o Brasil acumula 8,7%, ante 5,5% nos EUA e 5,3% da zona do euro.
Na queda de braço com o BC sobre o patamar dos juros no país, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já mencionou a diferença entre a inflação no Brasil e em outros países. “Você tem um mundo onde você tem uma taxa de inflação menor que EUA e Europa, só que nós estamos com a taxa de juros maior do planeta, a taxa de juros real. Então, olha o paradoxo que nós estamos vivendo”, disse.
Não é uma retórica exclusiva de Haddad. No governo de Jair Bolsonaro, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, também falava que o Brasil poderia encerrar 2022 com uma inflação igual ou inferior à dos EUA e que, enquanto a inflação brasileira estava em queda à época, a americana subia.
Medidas de desoneração promovidas no ano passado por Bolsonaro e Guedes em meio à corrida presidencial, no entanto, explicam boa parte dessa diferença entre a inflação cheia e de núcleo no Brasil, segundo economistas. “O Brasil começou a desinflação antes de todo mundo pelas medidas de tributação, sobretudo da gasolina”, diz Débora Nogueira, economista-chefe da Tenax Capital.
“A inflação de combustíveis estava rodando a 49% no fim de 2021 e terminou 2022 em -24%. Isso significa que a contribuição passou de 3 pontos percentuais para quase -2 pontos. E os combustíveis não estão nas medidas de núcleo”, lembra Ramos.
Fatores de demanda, inércia e cãmbio contribuem para uma inflação de núcleo ainda bastante pressionada no Brasil, segundo o economista do Goldman Sachs. Ele observa, por exemplo, que a economia brasileira ainda opera perto do pleno emprego.
“O núcleo, no Brasil e no resto do mundo, tende a refletir mais a dinâmica da demanda doméstica, do quão acima você está do seu potencial”, diz Nogueira. “O que vemos é um núcleo pressionado ainda de forma espalhada no Brasil.”
Tradicionalmente, o Brasil tem uma inflação de núcleo mais elevada do que a de países avançados, até porque a meta brasileira é mais alta, diz Andrea Damico, sócia e economista-chefe da Armor Capital. “Nossa meta, hoje, está em 3%. Passou um bom tempo em 4,5% até nos governos do PT, e os Estados Unidos, naquela época, já trabalhavam com 2%. Nosso núcleo é mais alto e está muito distante da meta”, afirma.
Damico pondera que o núcleo medido em 12 meses acumula dados passados de inflação muito fortes. Por isso, para acompanhar a eficácia da política monetária, ela prefere olhar mais “na margem”, a partir de uma média de três meses anualizada. “Nesse quesito, estamos um pouco melhor, embora ainda acima dos EUA e da Europa”, aponta.
Por essa medida, segundo a Armor, a inflação do Brasil em janeiro deste ano estava em 5,3%, ante 4,6% dos Estados Unidos e 4,7% da zona do euro. “Esse processo de desinflação está acontecendo”, diz Damico. “A atividade tem toda a cara de que vai enfraquecer em 2023, principalmente pelo que acontece com o crédito, mas, no dia a dia, ainda não ocorreu’”, afirma Nogueira, da Tenax.
Nos EUA, ela observa, a rodada de dados de janeiro também foi “muito impressionante”. “Nosso cenário entrando em 2023 era de uma desaceleração americana, que combinaria com uma moderação da inflação para algo mais próximo do que está na cabeça do Fed [banco central dos EUA]. O problema é que janeiro está desafiando nossa tese.”
Olhando para a inflação à frente, Damico diz ver pontos de convergência entre os países, mas também idiossincrasias do Brasil. “Tem um processo de desaceleração do crescimento global, ainda que a economia chinesa esteja surpreendendo após o fim das medidas de restrição para a covid. Isso dá respaldo para a gente ter preços de commodities sem novos choques”, afirma.
A visão geral também é construtiva para a inflação de bens no Brasil e no mundo, segundo Damico. “No Brasil, um ponto é que essa inflação de oferta chega via câmbio, então a gente tem de ter um ambiente tranquilo para conseguir aproveitar essa desinflação global de bens”, pondera Nogueira. Para ela, incertezas fiscais e medidas como a recente taxação sobre exportação de petróleo cru, porém, jogam na direção contrária.
Já os serviços seguem pressionados, lá fora e aqui dentro. Apesar disso, Damico aponta que a inércia no Brasil está um pouco menor e o efeito da política monetária restritiva deve estar no seu máximo. “Ño segundo semestre do ano passado a desinflação foi muito rápida. Agora, acho que tende a ser um pouco mais lenta, por causa de elementos como o reajuste real do salário mínimo, novos programas que podem surgir, mas vai continuar acontecendo, a política monetária está extremamente restritiva”, afirma.
Ramos, do Goldman Sachs, lembra que, em entrevista em meados de fevereiro, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, ponderou que, se o núcleo da inflação ainda estava ao redor de 9%, uma taxa básica de juros em 13,75% nem parece tão alta assim, considerando o juro real.
O economista reforça que inflação alta é como um imposto sobre a renda das famílias mais pobres. “Baixar a inflação é fazer política social. Os juros estão altos para trazer a inflação para baixo. Não é um ato de masoquismo econômico. Cada coisa na sua hora e lugar. Primeiro abaixa a inflação, depois podemos ter um juro um pouco mais normal”, afirma.
Na parte real da economia, outros fatores que não necessariamente têm a ver com a política monetária determinam o crescimento, como inovação e produtividade, aponta Ramos. “Seria bom se a política monetária pudesse resolver problemas de crescimento.”
Fonte: Valor Econômico
![arte06bra-101-nucleo-a3[1]](https://clipping.ventura.adm.br/wp-content/uploads/2023/03/arte06bra-101-nucleo-a31-1000x500.jpg)

