Tendência é que a produção esteja mais próxima das empresas e também em países amigáveis
Por Marsílea Gombata — De São Paulo
27/05/2022 05h04 Atualizado há uma hora
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Gabriella Dorlhiac: “Há relações longas de compliance, questões de qualidade e procedência. Mudar essa logística demora” — Foto: Claudio Belli/Valor
A guerra na Ucrânia deve acelerar processos de reacomodação e duplicação das cadeias globais. Após as tensões do governo de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, e a pandemia evidenciarem a necessidade de cadeias mais curtas, o impacto do conflito sobre os setores de energia e alimentos pode se ampliar para semicondutores e automóveis, aprofundando essa urgência.
Para construir cadeias mais resilientes, as empresas terão de levar em conta não apenas custos menores, mas também questões geopolíticas, afirmam especialistas. A tendência, contudo, é que essa reorganização leve anos, pois envolve investimento, busca por fornecedores confiáveis e processos regulatórios.
A necessidade de cadeias menores vinha sendo debatida antes mesmo da pandemia. Desde a crise financeira de 2008, companhias vêm se preocupando cada vez mais em trazer sua produção para perto. As tensões geopolíticas do governo de Donald Trump, a covid-19, e a guerra entre Rússia e Ucrânia reforçaram essa tendência. “Há dez anos, empresas já pensavam em cadeias menores, mais próximas dos consumidores. Estavam preocupadas com incerteza política, volatilidade, preços de frete e de energia. Trump acelerou isso. A covid acelerou ainda mais. E a guerra mais ainda”, afirma William Reinsch, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS).
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“Tudo isso converge para a mesma direção, isto é, persuadir empresas de que é preciso ter cadeias mais curtas e o que chamamos de resiliência, uma palavra bonita para a ideia de não se colocar todos os ovos na mesma cesta, seja para evitar choques de covid, guerras ou tarifas. Nos Estados Unidos, o governo tem encorajado “nearshoring” (produção próxima) e “friendshoring” (produção em países amigos), o que não significa produzir tudo aqui, mas ter parceiros confiáveis com os quais se pode contar”, continua.
Isso ficou claro na visita ao Brasil do subsecretário de Estado americano, José Fernández, no fim de abril. Ele reafirmou o interesse dos EUA em parceria com o Brasil para produção de vacinas e medicamentos, na tentativa de se preparar para uma próxima pandemia.
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Relatório da Câmara de Comércio Internacional (ICC) de março ressalta que a crise de covid-19 salientou a interdependência de países e indústrias para as cadeias de suprimentos globais, “levando a um movimento de realocação de atividades estratégicas”. “Como resultado, os países europeus e os Estados Unidos estão demonstrando vontade de avançar para o ‘reshoring’ da produção industrial para garantir sua independência econômica e tecnológica em setores estratégicos como saúde, eletrônicos, agronegócios, aplicações do 5G à indústria”, observa o documento, em referência ao processo de realocar a produção no país.3 de 3
Os lockdowns em meio à crise sanitária levaram a fechamentos de portos e interromperam fretes marítimos, responsáveis por transportar mais de 80% dos bens de consumo. Os preços de frete marítimo cresceram cinco vezes e as cadeias se mostraram mais lentas e menos confiáveis. Dentre os países mais atingidos, segundo o ICC, estão EUA, Alemanha e China, dada sua maior integração e dependência das cadeias globais de valor (CGVs). O comércio de bens manufaturados das cadeias globais responde por mais de 40% do comércio global, lembra o relatório.
O conflito entre Rússia e Ucrânia trouxe preocupações adicionais à oferta, especialmente de alimentos e de energia. “Quando achávamos que estávamos saindo de um choque vem a guerra, que trouxe agravamento inflacionário quando empresas já tinham dificuldades logísticas. Agora estamos com problemas em energia, alimentos e fertilizantes. Uma tempestade perfeita, que impede empresas de se programarem como deveriam”, afirma Gabriella Dorlhiac, diretora-executiva do ICC.
Coleman Nee, economista sênior na Organização Mundial do Comércio (OMC), argumenta, contudo, que o choque decorrente do conflito pode se estender a outras áreas. “Os setores mais afetados são produtos agrícolas, trigo, semente de girassol, óleo de girassol e derivados. Isso impactará especialmente países do Oriente Médio e do norte da África, onde a segurança alimentar será uma questão. Mas também pode ter consequências para o setor automotivo”, argumenta Nee.
“A Rússia é um dos maiores fornecedores globais de paládio, usado para conversão catalítica [que diminui a emissão de poluentes nos carros]. Isso poderia causar problemas nas linhas de produção de automóveis. Há ainda o gás neon, que tem a Ucrânia como grande exportador. Esse gás é usado para lasers especiais importantes na fabricação de semicondutores. A participação da Rússia e da Ucrânia no comércio global é pequena, mas ocorre em setores-chave”, complementa.
Em seu World Investment Report de 2020, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) identificou três tendências que afetarão as cadeias globais: mudanças tecnológicas, governança e sustentabilidade. O relatório traça quatro trajetórias: ‘reshoring’, regionalização, replicação, e diversificação da produção com maior fragmentação das cadeias globais. Segundo a Unctad, os principais motores de ‘reshoring’ são pressões por autossuficiência decorrente de políticas governamentais. E a perspectiva é de aprofundamento, dada a previsão de continuidade das tensões entre China e EUA.
Hussein Kalout, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e pesquisador da Universidade Harvard, afirma que a rivalidade sino-americana deve continuar e se estender para setores como finanças, tecnologia e plataformas comerciais. “Será uma competição transversal dentro do setor de tecnoeconomia, onde as empresas de tecnologia se tornarão eixo vital no processo de dinamização da economia”, prevê.
Kalout, que foi secretário especial de assuntos estratégicos da Presidência da República, diz que a pandemia teve impacto temporário sobre as cadeias globais, mas a principal consequência ainda será vista. “A crise sanitária mostrou a necessidade de diversificar e se ter alternativas”, diz, ao citar os setores de saúde e manufatureiro como os mais impactados. Ele afirma que a guerra também trará impacto, especialmente em energia, commodities, alimentos e saúde, mas considera “imprevisível um diagnóstico acurado” das consequências para os próximos anos.
Estudo de 2020 da McKinsey sobre resiliência e reequilíbrio das cadeias globais mostra que as empresas podem esperar que interrupções na cadeia de suprimentos com duração de um mês ou mais ocorram a cada 3,7 anos. Isso significa perdas de mais de 40% dos lucros de um ano a cada década. Uma interrupção de cem dias de produção pode significar a perda de ganhos de um ano inteiro ou mais, dependendo do setor.
No estudo, feito com 325 empresas de 13 setores, a consultoria estima que a produção de até 26% dos bens comercializados globalmente (cerca de US$ 4,6 trilhões) poderia mudar de lugar no médio prazo. No setor farmacêutico, os motores da mudança poderiam ser a produção de insumos-chave pela Índia e pela China. No automotivo, o fato de os bens intermediários atravessarem Ásia, Europa e América do Norte, e a dependência da China. No de semicondutores, a alta concentração em países da Ásia, com 95% da capacidade de montagem e teste das peças.
Apesar da busca por produção próxima de mercados consumidores, a tendência é que setores muito dependentes de mão de obra sigam em regiões como o Sudeste asiático, onde os salários são mais baixos. “Nearshoring” e, principalmente, “reshoring” são mais prováveis em setores que requerem alta tecnologia e mão de obra qualificada, afirma Reinsch.
Líderes empresariais veem a disrupção das cadeias como o maior risco ao crescimento da companhia, maior do que a fraca demanda, segundo a McKinsey. Mesmo assim, apenas 15% consideravam em 2020 mover sua produção de lugar a fim aumentar a resiliência da cadeia de suprimentos.
Para Reinsch, não haverá apenas uma resposta e esse é um processo lento, porque varia de empresa para empresa. “Não é apenas para onde se vai, mas como ajustar fornecedores. Em um estudo que fizemos com empresas do setor automotivo no âmbito do acordo entre Canadá, México e EUA, muitos falavam que poderia levar 17 anos para diversificar seus fornecedores”, diz.
Gabriella Dorlhiac observa que há uma questão de confiabilidade, que não fará as cadeias mudarem tão rapidamente. “Há relações longas de compliance, questões de qualidade e procedência. Mudar essa logística demora”, diz. Ela não prevê que os países ficarão mais protecionistas, mas espera uma pulverização da produção.
Um dos principais entraves a esse rearranjo são os custos. Em relatório sobre cadeias globais, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que uma reorganização para trazer a produção para mais perto poderia reduzir o PIB global em 5,5 pontos percentuais (quase US$ 5 trilhões). Segundo a OCDE, os EUA poderiam perder 6,9 pontos percentuais de seu PIB nos primeiros anos, a União Europeia, 4,2, e o Sudeste Asiático, 10,8.
Fonte: Valor Econômico