/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2025/G/Q/mzdeURRxiAmtKPCPz6Cg/ap24285168633842.jpg)
Não são poucas as pessoas que têm soado o alarme sobre o endividamento público dos países desenvolvidos, particularmente os Estados Unidos. As previsões vão da chegada de mais uma crise até a derrocada do dólar como moeda dominante. O que diferencia a análise do megainvestidor Ray Dalio é que ele insere suas advertências numa análise de longuíssimo prazo.
Com base nos dados que recolheu, o fundador do Bridgewater, maior fundo de hedge do mundo, situa sua advertência na história da economia global: o mundo está chegando ao fim de um grande ciclo histórico, algo que pode ser uma experiência traumática.
Seu livro mais recente, “Como os países quebram: O grande ciclo” (Intrínseca, 400 págs., R$ 99,90), se soma a uma vasta produção em que Dalio procura compartilhar sua visão de mundo e, em suas palavras, transmitir aos mais jovens o que aprendeu em meio século de carreira no mercado financeiro. O investidor argumenta que toda a história das economias é orientada por ciclos mais longos de expansão e crise, que se sobrepõem aos ciclos curtos da atividade econômica.
A trajetória maior é orientada por cinco forças: o endividamento; a política interna; a política externa; a natureza; a inventividade humana. No momento atual, em que um grande ciclo de cerca de 80 anos está chegando ao fim, as primeiras quatro forças têm efeitos mais negativos e só a última parece trazer boas notícias.
Olhando para o caso específico dos Estados Unidos, no entanto, Dalio escapa por um momento do que lhe parece um destino inevitável. No livro, o investidor apresenta uma proposta para manter a dívida americana sob controle, com o nome de “plano de 3% em 3 partes”, ou “3-3-3”. A ideia é manter o déficit público abaixo dos 3% por meio de uma combinação de cortes de despesas, aumentos de impostos e, em seguida, redução da taxa de juros do Fed.
Entretanto, a proposta não reverte de todo o pessimismo com o final do grande ciclo. O problema, afinal, não é apenas de natureza econômica ou financeira. A pressão política, para Dalio, provavelmente vai impedir que as medidas sejam implementadas, levando ao sufocamento do investimento público pelo pagamento dos serviços da dívida.
As iniciativas sendo adotadas hoje nos corredores de Washington, do plano orçamentário às tarifas comerciais, tendem a piorar o quadro, acredita. E, conforme o alerta do investidor, a tentativa de forçar a queda dos juros pode comprometer a posição dominante do dólar, com efeitos catastróficos para a economia americana e a mundial.
Valor: O livro conecta a dívida e o ciclo econômico à política local, à geopolítica, a conflitos armados e ao clima. O sr. pergunta o que é mais forte: a conjunção de forças com efeitos negativos ou a inventividade humana, de efeitos positivos. Uma particularidade de nossos tempos é que as maiores ameaças se tornaram existenciais, como o aquecimento global e os arsenais nucleares. A conjuntura atual é mais perigosa do que as outras crises?
Ray Dalio: Meu estudo da história me levou a entender que existem cinco forças que interagem para produzir grandes ciclos de bons e maus momentos. Esses ciclos se desenrolam em torno de uma tendência ascendente nas capacidades e nos padrões de vida humanos. As quatro primeiras forças (dinheiro, política interna e externa, atos da natureza) estão se agravando, e a quinta (inventividade humana) está produzindo enormes benefícios e riscos. Por exemplo, o aumento do risco de guerra nuclear e o aquecimento global refletem o agravamento da terceira e da quarta forças. Os avanços na inteligência artificial vão criar enormes poderes para produzir tanto grandes avanços quanto grandes danos à humanidade. Essas forças são agora maiores do que nunca, e o mundo está mais conectado do que nunca, então os riscos são maiores. Mas isso também significa que as oportunidades serão ainda maiores se a humanidade conseguir superar as inclinações de lutar e, em vez disso, concentrar-se no bem-estar do todo, de uma maneira prática. Acredito que esforços para tornar a maioria das pessoas produtivas contribuiriam para uma prosperidade generalizada, o que reduziria os riscos e aumentaria o bem-estar.
Valor: O lado “sombrio” das cinco forças é que, exceto em tempos de prosperidade, há pouco espaço para multilateralismo e prevalece o mais forte. Hoje os EUA estão inclinados mais ao conflito que ao cosmopolitismo. A assertividade da superpotência pode sair pela culatra?
Dalio: Parece-me que os eventos estão acompanhando a trajetória do grande ciclo, como sempre. Quanto à pergunta, a resposta objetiva teria que ser sim. De fato, é provável que saia pela culatra. Mas não precisa ser assim. É evidente que a ordem mundial surgida após a Segunda Guerra, moldada pelos EUA, e a tentativa de manter um sistema multilateral por meio de organizações como ONU, FMI, Banco Mundial, Tribunal Penal Internacional etc., acabaram. Vai surgindo uma geopolítica mais unilateral, na qual o poder faz a justiça. Seria ótimo se o foco estivesse em produtividade, prosperidade e bem-estar generalizados, mas precisamos ser realistas. Hoje, o mais importante para qualquer país é se fortalecer, ou seja, educar sua população, ter uma sociedade civil com muitas oportunidades para as pessoas inventarem e inovarem, manter um balanço de pagamentos sólido e não se enrolar demais em problemas com suas dívidas.
Valor: Ao tratar do controle do endividamento, o sr. é enfático sobre como a taxa de juros é mais decisiva do que os cortes de gastos e aumentos de impostos. O governo americano vem exercendo pressão sobre o Fed para reduzir os juros. Como o sr. vê esse episódio?
Dalio: A taxa de juros pode ter mais impacto no serviço da dívida, realmente. Mas se os banqueiros centrais reduzirem os juros para níveis artificialmente baixos, os retornos reais dos ativos de dívida cairão, prejudicando a demanda por eles. Por isso, na minha solução de “3% em três partes”, a redução dos juros seria uma medida natural e compensatória. O que ela compensaria seria a desaceleração econômica que os aumentos de impostos e cortes de gastos causariam. O Fed não deveria reduzir os juros sem os outros fundamentos, porque essa medida corroeria ainda mais o valor do dinheiro e diminuiria a confiança dos detentores de títulos americanos. Se o Fed não defender o valor do dinheiro, ele perderá sua utilidade como reserva de riqueza e as pessoas recorrerão cada vez mais a outras reservas, o que enfraqueceria a posição do dólar.
Valor: Ao descrever o ciclo longo, em sua conexão com a política local, a geopolítica e o meio ambiente, o sr. emprega termos como “necessariamente” e “inevitavelmente”. Porém, o livro inclui o plano 3-3-3, visando manter a evolução da dívida americana sob controle e postergar a etapa catastrófica do ciclo. Até que ponto o plano pode controlar os efeitos do ciclo longo?
Dalio: As dívidas funcionam para países do mesmo jeito que para pessoas e empresas, exceto que os países podem imprimir o dinheiro que usam para pagá-las e confiscar o dinheiro dos outros por meio de impostos. Ainda assim, os pagamentos do serviço da dívida não podem aumentar mais rápido do que as rendas disponíveis para realizá-los. Caso contrário, o espaço para gastos públicos ficaria reduzido. O plano parte da constatação de que um déficit orçamentário de aproximadamente 3% do PIB manterá a relação entre dívida e receita estável, porque a economia provavelmente crescerá a uma taxa de cerca de 3%. Esse nível só pode ser alcançado por meio de ajustes em todos os três determinantes do déficit: gastos, impostos e taxas de juros da dívida. Equilibrar o déficit usando apenas um ou dois desses determinantes teria consequências insuportáveis. Por essa razão, a solução de 3% em três partes funcionaria; a falha em implementá-la provavelmente levará a uma crise. Infelizmente, há o lado inevitável: a política, que influencia o processo, impedirá que essa solução se concretize. Vai ser assim, porque as pessoas que votam não querem nem que seus impostos sejam aumentados, nem que os gastos com seus benefícios sejam cortados. Por isso, os partidos em que votam não promoverão a disciplina necessária para evitar resultados deletérios.
Valor: O sr. compara a crise de dívida que pode acontecer nos EUA a um ataque cardíaco. E avisa ao governo que há pouco tempo para agir. Hoje, as análises indicam que o orçamento público americano vai aumentar o déficit. Como isto afeta sua metáfora?
Dalio: É fácil ver as consequências dessa iniciativa. O plano orçamentário levará os gastos públicos a cerca de US$ 7 trilhões, com uma receita tributária de aproximadamente US$ 5 trilhões. Isso significa que o gasto vai estar por volta de 40% acima do que vai ser recebido. E como esse déficit, com acumulação de dívida, vem acontecendo há muitos anos, a dívida está hoje em mais ou menos 600% da receita. Os gastos com a dívida estão expulsando as demais despesas. Se a trajetória não for mudada, a espiral ascendente da dívida vai se alimentar de si própria. Nos próximos dez anos, o endividamento, que hoje está em cerca de US$ 230 mil para cada família americana, vai subir para algo como US$ 425 mil por família. Só que antes disso vai haver uma crise de dívida e de câmbio. É isso que quero dizer quando falo em ataque cardíaco. Os pagamentos dos serviços da dívida vão expulsar o resto das despesas, o que vai produzir um fechamento abrupto do sistema. E isso vai se parecer muito com um ataque cardíaco econômico. É quase certo que isso vai levar o governo a, como se diz, imprimir dinheiro, o que vai desvalorizá-lo. Manter ativos da dívida como reserva de riqueza vai se tornar indesejável. E isso vai conduzir à venda desses ativos, o que será o fim da ordem monetária que conhecemos. Aliás, foi assim que todas as ordens monetárias do passado terminaram.
Valor: O preço do ouro tem subido, o que é visto como busca de segurança, mas também sinal de derrocada do dólar. O dólar está realmente em risco? E o ouro é mesmo um porto seguro?
Dalio: Para mim, a situação, os riscos e os resultados prováveis são análogos ao que ocorreu nos anos 1970 e 1930. Nesses períodos, houve muita impressão e desvalorização de dinheiro, em todas as moedas, relativamente ao ouro. Em tempos assim, quando há uma perda de confiança na moeda fiduciária, as pessoas se voltam para ativos duros, como o ouro, que não pode ser impresso e desvalorizado. Hoje, o ouro é a segunda principal moeda de reserva, atrás só do dólar, à frente do euro e do iene. Ele está sendo acumulado pelos bancos centrais, enquanto os títulos expressos em dólar estão encolhendo como porcentagem das reservas. As pessoas não confiam mais que os governos vão parar de imprimir e desvalorizar o dinheiro.
Valor: Sobre a ideia da queda do dólar: podemos imaginar os efeitos, para a economia americana, de perder esse status de emissor da moeda de reserva mundial?
Dalio: É fácil imaginar os efeitos não só para a economia americana, mas para o mundo. A dinâmica é clara e aconteceu antes. Foi o caso da libra esterlina e do guilder neerlandês. Nenhuma moeda de reserva durou para sempre, e a derrocada sempre teve as mesmas razões. Explico essas razões em outro livro: “Princípios para lidar com a ordem mundial em transformação”. Não estou dizendo que o dólar está prestes a perder seu status de moeda de reserva, embora isso até possa acontecer. O que acredito é que estamos entrando em um tempo em que o dólar e outras moedas importantes vão perder sua efetividade como estoques de riqueza.
Valor: Na introdução, o sr. diz que os mercados de dívida comandam tudo. Por que esses mercados são tão centrais e como se dá esse comando?
Dalio: É no mercado de dívida do governo americano que se baseiam os mecanismos de precificação dos demais mercados. Ele fornece a taxa de retorno sem risco na principal moeda de reserva do mundo. Com isso, os preços de todos os mercados são organizados segundo seus retornos como diferencial para a taxa de juros sem riscos do Tesouro americano. Sendo assim, é claro que quando os mercados de dívida se desequilibram, seja por causa de bolhas de crédito, com um excesso de empréstimos, seja por causa de uma eventual contração, isto é, quando não há empréstimos o suficiente para a economia crescer, é aí que temos ajustes dramáticos e dolorosos nos mercados e nas economias.
Valor: O sr. recomenda aos investidores que “se imunizem”. Como se dá essa imunização, neste cenário de conflito crescente e de crise de dívida à espreita?
Dalio: Meu conselho para se imunizar continua o mesmo: criar um portfólio diversificado de ativos que possam produzir retornos superiores à erosão do poder de compra oriunda da inflação e dos impostos. Para explicar como fazer isso, seriam necessárias mais palavras do que cabem nesta resposta, então posso dizer a quem se interessa que a descrição de minha abordagem “Para todas as condições climáticas” está disponível online.
Fonte: Valor Econômico

