Quando Donald Trump propôs comprar a Groenlândia, circularam rumores de que a Dinamarca poderia encorajar a Novo Nordisk a retaliar com aumento de 500% sobre americanos; é uma brincadeira?
Pode um medicamento para a perda de peso se tornar uma arma de guerra? Antes, a pergunta pareceria absurda. Agora, não mais.
Neste ano, quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se ofereceu para comprar a Groenlândia da Dinamarca, circularam rumores on-line de que o governo dinamarquês poderia encorajar a Novo Nordisk, empresa do país fabricante dos remédios contra a obesidade Ozempic e Wegovy, a retaliar com um aumento de preço de 500% sobre os consumidores americanos.
Tratava-se de uma brincadeira. No início de março, contudo, Lars Fruergaard Jørgensen, o perspicaz executivo-chefe da empresa, advertiu que a guerra comercial de Trump poderia resultar em “aumentos de preços” desses medicamentos, entre outras ameaças competitivas a seu futuro.
Também há uma ideia peculiar circulando no ecossistema de Trump, a de que os remédios poderiam ser uma moeda de troca em futuras negociações com a Dinamarca, talvez com pressões por uma aquisição pelos americanos. Afinal, muitos “eleitores [americanos] se importam com o Ozempic”, como me disse um observador, ressaltando que outra possível tática seria os EUA exigirem que se reveja o valor da coroa dinamarquesa, para manter a Dinamarca atrelada ao sistema financeiro baseado no dólar.
Se isso vai acontecer? Acho difícil acreditar, e muitos fatores ainda podem frustrar Trump. No meio-tempo, porém, os investidores que esquadrinham o cenário mundial devem prestar atenção a quatro pontos práticos.
“Janela de Overton”
Primeiro: como Elon Musk observou nesta semana, a chamada “Janela de Overton” — o espectro de ideias políticas aceitáveis pela opinião pública — está se ampliando, e rápido; nada pode ser descartado. Segundo, a equipe de Trump quer expandir sua influência nas negociações mesclando questões econômicas, financeiras, comerciais, tecnológicas e de segurança nacional de uma forma que parece ser algo de outro mundo para qualquer um que tenha se formado em um programa de MBA do século XX — ou, na verdade, em qualquer curso de economia.
Terceiro, alguns dos assessores de Trump têm uma visão mental da rivalidade entre grandes potências que é estranhamente familiar para estudantes da história da Ásia Central (entre os quais me incluo). Nuuk, a capital da Groenlândia, é a versão do século XXI de Samarcanda ou Cabul — e o Ozempic seria o equivalente ao açafrão.
Isso explica por que Trump se concentrou no norte congelado, com seus minerais, futuras rotas de trânsito e longas fronteiras com a Rússia e a China. Também explica sua ambivalência em relação à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental).
Ou, como Curtis Yarvin, um blogueiro do chamado “Iluminismo das Trevas”, observou em um recente apelo a Trump: “As premissas da política externa [dos EUA] não devem ser herdadas da era da ‘segurança nacional’, [portanto] as organizações que executam essa política externa provavelmente também não deveriam ser herdadas do século XX”.
Yarvin é considerado um extremista e antidemocrata por muitos dos principais especialistas. Ainda assim, supostamente, ele teria influenciado figuras como J. D. Vance, vice-presidente de Trump. Portanto, vale a pena lê-lo — inclusive, porque ele também declarou que “quanto mais poder você usa, mais poder você tem […] você tem que continuar usando poder, de outra forma, você o perde”.
Constrangimento de Zelensky no Salão Oval
Isso coloca em evidência um quarto ponto: instituições como a Otan e países menores de uma hora para outra começaram a parecer vulneráveis. Basta considerar o recente ritual de humilhação do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, no Salão Oval. Isso talvez seja um modelo de como o “bullying” vai sendo intensificado.
Será que os alvos de ameaças podem contra-atacar? Nesta semana, Jens Stoltenberg, ex-chefe da Otan, e a primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, reiteraram que sim. “Na diplomacia, você precisa passar mais tempo com as pessoas com as quais discorda”, observou Stoltenberg, após o lançamento de um documentário que o acompanhou de perto chamado “Facing War”. “Precisamos estar preparados […] para a possibilidade de que os EUA reduzam sua presença na Europa”.
Ou, nas palavras de Frederiksen, na mesma linha: “A diplomacia é sobre política e valores. Então, se algo como [o incidente] no Salão Oval acontecer, você tem que voltar e continuar”.
No entanto, o problema da Otan é que sua influência depende tanto da mentalidade quanto de equipamentos militares — de forma que seu poder de dissuasão ruirá se houver desunião. Se a Casa Branca seguir o conselho de Yarvin, a intimidação pode ficar ainda pior e ser direcionada não apenas à Dinamarca, mas também ainda mais a países como o Canadá, que tem a (falta de) sorte geográfica de estar entre os EUA e o norte gelado. De fato, fui informada de que os assessores de Trump também consideram o dólar canadense (além da coroa dinamarquesa) como alvo para reavaliação.
Portanto, os investidores da Novo Nordisk devem ficar atentos. E muitos outros podem também se juntar aos diplomatas ocidentais e orar, como um deles me contou, para que “haja uma mudança nas eleições de meio de mandato nos EUA”.
“Vamos comprar a Califórnia de Trump”
Até lá, se você quiser algo leve que sirva de alívio, quase 300 mil dinamarqueses assinaram uma petição de “dinamarquização” intitulada “Vamos comprar a Califórnia de Trump — A próxima grande aventura da Dinamarca”. O movimento propõe um fundo de US$ 1 trilhão para levar “hygge [um conceito bem dinamarquês ligado à satisfação com o ‘aconchego’] para Hollywood”, “ciclovias para Beverly Hills” e colocar um capacete de viking no Mickey Mouse.
Uma piada? Claro. Mas não é “apenas” engraçada. Eleitores — e investidores — ocidentais deparam-se com um patamar de fluxos geopolíticos nunca antes visto em suas vidas, nos quais fato e ficção desenfreada parecem se confundir mais a cada dia.
Fonte: Valor Econômico