A maneira generosa de interpretar o Partido Republicano de hoje é que ele quer matar um dragão que já não pode ser domesticado. O dragão é o governo federal dos EUA; as armas preferidas dos republicanos são os shutdowns [a paralisação dos serviços públicos] e a inadimplência de dívidas.
Um ponto de vista menos generoso é que os republicanos são membros de um culto à personalidade que visa desativar o aparelho de justiça que responsabilizaria Donald Trump. Não importa se um republicano eleito é um alguém convicto de suas posições crente ou simplesmente foi intimidado a crer nelas; você julga um servidor público por suas ações.
Por essa medida, 90% do partido hoje pertence à “turma da demolição”. Na terça-feira, 200 dos 223 republicanos da Câmara dos Deputados votaram em Jim Jordan, o vândalo legislativo mais talentoso de sua bancada. Faltavam apenas 17 para ele se tornar o presidente da Câmara. Um dia depois, ele conseguiu apenas 199 votos.
Se Jordan conseguirá ultrapassar esse limite é uma questão em aberto. Seu infeliz antecessor, Kevin McCarthy, precisou de um recorde de 15 rodadas para conseguir a posição em janeiro. Você deve estar se perguntando se aquela provação contundente valeu a pena. McCarthy fez tantas concessões aos colegas mais extremistas que começou como um eunuco político. Ele foi pago com a deslealdade, quando o depuseram no começo deste mês.
Jordan enfrenta o desafio oposto. Como linha-dura entre os linhas-duras, ele precisa conquistar os chamados republicanos moderados. O termo “moderado” é relativo. Entre aqueles que votaram contra ele está Ken Buck, um “Tea Partier” original do Colorado.
É possível que Jordan consiga torcer os braços de um número suficiente dos resistentes restantes para vencer na terceira ou quarta tentativa; ninguém jamais perdeu dinheiro apostando contra a determinação dos republicanos moderados. Mas mesmo que não consiga, seus colegas cruzaram uma linha vermelha. A grande maioria abraçou uma figura cuja missão na vida é incapacitar o governo, incluindo seu sistema de justiça.
Qualquer uma de três razões seria suficiente para um republicano à moda antiga se opor a Jordan, principalmente para um cargo que o colocaria em segundo lugar na linha de sucessão à presidência dos EUA.
A primeira delas é a alegação, não comprovada, de que Jordan ajudou a acobertar um escândalo de abuso sexual enquanto era treinador assistente de luta livre na Universidade Estadual de Ohio no fim da década de 80 e começo dos anos 90. Vários ex-alunos de luta livre se apresentaram para dizer que Jordan ajudou a abafar (ou fez vista grossa) as alegações de que seu chefe, o doutor Richard Strauss, abusou de várias pessoas. A universidade pagou uma indenização de US$ 60 milhões para mais de 250 vítimas. Jordan negou a alegação de acobertamento e ninguém sugeriu que ele fosse culpado de abuso. Mas ele ainda precisa testemunhar sob juramento em um caso em andamento que lhe rendeu o apelido de “Gym Jordan”.
A segunda razão é seu papel de cofundador do House Freedom Caucus, que transformou a ousadia fiscal em uma ferramenta rotineira. Jordan não aprovou uma única peça legislativa em seus 16 anos no Congresso. John Boehner, um ex-presidente republicano da Câmara dos Deputados cuja carreira Jordan ajudou a encerrar, o chamou de “terrorista legislativo”.
Embora seja um trabalho partidário, a maioria dos 55 presidentes da Câmara que os EUA já tiveram, incluindo McCarthy, tinham algum histórico de construção de coligações suprapartidárias para aprovar projetos de lei. A eleição de Jordan representaria uma forte rejeição dessa postura. Na filosofia dele, qualquer cooperação suprapartidária é uma traição aos princípios conservadores.
Mas é a terceira objeção — a de que Jordan estava em contato próximo com Trump e seus aliados enquanto o presidente derrotado tentava anular as eleições de 2020 — que dispara o alarme mais estridente. Daniel Ziblatt, um acadêmico que estuda a democracia na Universidade Harvard e é coautor, junto com Steven Levitsky, do recente livro “Tyranny of the minority”, diz que Jordan na presidência da Câmara seria o sinal mais preocupante do declínio da democracia dos EUA desde a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Jordan conversou muito com Trump antes do golpe fracassado e ignorou uma intimação para testemunhar ante o comitê que investigou a invasão. Ele também é presidente de um subcomitê que investiga a instrumentalização do governo, e que McCarthy criou em troca do voto de Jordan. Isso envolveu, até agora, investigações infrutíferas sobre praticamente todas as teorias da conspiração que circulam na direita, incluindo o suposto viés anticonservador do Federal Bureau of Investigation (FBI), o suposto papel de “Estado profundo” do Departamento de Justiça e a ciência distorcida por trás das vacinas contra a covid-19.
Jordan disse que foi contatado por “dezenas de denunciantes”. Nenhum produziu até agora material que atenda a essa definição. O comitê de Jordan poderá ser acusado do pecado que supostamente está investigando — o uso indevido do governo com finalidades vis.
O melhor argumento para Jordan na presidência da Câmara dos Deputados é que isso converteria o caçador furtivo mais notório do Capitólio em um guarda florestal. Dar-lhe participação no jogo finalmente transformaria Jordan em um ator responsável. Mas há alguns sinais de esperança. Um deles é que Jordan aparentemente chegou a um acordo com os “falcões” republicanos para financiar a Ucrânia, algo a que ele havia se oposto anteriormente. Outro sinal é que ele concordaria em manter o governo funcionando.
Estas seriam concessões não triviais. Contra isso está o fato de que Jordan tentou anular uma eleição presidencial americana. Alguns podem considerar irresponsável dar o controle da Casa do Povo a um contrarrevolucionário.
Fonte: Valor Econômico

